Correio da Cidadania

Obama e Rouhani: as ligações perigosas entre EUA e Irã

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A conversa telefônica entre o presidente (chefe de Estado e de governo) dos EUA Barack Obama e o presidente (chefe de governo) do Irã recentemente eleito, Hassan Rouhani, ocorrida nos últimos dias de setembro deste ano, não pode ser vistas com tanta surpresa como alguns meios de comunicação (pró-ocidentais e até mesmo da esquerda) alardeiam. Apesar de o telefonema surgir no contexto da derrota parcial dos EUA no enfrentamento com a Síria, que por muito pouco não levou o mundo a uma III Guerra Mundial (ou IV, se contarmos a Guerra Fria, 1945-91), ele está inserido numa histórica aliança tácita e paradoxal entre EUA e Irã no que concerne à geopolítica regional do Oriente Médio, mesmo após a Revolução Nacionalista-xiita e anti-ocidental iraniana de 1979, liderada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini. Portanto, mesmo sendo o primeiro contato direto entre o líder estadunidense e o segundo homem do Irã após a Revolução, trata-se de uma continuidade de uma diplomacia secreta entre os dois países, entabulada poucos momentos após a derrubada da monarquia pró-ocidental dos Pahlevi, em 1979.

 

Há fortes indícios de que o Irã, sob Khomeini, ainda no processo revolucionário, tenha colaborado com o Partido Republicano dos EUA, durante o ano de 1980, época da campanha presidencial em que o então presidente James Earl Carter procurava se reeleger pelo Partido Democrata. Segundo o jornalista estadunidense Robert Parry (então repórter do semanário Newsweek), a aliança anti-Carter não declarada entre Khomeini e republicanos contou ainda com a participação do então primeiro-ministro israelense Menachem Begin, do Partido Likud, ultra-liberal. Begin se tornou hostil a Carter durante o “processo de paz” com o Egito em Camp David e em Washington (1978-79), hostilidade que só aumentou com o repúdio (ainda que meramente formal) do presidente democrata à primeira grande invasão israelense do Líbano, em março de 1978.

 

Para piorar a situação de Carter, já desmoralizado internamente pela perda do Irã, ele planejou uma expedição militar ao país persa para resgatar diplomatas da embaixada dos EUA presos pelos iranianos, que os acusaram de terem participação direta na política repressiva do regime do xá. O resgate dos chamados “reféns da embaixada” pela mídia ocidental foi mal sucedido e Carter foi demonizado pelos iranianos, especialmente pelo líder Khomeini, que não tardou a se vingar ao se aliar aos maiores opositores do presidente democrata, os republicanos, então sob o comando do canastrão de Hollywood e ex-governador da Califórnia, Ronald Reagan, também concorrente à Casa Branca. O aiatolá preferiu manter os diplomatas ianques presos até alguns minutos após Reagan tomar posse, em janeiro de 1981, com o Oriente Médio eclodido pela Guerra Irã-Iraque (1980-88).

 

Oportunidades de negócios

 

A longa e, até então, a mais sangrenta guerra da história do Oriente Médio, desde as invasões mongóis do século XIII, abriu outras novas oportunidades para aproximação dos EUA com o Irã e com o Iraque. Os dois países médio-orientais estavam sendo governados, naquele momento, por grupos políticos nacionalistas-desenvolvimentistas, o que era intolerável para Washington. Todavia, é pouco lembrado que, no início da guerra, em setembro de 1980, o Irã contava não apenas com um maior e mais sofisticado arsenal de guerra do que o Iraque, como também recebia armas de grandes aliados dos EUA, como Israel (sob o governo do Likud), Brasil (sob a ditadura civil-militar) e Argentina (sob a ditadura da Junta Militar).

 

Não é, portanto, surpresa que o Iraque, menos populoso e menos armado, fosse contra-atacado pelo Irã nos dois primeiros anos da guerra. Os iranianos obtiveram apoio israelense, que atacou a usina de Osirak, encerrando o programa nuclear iraquiano. Quando a vantagem parecia favorecer em demasia o Irã, a ponto de este impor uma derrota ao Iraque, os EUA se voltaram em favor do Iraque, permitindo que Israel, Brasil e Argentina continuassem a vender armas ao país persa. Somente o Brasil (não declaradamente) e os EUA (indiretamente) vendiam armas aos dois beligerantes, ao que se somaria mais tarde a URSS a esta política de dupla face.

