Eleições no Egito: derrota da democracia, vitória de Israel
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- Ramez Philippe Maalouf
- 03/06/2014
Na última semana de maio de 2014, testemunhamos as eleições presidenciais no Egito, as primeiras após o golpe militar de julho de 2013, que derrubou o então presidente Mohammed Mursi e instituiu uma ditadura do Comando Supremo das Forças Armadas (CSFA), liderada pelo marechal Abdel Fatah al-Sissi, também ministro da Defesa. Apenas dois candidatos se apresentaram ao pleito eleitoral: o próprio marechal al-Sissi e o veterano político nasserista Hamdin Sabbahi, pela Corrente Popular Egípcia. Sem sombra de dúvida, as eleições presidenciais visam tão somente cumprir meras formalidades para que as aparências de democracia sejam mantidas, de forma a não causar constrangimentos à ajuda anual financeiro-militar dos EUA de US$ 1,5 bilhão, estabelecida com o Tratado de Paz egípcio-israelense de 1979.
Os EUA haviam esfriado as relações com os militares em decorrência da derrubada do presidente Mursi, líder da Irmandade Muçulmana (IM), que é cliente do poder ianque. O golpe contra Mursi pegou de surpresa o ditador Barak Obama, que, enfurecido, ameaçou cortar a ajuda financeiro-militar aos egípcios. A ditadura militar não parou por aí, desencadeou uma feroz repressão à IM, assassinando e prendendo suas principais lideranças implacavelmente. Porém, nem mesmo os sindicatos, partidos e movimentos de esquerda, que ofereceram apoio ao golpe e até mesmo à ditadura, escaparam da brutal repressão. Mais de 1400 pessoas foram assassinadas pelo regime militar desde o golpe. As “eleições” marcam, portanto, a reaproximação dos EUA com a ditadura militar de facto no poder no Cairo.
Os militares não deixaram dúvidas de que não querem repartir o poder com mais ninguém. Proibidos por inúmeras cláusulas dos Acordos de Paz com Israel, no final dos anos 1970, de aumentarem o contingente das Forças Armadas acima de um determinado patamar, os militares passaram, desde então, a usar a ajuda financeira dos EUA para comprarem empresas nos mais diversos setores da economia egípcia. Desta forma, passaram a controlar grande parte da economia do país, convertendo-se na classe social dominante.
Ao tentar limitar o poder das forças armadas, Mohammed Mursi, como presidente do Egito, ameaçou os interesses econômicos dos militares. Esta ameaça se acirrou uma vez que a IM também detém uma forte penetração na economia, principalmente porque recebe doações de egípcios que trabalham nas petromonarquias árabes do Golfo Árabe-Pérsico. Desde que a IM foi criada na década de 1920, grande parte de seus integrantes são pequenos e médios comerciantes, que promovem, entre outras atividades, trabalhos assistencialistas com a população mais pobre desassistida pelo poder público, que é guiado pelas políticas liberais desde a ditadura do brigadeiro Anwar al-Sadat (1971-81). Esta inserção IM na economia poderia ser ampliada com o governo neoliberal e impopular de Mursi, o que pode explicar a decisão do CSFA de tomar o poder sem intermediários.
Desta forma, não podemos nos surpreender com os vícios do processo eleitoral para a presidência do Egito em fins de maio de 2014, que, tal como as eleições de 2012, buscaram favorecer um candidato que é apoiado pelos EUA, no caso o marechal al-Sissi, também apoiado pela Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (EAU). Várias pessoas não conseguiram o número de assinaturas necessárias para registrar a candidatura. Ao contrário do pleito de 2012, onde 13 candidatos concorreram à chefia do Estado, apenas duas pessoas conseguiram registrar candidaturas, uma vez que a IM pediu aos egípcios que boicotassem as eleições. O apelo, contudo, parece que foi atendido, mas não por obediência ao movimento político-religioso.
O que chama atenção no processo eleitoral egípcio é a candidatura do pan-arabista nasserista e esquerdista Hamdin Sabbahi. Nascido de uma família pobre, foi líder estudantil na tradicional Universidade do Cairo, na década de 1970, onde se notabilizou pela defesa do nasserismo e uma forte oposição à ditadura do brigadeiro Anwar al-Sadat. Foi preso inúmeras vezes por suas atividades políticas em oposição às ditaduras liberais de Sadat e Mubarak. Além disto, sempre se declarou contrário aos acordos de paz entre Egito e Israel. Durante a campanha eleitoral, chegou a afirmar que anularia o Tratado de Paz e em outro momento disse que submeteria o mesmo a referendo popular. Nos massacres promovidos por Israel no Líbano (2006) e na Faixa de Gaza (2008-9), prestou solidariedade às vítimas árabes libanesas e palestinas e declarou apoio às resistências anti-ocupação israelense. Em 2012, tentou se eleger presidente egípcio, mas ficou em terceiro lugar. Por suas posições políticas nacionalistas e esquerdistas, Sabbahi tem apoio popular, principalmente entre os movimentos esquerdistas, sindicatos e jovens universitários. Sua vitória nas atuais eleições de 2014 significaria uma derrota para os EUA, Arábia Saudita e Israel.
As “eleições” de 26 e 27 de maio de 2014 foram, portanto, dirigidas para garantir a vitória do ditador de facto marechal al-Sissi, em nome da manutenção do Tratado de paz, que é a fiadora da ajuda financeira-militar dos EUA. Não houve, por exemplo, espaço para a oposição nas redes de televisão. E de fato, de tão manipuladas e sem vislumbrarem qualquer mudança de rumo da política recessiva liberal e pró-israelense pela ditadura, apenas 46% do eleitorado compareceram às urnas, uma abstenção muito superior à das eleições de 2012. Com tamanha abstenção eleitoral, o marechal al-Sissi foi “eleito” com 96% dos votos válidos, o que corresponde a 24 milhões de votos de um eleitorado de 54 milhões. Tal fato desmoraliza o pleito eleitoral. O candidato oposicionista, Hamdin Sabbahi, conquistou apenas 3,8% dos votos. A desilusão popular foi tão alta que compromete o objetivo de al-Sissi de dar legitimidade à ditadura.
Sem apresentar qualquer alternativa ao modelo liberal e à submissão ao Ocidente (Israel e EUA, sobretudo) e com altíssimo índice de abstenção, al-Sissi deve enfrentar mais manifestações populares e uma oposição mais aguerrida com a participação da IM. O marechal ditador sequer cogita em romper os acordos de paz com Israel; em troca receberá um pacote de ajuda dos da Arábia Saudita e dos EUA na ordem de US$ 20 bilhões.
Desde o golpe de julho de 2013, as duas petromonarquias árabes enviaram cerca de US$ 12 bilhões para o governo militar egípcio. Com este quadro político –a derrota momentânea dos movimentos populares pela democracia, que derrubou a longa ditadura do brigadeiro Hosni Mubarak, em 2011 –, Israel segue sendo o maior vencedor desta “eleição” egípcia, pois terá mãos livres para continuar o processo de limpeza étnica e genocídio dos palestinos nos territórios que ocupa militarmente desde 1967, principalmente na Faixa de Gaza, convertida no maior campo de concentração a céu aberto do mundo, em decorrência do bloqueio, por ar, mar e terra, imposto por egípcios e israelenses, desde a retirada dos “colonos” judeus sionistas da região em 2005.
Ramez Philippe Maalouf é historiador (UERJ), mestre e doutorando em Geografia Humana (USP).