Correio da Cidadania

Síria: guerra civil ou como destruir a primeira democracia do Oriente Médio

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Mais uma vez, a guerra como saída para a crise

 

O liberalismo adotado por Bassar al-Assad encontrou, porém, uma conjuntura internacional degradante que se associaria fatalmente aos graves problemas internos: invasão anglo-americana-australiana do Iraque, apoiada pelo Irã, em 2003, do lado externo; e a prolongada seca que arrasou a agricultura e produziu o êxodo de uma massa rural para as cidades, agravando ainda mais as disparidades sociais, favorecendo o surgimento de um novo conservadorismo religioso.

 

Além disso, as privatizações e abertura ao capital privado não beneficiaram os EUA e muito menos a França e a Inglaterra, o núcleo duro do Ocidente. A deterioração das relações com o Ocidente se aprofundou com a aproximação de Bassar al-Assad com Saddam Hussein, rompendo a antiga inimizade de seu pai com o líder iraquiano e desafiando taticamente a sagrada aliança com a Arábia Saudita. O breve estreitamento de relações sírio-iraquianas, sob a égide do Ba’ath, foi rompido com o ataque anglo-americano ao Iraque em 2003.

 

A invasão do Iraque pelos EUA, Inglaterra e Austrália, em 2003, gerou mais de 2 milhões de refugiados e o extermínio de mais de 1 milhão de iraquianos. A ofensiva tinha por objetivo oficial destruir o suposto arsenal de “armas de destruição em massa” em posse de Saddam Hussein (que se revelaram falsas) e a necessidade de estabelecer um regime democrático em Bagdá para eliminar a “opressão da minoria sunita sobre a maioria xiita” mantida no poder pelo regime “totalitário” do Ba’ath, um discurso que encontrou apoio em alguns setores progressistas ao redor do mundo. No entanto, os objetivos geoestratégicos mais importantes consistem resumidamente em:

 

i)                                através do controle sobre o Iraque e o Afeganistão, cercar o Irã, cujo regime nacionalista e confessional é aliado da China e da Rússia, vistos como inimigos pelo Pentágono;

 

ii)                              criar um regime sectário no Iraque, atiçando a chama da guerra entre muçulmanos sunitas e xiitas

 

iii)                            uma nova divisão territorial do mundo árabe, em linhas sectárias, principalmente entre xiitas e sunitas, para torná-lo preparado para sucumbir ante o poder dos EUA, permitindo uma base de apoio para o controle da Ásia Central, que é acesso para a China, Índia e Rússia;

 

iv)                            fomentar o extremismo islâmico wahhabita e salafista (a partir da guerra contra os xiitas) para desestabilizar toda a Ásia Central e o Cáucaso, criando fronteiras sangrentas com a China, a Índia e a Rússia;

 

v)                              controlar a produção e o fornecimento de gás e petróleo da Ásia e da África.

 

Novas ofensivas ocidentais para dividir países e povos da região

 

Para que a invasão fosse bem sucedida, avaliaram os ideólogos do neoconservadorismo no poder em Washington D.C., era preciso também atacar a vizinha Síria e remover do poder a ditadura do Ba’ath de uma vez por todas. Para W. Bush, a Síria apoiava grupos “terroristas” no Líbano e na Palestina ocupada por Israel, que combatiam os israelenses (seria uma “fomentadora e patrocinadora do terrorismo”), além de ser aliada do Irã (e, por tabela, da China). Os planos de ataque à Síria foram descartados a partir do momento em que a resistência iraquiana frustrou o pleno domínio dos EUA sobre o Iraque. Sem poder desferir um ataque frontal, optou-se pela “via indireta”: a desestabilização do regime nacionalista através do atiçamento de uma guerra confessional entre “sunitas” e “alauítas” (um ramo do xiismo), confissão do clã dos Assad.

 

