Demopolítica israelense e o genocídio de Gaza
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- Ramez Philippe Maalouf
- 24/07/2014
A partir de 8 de julho de 2014, Israel deu início a mais uma “operação militar” na Faixa de Gaza, a décima desde 2004, para supostamente punir o grupo armado de resistência “islâmica” Hamas, acusado de lançar foguetes artesanais contra o território israelense. Foi a terceira invasão israelense ocorrida durante uma Copa do Mundo, a do Brasil, após as invasões do Líbano em 1982 e em 2006, durante, respectivamente, as Copas da Espanha e da Alemanha. Até o presente momento, mais de 600 palestinos foram assassinados pela “Operação Margem Protetora”, dos quais 70% eram civis. As crianças palestinas representam cerca de 1/3 das vítimas fatais. Do lado israelense, são cerca de 23 mortos, dos quais 80% são militares. A Faixa de Gaza é uma das regiões mais densamente povoadas do mundo. Em seus parcos 330 km2 vivem (ou sobrevivem) mais de 1,8 milhão de palestinos, sendo em sua esmagadora maioria menores de 16 anos e refugiados das guerras de 1947-49 e de 1967, nas quais a Palestina desapareceu dando lugar a Israel, Faixa de Gaza e a Cisjordânia.
Desde a retirada dos “colonos” israelenses de Gaza, no verão de 2005, o território palestino foi submetido a um duro cerco por Israel e Egito por ar, mar e terra. Porém, este cerco só foi assumido explicitamente como política de Estado no começo de 2006, quando, nas eleições legislativas palestinas, consagrou-se a vitória do grupo “islâmico” Hamas, cujo braço armado lidera a resistência à ocupação israelense na Cisjordânia e na Faixa de Gaza.
Nova divisão de forças e interesses
A eleição do Hamas para o parlamento palestino pegou de surpresa o Ocidente e Israel, que não aceitaram o resultado do pleito eleitoral. A vitória eleitoral da resistência “islâmica” foi o resultado do descontentamento da população palestina pela corrupção endêmica e autoritarismo do Fatah, partido palestino que dá sustentação à Autoridade Nacional Palestina (ANP), também acusada de cooperar com os israelenses na ocupação militar. A resposta do Ocidente e de Israel à resistência dos palestinos foi o bloqueio dos repasses de impostos e de investimentos. Tropas israelenses chegaram até mesmo a prender dezenas de deputados palestinos dentro do parlamento da ANP.
A situação se tornou mais grave na Faixa de Gaza, que não tem ligação terrestre com a Cisjordânia. Gaza passou a sofrer uma crescente degradação das condições de vida de sua população, com a falta de saneamento básico, alimentos e medicamentos. No verão de 2007, incentivados e apoiados pela Arábia Saudita, Egito, Jordânia, Israel e EUA, o Fatah tentou tomar o poder em Gaza, mas foi derrotado e expulso pelo Hamas. Os governos árabes pró-EUA consideravam o grupo “islâmico” um aliado do Irã, mesmo sabendo que a milícia-partido era de fé sunita, e não xiita como a república “islâmica”. A esta altura, o Iraque estava sendo triturado pela brutal invasão anglo-australo-americana de 2003, apesar de oferecer uma dura resistência aos invasores, assim como o Líbano estava se recompondo da segunda grande invasão israelense, que foi repelida pela resistência árabe liderada pelo Hizbollah, apoiado pela Síria e Irã.
A invasão do Iraque pelas tropas dos EUA, Inglaterra e Austrália, além de aliados menores, em 2003, dividiu o mundo árabe em dois eixos geoestratégicos, que na verdade refletiam uma nova mudança no cenário internacional ainda marcado pelo fim da União Soviética e da Guerra Fria (1945-90).
Assim, surgiu de um lado o “eixo sunita”, formado pelos governos árabes clientes dos EUA (Egito, Jordânia e Marrocos), liderado, sobretudo, pelas petromonarquias do Golfo Pérsico (Emirados Árabes Unidos, Omã, Bahrein e Kuwait), com especial destaque para a Arábia Saudita, “protetora” das cidades sagradas do Islã, Meca e Medina. De outro lado, apareceu o “eixo xiita”, formado pelo sul do Líbano (sob o controle do Hizbollah), Síria, Iraque e Irã, que se mantêm independentes do poder dos EUA e têm estreitos laços com a China, Coréia do Norte e Rússia. Ao “eixo xiita”, pode-se acrescentar ainda a Armênia, motivo pelo qual esta aliança também recebe a denominação, mais correta do que a alcunha sectária, de “eixo da resistência”.
