Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (1)
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- Ramez Philippe Maalouf
- 25/09/2014
Neste momento, assistimos a uma nova fase do processo de destruição do Iraque, com o avanço do grupo terrorista wahhabita Estado Islâmico do Iraque e de Levante (EIIL ou Islamic State of Iraque and Shams – ISIS, em inglês) sobre os territórios do leste sírio e do oeste e norte iraquianos, massacrando as populações locais, provocando o êxodo de milhares de pessoas integrantes das comunidades religiosas cristãs e yazeditas e proclamando um “califado” (o “Estado islâmico”) em julho de 2014. O governo iraquiano (ou o que resta dele após a invasão anglo-americana de 2003, apoiada pelo Irã) mostra-se incapaz de impor uma resistência ao avanço deste grupo terrorista composto por mais de 20 mil homens armados. Os curdos, por meio do seu esquadrão da morte convertido em exército, os pershmergas, estão sendo armados mais uma vez pelos EUA e Inglaterra sob o pretexto de impedir a formação do tal “califado”.
A perspectiva que paira sobre o país mesopotâmico é a pior possível: a real desintegração territorial do Iraque por meio da criação do Estado racial do Curdistão. Por enquanto, os pershmergas, acostumados a massacrar populações civis, demonstram incapacidade de enfrentar os terroristas do ISIS. Quem realmente está tendo sucesso na resistência ao ISIS continua sendo o PKK, o Partido dos Trabalhadores Curdos, milícia curda-turca de ideologia marxista, a única verdadeira força anti-imperialista da região neste momento. O PKK tem um longo histórico de atritos com os pershmergas. É sempre bom lembrar que os curdos da Turquia são etnicamente diferentes dos curdos do Iraque, falando línguas tão díspares quanto o inglês e o alemão.
Mais uma vez, a cobertura da mídia ocidental sobre os recentes e trágicos eventos no país mesopotâmico se baseia em “mitos” forjados nos últimos 35 anos, que abriram caminho para a destruição daquele que outrora foi o país mais desenvolvido econômica e socialmente do mundo árabe, e um dos mais desenvolvidos do chamado Terceiro Mundo. A mídia ocidental omite deliberadamente o papel político, econômico e, sobretudo, militar dos EUA na implosão do Iraque nos últimos 55 anos, seja por meio dos curdos, do Irã e de Israel, seja por meio das duas grandes invasões e ocupações militares em 1991 e em 2003, além do embargo econômico, que, entre 1990 e 2003, exterminou mais de 500 mil crianças iraquianas, ao proibir as importações de remédios e alimentos, sob a justificativa de que poderiam favorecer a indústria bélica iraquiana e o regime “totalitário” do partido Ba’ath (renascença em árabe), liderado pelo “ditador” Saddam Hussein.
Estes mitos começaram a ser forjados pela mídia do Ocidente desde a subida de jure de Saddam Hussein à presidência, em 1979. Segundo a narrativa ocidental criada para destruir o Iraque, o país árabe-mesopotâmico era governado por uma brutal ditadura unipartidária do Ba’ath, liderado com “mãos de ferro” por Saddam Hussein, tido como um carniceiro que impôs um despotismo clânico-étnico-confessional da “minoria muçulmana sunita” sobre a “maioria muçulmana xiita” e que oprimia selvagemente a minoria “curda”.
O mais inacreditável foi a enorme facilidade com que estes mitos foram aceitos acriticamente e continuam sendo ecoados até os dias de hoje por amplos setores da esquerda, transformando-se até mesmo num dogma que deve ser proferido por todo esquerdista que se preze. Com tal aporte “progressista”, o clã dos Bush não encontrou grandes dificuldades em legitimar os dois grandes ataques dos EUA ao Iraque, em nome da “democracia” e dos “direitos humanos”, que exterminaram mais de 2,5 milhões de iraquianos e dizimaram quase a totalidade da população cristã mesopotâmica, além de terem expulsos mais de 2 milhões de iraquianos, refugiados na Síria, Jordânia e Líbano, e os mais de 50 mil palestinos refugiados da guerra da fundação de Israel de 1948.
É preciso desconstruir tais mitos se quisermos verdadeiramente compreender o trágico destino do Iraque que testemunhamos nos dias atuais. Compreendermos, assim, que a História do Iraque é a história da luta permanente da nação iraquiana contra o domínio militar, político e financeiro anglo-saxão sobre o país e o mundo árabe.
Resumidamente, faremos aqui uma análise dos principais mitos criados pelos governos e a mídia do Ocidente, que buscam legitimar o processo de destruição do Iraque pelos EUA e Inglaterra e seus clientes regionais, como Israel, Arábia Saudita e Turquia.
1º. O Iraque é um país de maioria xiita
Segundo os EUA, o Iraque é um país de maioria xiita que era governado, até 2003, por uma minoria sunita, que representaria 20% da população total dos iraquianos. Foi com base nesta afirmação que os ianques promoveram a sua política sectária após as invasões de 1991 e de 2003. Na verdade, desde a Revolução Nacionalista de 1958 contra o domínio britânico, até o presente momento, os governos revolucionários iraquianos nunca promoveram um censo demográfico. Os vários presidentes militares pós-1958 perceberam que estes censos demográficos poderiam servir como instrumentos para políticas imperiais, visando manipular as chamadas “minorias” étnicas ou confessionais para desintegrar territorialmente o Iraque.