A geoestratégia norte-americana adotou a mesma tática para “quebrar” a resistência iraquiana, instilou-se o conflito sectário entre “sunitas” e “xiitas”, tendo, para isto, de contar com o apoio iraniano, o que não foi negado. A partir de 2006, além da invasão, o Iraque passaria a conviver com uma guerra civil entre “sunitas” e “xiitas”, resultando em limpeza étnica e confessional. Afinal, o governo estabelecido pelos EUA e Irã em Bagdá era sectário, com a divisão de poder entre as comunidades religiosas (como ocorre no Líbano). Desta forma, os “xiitas” dominam a chefia de governo; os curdos, a presidência da república; e os “sunitas”, a vice-presidência. Assim sendo, Washington e Riad observaram a formação de um arco de países e de territórios refratários ao poder do Ocidente, mas, simpáticos à China, que se estendia do Irã, passando pelo o sul do Líbano, à Cisjordânia e à Faixa de Gaza. Este arco era composto pelo Irã, sob o regime dos aiatolás, Síria, sob o regime do Ba’ath, o leste e o sul do Líbano, sob controle do Hizbollah (grupo “xiita”), e a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, bases do Hamas (ala palestina da Irmandade Muçulmana, sunitas anti-xiitas). Todos eles eram grupos armados e governos hostis a Israel também. Por este motivo, muitos analistas passaram a denominar esta aliança de “arco da resistência”.

 

Em 2005, visando desestabilizar o “arco xiita” ou o “arco da resistência”, os EUA, por meio de aliados locais e de manifestações populares, financiadas pelo Ocidente e pelos xecados do Golfo, forçaram a retirada total das tropas sírias do Líbano para abrir caminho a uma nova invasão israelense do território libanês, visando destruir o Hizbollah, em 2006. O grupo “xiita”, patrocinado pelo Irã, havia expulsado Israel do Líbano em 2000 e repetiria o feito militar em 2006. Sem vencer o Hizbollah, na virada de 2008 para 2009, Israel, apoiado pelos EUA e aliados locais, como Egito e as monarquias árabes, desferiu um novo ataque contra a Faixa de Gaza, visando destruir outro (então) aliado do Irã, o Hamas, sem sucesso algum. A Síria e o Irã saíram fortalecidos e o chamado “eixo sunita”, constituído pelas monarquias árabes e o Egito, foi derrotado.

 

A eclosão da “Primavera Árabe”, em 2010, a revolta popular contra os regimes ditatoriais no mundo árabe, iniciada no Egito e na Tunísia, que se alastrou para outros países árabes, pegou de surpresa os EUA. A queda do mais caro aliado regional dos EUA, Arábia Saudita e Israel, o ditador do Egito, brigadeiro Hosni Mubarak, em 2011, não deixou dúvidas para o presidente norte-americano Barack Obama e aliados locais de que era preciso ter o controle da situação e agir para impedir novas surpresas desagradáveis. Afinal, antes da derrubada de Mubarak, o ditador da Tunísia, aliado dos franceses, Ben Ali, foi deposto pela população em fúria e exilado no reino saudita. A Arábia Saudita entendeu que Obama foi displicente com a queda de Mubarak e invadiu o Bahrein, seu vizinho no Golfo Árabe-Pérsico, para esmagar uma revolta contra a autocracia do emir, demandando direitos sociais e trabalhistas.

 

Era o início da “contrarrevolução”, cujo resultado foi bem sucedido na Líbia, com a deposição e assassinato do coronel e ditador Muamar Kadafi, que havia se aproximado do Ocidente desde a invasão do Iraque, em 2003. Mas, diferentemente do Egito e da Tunísia, a queda do coronel líbio foi decorrente de um bombardeio aéreo da OTAN, que assassinou mais de 50 mil pessoas e destruiu o país, poupando os poços de petróleo. Com a remoção de Kadafi e a implosão da Líbia, o Ocidente visava “desconectar” o mundo árabe da África, aniquilar o que restava de nacionalismo árabe, implodir qualquer forma de integração africana e mediterrânea, além de separar o Magreb (o oeste do mundo árabe) do Machrek (o leste do mundo árabe, o Crescente Fértil). Com o sucesso na Líbia, a “bola da vez” da reação passou a ser a Síria, em cuja costa se localiza a principal base naval russa.

 

Os velhos interesses imperialistas

 

Não há dúvidas de que a revolta popular na Síria teve origens genuínas na crise econômica decorrente das sucessivas quebras de safras agrícolas, no descontentamento com a concentração de renda, com o aumento das desigualdades sociais e com o autoritarismo do regime que era incapaz de recuperar as Colinas de Golã, sob ocupação israelense. Mas, não há dúvidas que as legítimas reivindicações sociais, econômicas, expressas em mobilização de sindicatos, foi em algum momento “sequestrada” pelas pressões geopolíticas. Os EUA precisam enfraquecer o “eixo xiita” e um regime que é aliado da Rússia, Irã e China. Porém, a crise econômica doméstica e o “trauma” do Iraque e do Afeganistão impedem Washington de uma intervenção direta. Também, para a Turquia é importante retomar a antiga influência sobre o mundo árabe, uma vez que sua entrada na União Europeia foi rejeitada. Para o Irã, a Síria é o mais importante aliado árabe, pois, com o governo de Damasco, é possível fazer contacto com o Hizbollah e chegar à fronteira com Israel, uma vez que o Hamas saiu de sua esfera de influência.

