Guerra da Síria: a vitória russa e o possível fim da unipolaridade
- Detalhes
- Ramez Philippe Maalouf e José Ailton Dutra Júnior
- 19/09/2013
A Rússia nos últimos cinco anos sofreu duas graves ameaças à sua integridade territorial. A primeira ocorreu nos cinco dias iniciais de agosto de 2008 (simultaneamente às Olimpíadas de Pequim, tal como a invasão israelense do Líbano de 1982, ocorrida sob “cortina de fumaça da Copa do Mundo da Espanha), quando a Geórgia, governada pelo autoritário presidente pró-EUA Mikhail Saakashvili, invadiu a República da Ossétia do Sul, um Estado independente de facto, vizinho da Rússia, onde a população tem cidadania russa e a economia e o orçamento controlados por Moscou. Além disto, para termos noção do quão grave era este ataque, devemos ressaltar que a maior parte do povo osseta vive na Rússia, mais exatamente na República da Ossétia do Norte, sendo simpatizantes do Kremlin em uma região onde a autoridade deste continua a ser contestada. Uma eventual conquista da Ossétia do Sul pela Geórgia seria considerada pelos norte-ossetas como uma “traição” de Moscou contra seu próprio povo e comprometeria seriamente a sua fidelidade à Rússia.
A segunda ameaça a Moscou é o atual conflito na Síria, que, desde o atentado com gás sarin, em 21 de agosto de 2013, na localidade de Ghouta, próximo a Damasco, corre sério risco de assistir ao envolvimento direto de Washington nas hostilidades. Embora a Síria não faça fronteira com a Rússia, a guerra em curso em seu território pode colocar a integridade territorial do Estado russo em risco por conta das suas conexões geopolíticas com o Irã e o Cáucaso. Além disto, a Rússia sofre com a política de cerco militar euro-americano, cuja extensão compreende desde a Europa Oriental até o Extremo Oriente, passando pelo Ártico (as tensões com o Canadá e a OTAN – Organização do Tratado Atlântico Norte, nesta zona) e a Ásia Central (Guerra do Afeganistão e as bases americanas nas ex-repúblicas soviéticas centro-asiáticas). Daí a importância geoestratégica de manter a Síria como um país soberano em relação ao Ocidente e, também, às petromonarquias do Golfo Árabe-Pérsico.
Esta independência síria garante assim o caráter nacionalista do regime do Ba’ath (há 50 anos no poder), bem como a laicidade de sua sociedade ameaçada seriamente por grupos armados, financiados e treinados pelo Ocidente, liderado pelos EUA. Devemos lembrar, porém, que estes grupos armados wahhabitas-salafistas são jogados contra a Rússia e a China, ainda que, por enquanto, em escala menor.
Nas semanas que se seguiram ao suposto ataque com armas químicas, enquanto os inspetores da ONU realizavam seus trabalhos dentro do território sírio, tanto Moscou quanto Teerã e Pequim refutavam as ações e as acusações que Washington, respaldado pelos seus aliados europeus e do Oriente Médio, fazia em relação ao governo do presidente Bashar al-Assad. O presidente ianque Barack Obama foi pressionado pelos setores mais extremistas do establishment a atacar a Síria, ímpeto que só foi refreado com o inédito veto do parlamento britânico no final de agosto. Ainda assim, Obama busca apoio do Congresso dos EUA para o ataque à Síria.
Ao mesmo tempo, o líder estadunidense, mergulhado na resolução econômica interna, enfrenta a impopularidade de uma agressão à Síria, que inclui até mesmo setores das forças armadas e dos setores “isolacionistas” do Partido Republicano, de oposição ao seu governo. Já os grupos mais duros da extrema-direita ianque (os falcões) entendem que uma ausência de resposta militar representa um enfraquecimento do poder global dos EUA e o fortalecimento do eixo asiático Moscou-Teerã-Pequim (se considerarmos a Rússia como nação asiática). Na verdade, podemos considerar esta pressão belicista dos falcões como uma ameaça velada de golpe de Estado caso a ação militar não fosse concretizada.
Enquanto isto, a resposta russa foi o envio de doze navios de guerra ao Mediterrâneo Oriental, entre os quais o porta-aviões Almirante Kuznetsov, além do “assassino de porta-aviões”, o grande cruzador Moskva. Há uma forte probabilidade de que a disposição russa de ir até as últimas consequências possa ter influenciado o veto do parlamento britânico à participação do reino na coalizão ocidental anti-síria. Isto pode ser observado na interceptação pelos russos de mísseis disparados pelos EUA, a partir da base da OTAN na Espanha, contra a Síria, em 3 de setembro último.
Obama, portanto, se encontrava num beco sem saída. Se atacasse, as consequências eram imprevisíveis. Se não atacasse, poderia ser desmoralizado internamente. Foi nesta situação constrangedora em que se encontrava Barack Obama que o presidente Vladimir Putin vislumbrou uma saída diplomática que evitasse a guerra que nenhum dos dois líderes queriam, afinal havia possibilidade concreta de um conflito mundial: a Síria entregaria seu arsenal de armas químicas ao controle internacional supervisionado pela ONU, sob a condição de que os EUA interrompessem a escalada militar na Síria direta ou indiretamente.
Esta saída diplomática foi imediatamente acolhida como uma espécie de “colete salva-vidas” pelo líder ianque, no que podemos entender como um recuo ou mesmo uma derrota para Washington. Sendo este episódio a possível primeira derrota total sofrida pelos EUA desde o fim da URSS, em 1991, após uma guerra desencadeada globalmente contra os países não-ocidentais para recolonizá-los, tendo esta assumida várias formas (intervenções diretas e indiretas e políticas econômicas neoliberais do FMI/Banco Mundial).
Como resultado final do conflito sírio-russo-americano, aparentemente está se configurando, embora seja muito cedo para afirmarmos, o fim do unilateralismo militar estadunidense e formação de uma multipolaridade marcada pela emergência de um eixo Moscou-Teerã-Pequim em contraposição, agora militar, ao eixo atlantista euro-americano (Ocidente), onde possivelmente poderá ter uma configuração política na Organização para a Cooperação de Xangai, fundada em 2001, para fazer frente à OTAN.
Também como consequência, de um lado, a projeção da figura do presidente Vladimir Putin como liderança mundial que respeita o Direito Internacional e garantidora da Paz mundial, em flagrante contraste com o Prêmio Nobel da “Paz” Barack Obama. Por outro lado, como as ações militares e políticas russas não ocorreram na forma de hostilidade retórica aberta, isto indica que a Rússia não pretende fazer nem uma ruptura e nem um enfrentamento aberto contra o Ocidente, como era o confronto na Guerra Fria (1945-91). Não é possível afirmar, porém, que as hostilidades dos EUA à Síria cessaram, mas elas encontrarão agora uma barreira.
Ramez Philippe Maalouf é historiador e doutorando em Geografia Humana pela USP; José Ailton Dutra Júnior é historiador e mestrando em História Econômica pela USP.