Desta forma, Israel e Egito, ainda sob a ditadura do brigadeiro Hosni Mubarak, ganharam do Ocidente a autorização para impor um bloqueio quase total à Faixa de Gaza, após a derrota do golpe do Fatah, alegando que o Hamas, além de não reconhecer o direito de Israel existir, era um aliado do Irã. Tratava-se de mero pretexto para submeter a região palestina mais densamente povoada, pois Israel impôs cláusulas na legislação eleitoral palestina, exigindo de todos os candidatos e partidos políticos o reconhecimento e cumprimento dos acordos e tratados assinados pela ANP. Isto incluía os Acordos de Oslo (1993) e todo chamado “processo de paz” (sic) ocorrido na década de 1990, o que foi aceito pelo Hamas, que, desta forma, reconheceu implicitamente o Estado de Israel. Na verdade, o bloqueio à Faixa de Gaza era parte de uma geoestratégia maior de Israel.
Compreendendo a estratégia
Desde a Guerra dos Seis Dias (1967), com a anexação militar dos territórios palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, Israel, fundado em 1948 como um “Estado judeu”, mediante a expulsão de mais de 750 mil palestinos, se depara com a presença de uma grande população árabe sob seu controle, colocando em xeque a sua identidade judaica. Após a “vitoriosa” guerra contra a Síria, Egito e Jordânia, a população palestina passou a representar cerca de 36% da população total sob o controle israelense. Hoje, passados mais de 45 anos da guerra, esta proporção alcança a cifra de 46% da população total (13 milhões de habitantes) sob controle israelense. Se a proporção alcançar a cifra de 50%, a pressão para que se reconheça Israel como um Estado binacional, que, de facto, nunca deixou de ser, aumentará enormemente.
Por isso, o “desengajamento” da Faixa de Gaza atende muito mais a uma geoestratégia demográfica (a “demopolítica”) do que propriamente a um desejo de uma acomodação com os palestinos. A retirada de cerca de 7 mil “colonos judeus” daquele território palestino, devidamente deslocados para a Cisjordânia, era para tão somente transformar aquele território, ao mesmo tempo, numa prisão para o milhão e meio de pessoas que lá vivem e num campo livre para os ataques israelenses. O objetivo principal era o de exterminar o maior número possível de palestinos por meio da fome, doenças, guerras “civis” (como em 2007, entre Fatah e Hamas, e em 2009, entre Fatah e al-Qaeda), e bombardeios de saturação, como os da virada de 2008 para 2009, na Operação Chumbo Fundido, na qual mais de 1.400 pessoas foram assassinadas, entre elas, mais de 300 crianças. Para os estrategistas israelenses, os que conseguissem sobreviver deveriam fugir para o Egito. Trata-se, portanto, de uma racionalização do genocídio do povo palestino.
A Cisjordânia, a centro-leste de Israel, foi submetida a uma outra demopolítica, a da “colonização” judaico-sionista e à construção de um muro que anexasse a maior quantidade possível de terras férteis ao território israelense. As “colônias” cisjordanianas foram construídas ligadas diretamente a Israel por meio de grandes estradas, desta forma, as populações palestinas viveriam ou sobreviveriam isoladas entre si em pequenas porções de territórios, cercados por todos os lados por muros, estradas, colônias sionistas e “check-points” militares, tornando o deslocamento diário de pessoas, até mesmo a pequenas distâncias (e o Estado de Israel ocupa área equivalente a metade do estado do Rio de Janeiro), uma missão impossível, humilhação e suplício permanentes. Estas “ilhas” palestinas, dentro da Cisjordânia, foram constituídas nas terras mais inférteis, com os mais escassos recursos hídricos. Os que sobrevivessem ou os que não suportassem tais privações deveriam “fugir” para a Jordânia.
A demopolítica israelense para os palestinos é expressão viva da banalização do mal, denunciada pela pensadora alemã Hannah Arendt. Não podemos esquecer que a expulsão/extermínio total dos palestinos da Palestina Histórica só é viável em um ambiente de degradação total do cenário regional e internacional. A “satanização” midiática dos palestinos pelo Ocidente é um dos meios para favorecer este projeto monstruoso de Israel, hoje, patrocinado até mesmo pela Arábia Saudita, além dos EUA. (Não é demasiado lembrar que a “terra da liberdade e lar dos bravos” é uma nação fundada no extermínio e na expulsão sistemática dos índios das terras invadidas e ocupadas pelos colonos brancos anglo-saxões protestantes das Treze Colônias da América, a partir do século XVII. A ruptura com Londres só ocorreu quando os ingleses os proibiram de exterminar e roubar os índios).