 

Não tardaram a aparecer em meio às manifestações pacíficas, na capital síria, em março de 2011, bandeiras do período da dominação colonial francesa. As manifestações foram brutalmente reprimidas pelo governo, que temia o mesmo destino da Líbia, cuja guerra, patrocinada pela OTAN, estava de facto dividindo territorialmente o país.

 

O regime sírio é um regime autoritário com um parlamento aberto, onde partidos de oposição ao Ba’ath têm assento. Porém, as manifestações foram lideradas pela oposição não parlamentar, que é uma aglomeração heterogênea e fragmentada. Podemos observar, no início das revoltas na Síria, a formação de dois campos oposicionistas, não necessariamente articulados: um formado por autênticos oposicionistas independentes, sem apoio externo, composto por liberais, nacionalistas e comunistas (dissidentes do Partido Comunista Sírio, integrante do parlamento) cansados das promessas não cumpridas em 41 anos de ditadura férrea. Estes oposicionistas jamais se armaram e, por isso mesmo, perderiam relevância com a intensificação dos conflitos entre governo e “rebeldes” e a crescente militarização de ambas as partes.

 

O outro campo da oposição não parlamentar é também igualmente heterogêneo, mas recebe apoio regional e internacional. Os integrantes mais relevantes são: os ejetados do poder por Hafez al-Assad e seu filho Bassar nas lutas palacianas (e não tão palacianas, assim), ao longo de mais de 40 anos de autoritarismo, e os grupos islâmicos. Integram este campo desde parentes do presidente, ex-generais todo-poderosos como Abdel Khalim Khaddam, e até a Irmandade Muçulmana, banida pelo regime desde 1976. Foi exatamente este campo, patrocinado por potências regionais e internacionais, que se armou.

 

Para tentar unificar a oposição não parlamentar, formou-se o Conselho Nacional Sírio (CNS), em 2011, apoiado principalmente pelo emirado do Catar e a Turquia. O emirado é sede da maior base militar dos EUA no Golfo Árabe-Pérsico, de onde partiram os ataques ao Iraque, em 2003. O CNS inclui membros exilados da Irmandade Muçulmana, notória pelo sectarismo religioso. Em 2012, foi constituída, também no Catar, a Coalizão Nacional para a Síria Revolucionária e as Forcas de Oposição (CNSRFO). Ambos os grupos, passaram a dar apoio ao Exército Livre da Síria (ELS), cujo líder, primo do presidente sírio, declarou ter por único objetivo a derrubada de Bassar al-Assad. A milícia é financiada e armada, desde sua fundação, pelas petromonarquias do Golfo, recebendo apoio logístico da Turquia. O ELS é formado por desertores das forças armadas sírias.

 

Mas, aos poucos, o grupo armado passou a ser integrado também por libaneses, palestinos, sauditas, jordanianos, tunisianos, argelinos, líbios e egípcios. Além de árabes não sírios, curdos, croatas (cristãos católicos romanos) e kosovares também integram a milícia. Em julho de 2012, o ELS começou a receber fundos do Departamento do Tesouro Nacional dos EUA, por meio do Grupo de Apoio Sírio (GAS), sediado em Washington D.C.. Apesar do nome “exército”, trata-se de um aglomerado de milícias que não obedecem necessariamente a uma cadeia de comando.

 

A partir de 2012, paralelamente às ações armadas do ELS, se somariam grupos “islâmicos” jihadistas, de corte salafista e wahhabita (correntes islâmicas anti-xiitas que pregam o retorno à pureza original do Islã dos tempos do profeta), sendo o grupo mais importante deles, o al-Nusra, um afiliado da al-Qaeda. Vários de seus integrantes são de origem europeia (dos Bálcãs, sobretudo) e da Ásia Central. Eles não escondem o desejo de fundarem um “Estado islâmico” em substituição ao regime de Assad, causando temores em todo país, uma vez que a comunidades confessionais vivem e convivem entrelaçadas milenarmente. Os salafistas e wahhabitas são apoiados pelos xecados árabes do Golfo, especialmente Catar e Arábia Saudita.