 

O comércio de armas dos EUA para o Irã, sob o regime dos aiatolás, era acobertado pela mídia ocidental para que os públicos estadunidense e iraniano não ficassem chocados com as estreitas relações comerciais entre duas nações inimigas na geopolítica mundial. Estas transações só foram reveladas abertamente pela imprensa libanesa, na metade da década de 1980, no auge da guerra no Líbano, sendo justificadas por Washington como ato de patriotismo, uma vez que o dinheiro arrecadado era usado na compra de armas para os contrarrevolucionários nicaraguenses que lutavam contra o governo sandinista de Daniel Ortega, cuja política externa era hostil aos interesses dos EUA. O chamado “Escândalo Irã-Contras” por muito pouco não encerrou o segundo mandato de Reagan, desgastando também a imagem interna de Israel, que comprovadamente cooperava com o regime dos aiatolás.

 

Colaborando com a invasão

 

O Iraque, no entanto, foi o principal ponto de convergência entre EUA, Irã e Israel (ainda que não declaradamente) mesmo após a Revolução Iraniana em 1979. Irã (sob os aiatolás) e Israel sempre estiveram empenhados em desestabilizar ou até mesmo desintegrar o país mesopotâmico para que fosse dividido em três Estados (um árabe xiita, um árabe sunita e um curdo). Uma política à qual os EUA jamais se opuseram e dela se beneficiariam com a invasão de 2003. Os curdos eram os alvos da política desestabilizadora de Israel e Irã: a criação de um Curdistão, rico em petróleo de Kirkuk e Mosul e “limpo” de árabes.

 

Durante a invasão anglo-americano-australiana do Iraque em 2003, diplomatas britânicos denunciaram a autorização dada aos EUA pelo presidente iraniano Mohammed Khatami para que usassem os aeroportos do Irã para o ataque ao país árabe vizinho. Segundo inúmeros historiadores e analistas internacionais, tais como Michael Chossudovsky, a participação iraniana no Iraque em momento algum favoreceu a formação de uma resistência unificada contra os invasores anglófonos. Irã e EUA estabeleceriam um condomínio sobre o Iraque, a partir das eleições iraquianas de 2005.

 

As alianças não declaradas entre Irã, sob o regime dos aiatolás, e EUA também ocorreram no ataque ocidental à Iugoslávia e na invasão do Afeganistão, em 2001, onde tropas especiais iranianas promoveram, ao lado das britânicas e estadunidenses, um ataque à cidade afegã de Herat, em dezembro de 2001.

 

Mudança de estratégia

 

Com este histórico, não podemos nos surpreender com a recente aproximação entre Obama e Rouhani. Obama, politicamente derrotado na Síria pela Rússia, parece estar seguindo as orientações de um dos principais mentores da geopolítica dos EUA, Zbigniew Brzezinski. Sua geoestratégia terrestre visa cercar a China com um movimento de “pinça”, ou seja, através de uma acomodação com a Rússia e com o Irã e de uma aliança estratégica com a Índia para estrangular o território chinês. A geoestratégia naval, consiste, porém, no controle dos estreitos e mares entre o Mediterrâneo e o Pacífico via Índico. A Austrália, neste sentido, serviria como uma base militar para este movimento.

 

Falta combinar com o inimigo, diriam alguns. Porém, os inimigos que Obama enfrenta, neste momento, não estão na Eurásia, mas em Washington: os cada vez mais hidrófobos republicanos, mais atrelados aos interesses petrolíferos e do médio-oriente, são mais afeitos ao confronto com o Irã respeitando as velhas alianças com Israel e Arábia Saudita, cujos governos estão enfurecidos com a vitória russo-sírio-iraniana. Não perdoando a derrota na Síria e percebendo em Obama uma liderança fracassada, não hesitam em colocar os EUA num “apagão” orçamentário.

 

No que se refere ao Irã, resta-nos saber se a liderança iraniana será seduzida mais uma vez pelo “canto da sereia” ocidental. É um movimento perigoso, pois em nenhuma das alianças tácitas e táticas com o Ocidente o regime dos aiatolás foi favorecido. E os ocidentais continuam a entender o governo de Teerã como uma cunha anti-americana no controle do heartland eurasiático, área chave do poder mundial.

 

Ramez Philippe Maalouf é historiador e Doutorando em Geografia Humana pela USP.

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