Instabilidade maior que há 10 anos
No entanto, o cenário político regional e internacional se degradou ainda mais do que aquele de 2005, ano do “desengajamento” de Gaza. Não só a destruição do Iraque conseguiu entrar em uma nova fase, ainda mais dantesca, com a formação pelo grupo terrorista ISIS (Islamic State of Iraq and Shams) de um “califado” wahhabita (patrocinado indiretamente pelos EUA e Arábia Saudita) na região oeste do país, englobando porções da Síria, como também a independência do “Curdistão” é iminente. Além disto, a Síria está sob ataque dos EUA por meio de mercenários travestidos de guerrilheiros “islâmicos”.
O governo de Damasco não tem o controle total de seu território, desde 2011, cuja região leste está submetida ao tal “califado” wahhabita. Não há dúvidas de que o Estado “islâmico” wahhabita, formado sobre os destroços do Iraque, legitima o Estado “judeu” e atende a velha geoestratégia israelense de balcanizar (dividir um território em bases étnicas e/ou confessionais) o Oriente Médio. O Iraque está de facto divido em três territórios: um, ao sul, sob o controle de Bagdá, de maioria “xiita”; as províncias do oeste, sob o domínio do ISIS, de maioria “sunita”; e o norte, sob o domínio do “Curdistão”, racista, segregacionista e aliado de Israel e dos EUA, “limpo” de árabes, assírios, yazeditas e turcomenos.
Ademais, a aliança entre “curdos” e o ISIS rompe territorialmente as linhas de abastecimento entre Irã, Síria e a Faixa de Gaza, que foram mantidas até mesmo pelo presidente iraquiano Saddam Hussein, assassinado em 2006. Por isso que as fortes suspeitas de que Israel possa estar até mesmo financiando o tal grupo armado “islâmico”, por meio da Jordânia e do “Curdistão”, não são infundadas.
Além da destruição dos países do Crescente Fértil, a Líbia é outro país árabe destruído por um ataque da OTAN, em 2011. Mais de 2 milhões de pessoas, a maioria esmagadora constituída por africanos subsaarianos, foram expulsas do país árabe norte-africano em decorrência dos bombardeios de saturação da coalizão atlantista. Somente a “limpeza étnica” na Líbia (justificada e legitimada pela mídia ocidental, e por setores da “esquerda”, como uma guerra de libertação e pelo “direito de proteger” a população líbia contra a opressão de um regime ditatorial) é suficiente para abrir o precedente para a expulsão definitiva dos palestinos da Palestina Histórica.
As guerras do Iraque (2003, ainda em curso) e da Síria (2011, ainda em curso), patrocinadas pelos EUA, também promoveram a expulsão de seus países de origem de mais de 2 milhões de pessoas, cada uma. No caso iraquiano, as comunidades árabes cristãs foram quase totalmente dizimadas e/ou expulsas do país mesopotâmico. O mesmo tendo ocorrido com os turcomenos, yazeditas e assírios, atacados pelos “curdos”.
Estas campanhas militares de expulsão em massa de povos tiveram início após a queda da União Soviética (1991) e foram fomentadas pelos EUA. Os casos mais notórios ocorreram nas guerras da Iugoslávia (1991) e de Ruanda (1994). Hoje, o governo liberal-nazista da Ucrânia, apoiado pelos EUA, também adota política de expulsão das populações russo-ucraniana, judia, tártara, entre outras. Mais de 500 mil russos-ucranianos se refugiaram na Rússia, dos quais 100 mil pediram asilo. Todos estes deslocamentos populacionais em gigantescas proporções servem como precedentes para a limpeza étnica e o genocídio dos palestinos, planejados pelas lideranças sionistas desde a década de 1930, ainda que de forma não explícita.
Assim sendo, diante destes cenários regional e internacional dantescos, não podemos nos surpreender com a décima “ofensiva militar” de Israel contra a Faixa de Gaza, que, somadas desde 2004, exterminaram quase 3 mil palestinos. Desta vez, os israelenses se viram favorecidos pelo refluxo da “Primavera Árabe”, eclodida no final de 2010, onde a fúria árabe contra as ditaduras pró-EUA também respingou sobre as alianças declaradas e não declaradas entre os ditadores árabes e Israel.