Já existiam dois antecedentes de balcanização na Ásia: Israel, o Estado nascido da destruição da Palestina e constituído exclusivamente para a comunidade judaica europeia, e o Paquistão, o Estado destinado aos muçulmanos, extirpado da Índia. Ambos foram fundados entre 1947 e 1948, e são os resultados concretos destas geoestratégias demográficas imperiais (a cooptação de “minorias”) da Inglaterra. Os termos “minoria” e “maioria” não são neutros, portanto, estão imbuídos de sentidos geopolíticos, pois designam falsamente a ideia de populações que vivem separadamente umas das outras, o que jamais foi uma realidade no Iraque ou em qualquer país do Oriente Médio como um todo.
Nesta região, de importância geoestratégica ímpar, há a presença de uma multimilenar convivência e coexistência mesclada de etnias e comunidades religiosas, resultantes de inúmeros processos civilizatórios empreendidos pelos impérios e reinos que ali existiram. Nunca houve a ideia ocidental e liberal, portanto, racista e segregacionista, de “minoria” e “maioria”, como se as tais “minorias” fossem corpos estranhos dentro de um mundo árabe supostamente uniforme, rígido e monolítico.
Desta forma, os iraquianos árabes cristãos, árabes judeus, árabes xiitas e árabes sunitas, além dos yazeditas, turcomenos, armênios, sabeus, mandeus e curdos, não são “minorias”. São o Iraque em sentido pleno. Acreditar que essas comunidades étnicas e religiosas são uma “minoria”, e que, portanto, são “hóspedes” da “maioria”, seja ela qual for, é acreditar ser possível haver um Iraque sem os xiitas, cristãos, sunitas ou yazeditas, curdos e turcomenos. Portanto, estas comunidades não são partes do Iraque, elas são o Iraque.
Da mesma forma, este raciocínio pode ser estendido aos demais países árabes e vizinhos. Por este motivo, o Curdistão, o Estado racial dos curdos, é uma aberração, que somente quem defende uma ideia de “raça pura” pode aceitá-la. O chamado Curdistão possui territórios que “coincidem” em grande parte com a Armênia histórica, além de serem habitados, há séculos, por árabes, turcomenos, assírios, yazeditas, entre outros povos.
Durante a I Guerra Mundial (1914-18), os curdos receberam, após terem exterminado os armênios, criando um território onde se tornaram uma “maioria”, promessas dos ingleses de constituírem um Estado próprio. Obviamente, entre tantas promessas feitas pelos ingleses, esta não foi a primeira, nem a única e nem será a última a não ser cumprida. A existência de um Estado racial curdo só pode ser concretizada por meio de violência, do ódio racial, do segregacionismo e do apoio de potências internacionais e regionais, no caso: Israel, EUA, Irã, Inglaterra e, por fim, a Arábia Saudita, tal como ocorrera com a fundação de Israel, em 1948.
É preciso ressaltar que os EUA pretendem criar o Curdistão apenas sobre o território iraquiano, não levando em consideração o fato de que, dos quase 27 milhões de curdos que existem no mundo, mais da metade deles, ou seja, 15 milhões, vivem na Turquia, que jamais reconheceu estes povos como nação e sempre os reprimiu com extrema violência. O mesmo ocorrendo com o Irã, que esmagou uma revolta curda em 1984, ao mesmo tempo em que armava os curdos iraquianos contra o Iraque. Os curdos não são um povo, mas, sim, quatro povos que falam quatro línguas tão distintas quanto o inglês e o alemão.
Voltando ainda à questão da tal “maioria xiita”, há quem questione a superioridade numérica das comunidades xiitas sobre as sunitas no Iraque. Este foi o caso do ex-embaixador iraquiano Faruq Ziada, em artigo publicado em 2006, que fez uma análise demográfica a partir de dados fornecidos pelo Al-Quds Press Research London Study, dos informes do Comitê Baker-Hamilton e dos resultados eleitorais do pleito para o parlamento iraquiano de 2005.
Segundo o estudo do ex-embaixador iraquiano, a composição étnico-confessional do Iraque seria de 42 a 44% de árabes sunitas, entre 16 e 18% de curdos e turcomenos sunitas e apenas entre 38 a 40% de árabes xiitas, sem somar as populações árabes cristãs e assírios cristãos. Porém, é razoável estimarmos que a composição populacional iraquiana seja entre 42% e 50% de árabes iraquianos xiitas, entre 32% e 40% de árabes iraquianos sunitas, 4% de iraquianos cristãos (árabes e assírios), 15% de curdos, 5% de turcomenos, yazeditas, sabeus, mandeus, marches e outros grupos étnicos.
Afirmar que o Iraque é um país majoritariamente “xiita” não encontra fundamento em qualquer análise demográfica, além de ignorar o grande contingente populacional “não xiita” do país.
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Ramez Philippe Maalouf é mestre e doutorando em Geografia Humana – USP