 

As milícias wahhabitas-salafistas iniciariam uma campanha militar sectária, assassinando e expulsando pessoas unicamente pela identidade religiosa, nas cidades que caíram sob seu controle. Há inúmeros relatos de comunidades inteiras cristãs, druzas e alauítas expulsas de cidades e vilarejos, em evidentes sinais de limpeza confessional, como é o caso da cidade de Homs, a terceira maior do país, onde mais de 90% dos cristãos foram expulsos. A participação de “islamitas” nas hostes “oposicionistas” é cada vez mais predominante.

 

Fronteiras do ódio

 

A extrema violência e o fanatismo religioso dos “rebeldes” sírios não impedem que a União Européia, cada vez mais sedenta de gás, sobretudo, reconheça a patrocine os “oposicionistas”. Em 2012, a Inglaterra chegou a oferecer equipamentos de comunicação ao ELS, que se convertera de facto num braço armado da Irmandade Muçulmana.

 

Com uma estratégia desordenada do governo até então, as milícias da oposição passaram a controlar o norte e porções do sul do país. O governo, por sua vez, dominava porções do oeste e do litoral. As fronteiras com a Turquia, com o Líbano, com a Jordânia e com o Iraque estavam sob o domínio oposicionista e, excetuando com o país mesopotâmico, elas servem como pontos de passagem de armas para os inimigos do regime. Somente uma grande cidade foi parcialmente conquistada pelos “rebeldes”, Alepo. O pequeno País dos Cedros, no entanto, sofre a desestabilização da guerra civil síria. Na cidade de Trípoli, ao norte do país, há relatos de intensos conflitos entre os simpatizantes de Bassar e os dos oposicionistas, dentro de linhas sectárias (“sunitas” x “xiitas-alauítas”). Para impedir os ataques na fronteira sírio-libanesa e a destruição da Síria, seu maior aliado regional, o Hizbollah passou a combater no país vizinho, auxiliando o exército na conquista de cidades fronteiriças com o Líbano em mãos dos “opositores”, como foi caso recente da conquista da cidade Qusayr, uma importante rota de suprimento de armas vindas do território libanês. Com esta conquista, os sírios, apoiados pelos guerrilheiros do Hizbollah, visam consolidar o controle dos territórios a oeste (as rotas que ligam Damasco a Alepo, as duas maiores cidades do país). Uma vez controlada esta área, abre-se caminho para a contra-ofensiva final no centro e no nordeste do país.

 

As ações do governo sírio causam apreensão em Israel, uma vez que, mesmo tendo um acordo tácito com Damasco sobre as Colinas de Golã, um regime forte e uma sociedade unida na Síria poderiam desafiar o seu sectarismo judaico. Desde 2003, Israel voltou a atacar a Síria, que não respondeu as agressões. Outro motivo para a apreensão dos israelenses sob a liderança de Shimon Peres e de Benjamin Netanyahu é a “eixo xiita” Irã-Iraque-Síria-Hizbollah. O grupo xiita libanês venceu Israel duas vezes e dispõe de um arsenal de guerra sofisticado para uma guerrilha. Peres e Netanyahu temem que, caso se enfraqueça de forma excessiva, o regime de Assad possa repassar mísseis de médio alcance ou até mesmo armas químicas para a milícia aliada. Isto seria um dos motivos para os dois ataques aéreos israelenses realizados no primeiro semestre de 2013 a fim de impedir suposta transferência de armas.

 

Com os massacres e a expulsão de comunidades confessionais inteiras de cidades, a sombra de uma balcanização paira sobre a Síria. Mais de 90 mil pessoas foram assassinadas. Os mais interessados na destruição do “berço do cristianismo” e a antiga sede do Império Omíada, por meio da limpeza étnica e da divisão territorial, são, principalmente, os EUA, a União Europeia, Arábia Saudita, Catar, Turquia e Israel. A fragmentação da Síria, já testada sob o mandato francês, impulsionaria a implosão de outros países da Ásia e da África, criando uma miríade de mini-Estados étnico-confessionais irresistíveis ao poder dos EUA para bloquear o retorno da China à condição de maior potência econômica e militar que desfrutava há milênios, até sucumbir ao domínio britânico, no século XIX. Assim, Ásia e África seriam compostas por países à imagem e semelhança de Israel, baseados no exclusivismo étnico-comunitário e no segregacionismo. Um mundo feito de fronteiras sangrentas, baseadas no ódio sectário. Um mundo do choque de civilizações.

 

Leia a primeira parte deste artigo aqui

 

Ramez Philippe Maalouf, historiador, é doutorando em Geografia Humana na USP.

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