Em novembro de 2012, na Operação Pilar Defensivo (sic), o ataque israelense foi mais “tímido”, durou apenas uma única semana para não causar mais desconforto para alguns líderes árabes aliados, como o então emir do Catar Hamad bin Khalifa al-Thani, deposto em 2013, e o então presidente egípcio eleito fraudulentamente, Mohammed Morsi, também deposto em 2013.
Em 2014, o ditador (no sentido romano do termo) dos EUA Barack Obama anunciou mais uma tentativa de “paz” entre Israel e a ANP, desmoralizada pela corrupção, autoritarismo e cooperação com os israelenses. Sem aceitar qualquer tipo de concessão aos palestinos, a resposta do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu foi a de sempre: o aumento dos “assentamentos judaicos” na Cisjordânia, tornando quase impossível a possibilidade de se criar um Estado palestino moderno com território contínuo.
Com mais um fracasso das “negociações de paz”, não coube alternativa à ANP, a não ser a criação de um governo de unidade nacional com o Hamas, também desprestigiado interna e regionalmente pelo apoio dado ao governo sectário de Morsi no Egito, derrubado em 2013, e à guerra parcialmente fracassada dos EUA contra o regime do Ba’ath na Síria. A bem da verdade, Ismayil Haniyeh, líder do Hamas na Faixa de Gaza, foi contra a ruptura com o governo sírio, entrando em choque com o Khaled Meshal, líder do grupo que residia em Damasco. Após a deposição do emir Hamad al-Thani e do presidente Morsi, a resistência “islâmica” palestina tentou se reaproximar do presidente sírio Bashar al-Assad e do regime dos aiatolás do Irã, mas não se sabe ao certo até onde foram estas negociações.
À espera do pretexto
O governo palestino de unidade nacional enfureceu o líder israelense Netanyahu, que não tardou a lançar um novo ataque à Faixa de Gaza, sem que este território possa oferecer qualquer forma de defesa adequada ao poderio bélico de Israel. O primeiro-ministro sionista acusou o Hamas pelo assassinato de três adolescentes “colonos” israelenses na Cisjordânia, no início de junho de 2014. Eles foram sequestrados e assassinados, sem que se saiba até o presente momento os autores do crime. Como vingança, “colonos” judeus não identificados sequestraram e queimaram vivo o jovem palestino Mohammed Abu Khdeir, de apenas 13 anos. É preciso lembrar que o assassinato dos três “colonos” israelenses ocorrera após o assassinato em 15 de maio de 2014 de dois adolescentes palestinos na Cisjordânia, por um franco-atirador. De qualquer forma, o ataque à Gaza já estava há muito tempo planejado. Esperava-se apenas um pretexto qualquer.
A desumanização permanente dos palestinos pela mídia ocidental e a indiferença de setores esquerdistas entorpecidos por um eurocentrismo empedernido, para a “sorte” dos povos asiáticos, africanos e europeus orientais, são as principais armas da demopolítica israelense que se coaduna com a geoestratégia ianque de constituir um mundo à imagem e semelhança de Israel, ou seja, pequenos Estados “falidos”, forjados no ódio e no segregacionismo étnico e racial, visando a subjugação e, quem sabe, a desagregação territorial da Rússia, da Índia e da China.
Este projeto monstruoso está rendendo frutos: o Sudão do Sul se “libertou” do Sudão para tão somente entrar em guerra “civil” e abrir caminho para mais uma invasão e ocupação de tropas ianques no coração da África, em curso neste presente momento. A outra criação desta “geoestratégia do caos” é o “Curdistão”, que se “emancipará” do Iraque brevemente, salvo por uma intervenção militar do Irã ou da Síria ou da Turquia, ou por uma ordem expressa dos EUA.
A criação de mais um Estado fundamentado no sectarismo étnico e no ódio racial no Crescente Fértil criará uma onda de choque que abalará toda a Ásia. O Estado “curdo” se converterá na ponta de lança para a desestabilização e desagregação territorial do Irã e da Rússia. Isto provocaria um impacto na Ásia Central, atingindo a China e a Índia. “Curdos” e separatistas baluques do Paquistão e do Irã já mantêm contatos com as bênçãos dos EUA.
É possível que Israel espere até este momento, de completo colapso civilizatório do sudoeste asiático, para implementar a expulsão definitiva e total dos palestinos da Palestina Histórica. Ao que parece, com a total liberdade e impunidade internacional com que Israel extermina palestinos neste exato momento na Faixa de Gaza (como se fossem moscas), infelizmente, este plano não está longe de ser realizado.
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Ramez Philippe Maalouf é mestre e Doutorando em Geografia Humana (USP).