Como os EUA destroem o Iraque e a Síria
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- Ramez Philippe Maalouf
- 27/06/2014
A recente ofensiva militar do grupo armado Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL, ou Islamic State of Iraq and Levante – ISIL, ou Islamic State of Iraq and Sham – ISIS), que tomou a cidade “petrolífera” de Mossul, norte do Iraque, em 10 de junho de 2014, é mais um round da guerra dos EUA contra o eixo formado pela China, Rússia e Irã, no qual, na Ásia, gravitam a Coreia do Norte, a Síria, a Armênia e parcialmente o Líbano. Uma espécie de coalizão de países, ainda que não totalmente articulada geoestrategicamente, que podemos chamar de “eixo da resistência”. Ou seja, uma aliança que resiste ao avanço genocida, sobre toda a humanidade, da hegemonia absoluta da classe/casta racial de proprietários brancos anglo-saxões protestantes e pós-protestantes, cuja base territorial é formada pelo eixo EUA-Reino Unido.
Ao que tudo indica, os curdos e os oficiais do exército iraquiano (remontado pelos EUA durante a ocupação militar entre 2003 e 2011) estacionados na cidade não ofereceram resistência alguma ao ataque do ISIS. Para dissipar qualquer consideração de ordem sectária, grande parte dos oficiais que entregaram seus postos ao ISIS, durante a ofensiva em Mossul, era de confissão xiita. Desde o início da guerra da Síria, na verdade uma invasão de mais de 100 mil mercenários ditos “jihadistas” – sic, armados, treinados e financiados pelos EUA por intermédio de aliados locais (Jordânia, Catar, Turquia e Arábia Saudita) para combater e derrubar o governo do partido nacionalista e socialista Ba’ath de Bashar al-Assad, a partir de março de 2011, o ciclo de violência foi lentamente retomado no Iraque.
Conforme o governo sírio foi obtendo significativas vitórias a partir de 2012, o Iraque foi sendo alvo de inúmeros atentados de carácter sectário. Os alvos iraquianos eram civis, mercados, bairros ou mesquitas frequentados ou habitados por “xiitas”. A progressão destes atentados aumentava na medida em que o governo iraquiano, imposto pela ocupação ianque e iraniana, se empenhava cada vez mais no auxílio a Damasco, que, em 2013, já demonstrava que a vitória militar contra a invasão mercenária era irreversível. Como os mercenários concentraram suas forças no ataque às principais cidades sírias (Homs, Hama, Alepo e Damasco) que se localizam no oeste do país, as forças governamentais realizaram a contra-ofensiva nesta região. O leste do país, menos populoso e mais desertificado, ficou sob o controle dos mercenários do ISIS, e o nordeste, sob o domínio curdo, que se declarou leal ao governo. Os mercenários do ISIS invadiram majoritariamente a Síria pela fronteira iraquiana, cujo controle de Bagdá era frouxo. Isto demonstra claramente que os EUA jamais estiveram realmente empenhados em reconstruir o Iraque após a devastadora invasão de 2003.
A balcanização do Iraque
Na invasão anglo-australo-americana do Iraque de 2003, apoiada pelo Irã, Israel e os curdos, o objetivo principal era o de reduzir o país mesopotâmico aos escombros, ou, “devolvê-lo à Idade da Pedra”. Desta forma, George W. Bush, o comandante supremo do ataque, visava dar o primeiro passo para impor o domínio sobre o Grande Oriente Médio e romper a possibilidade real de uma aliança entre os países muçulmanos (leia-se Iraque e Irã) com o leste asiático (leia-se China). No entanto, os ianques foram de crueldade ímpar na ocupação do Iraque, capaz de fazer a invasão mongol, que destruiu a civilização árabe-islâmica do Império Abássida no século XIII, um passeio no campo. Além de terem exterminado mais de 1,5 milhão de iraquianos, os EUA destruíram universidades, arrasaram deliberadamente a infraestrutura do país (eletricidade, água, esgoto, gás), desmantelaram as forças armadas e policiais iraquianas, permitiram/incentivaram o assassinato de professores universitários, o saque do tesouro arqueológico e do patrimônio histórico-cultural do país, o estupro generalizado de mulheres e crianças, a tortura sistemática e indiscriminada de civis e de guerrilheiros, estimularam a prostituição de crianças, entre outros crimes contra a Humanidade.
Como a “cereja do bolo” deste genocídio milimetricamente planejado, a Casa Branca formou “esquadrões da morte”, tendo para isto trazido para a “administração” da ocupação militar o embaixador John Negroponte, sinistra figura que planejou a formação de grupos de extermínio nas guerras contra os governos e guerrilhas esquerdistas da América Central, na década de 1980. Os primeiros esquadrões da morte formados pelos ianques foram curdos, os pershmergas, em atividade desde os anos 1970 contra Bagdá. Eles foram responsáveis, durante a ofensiva de 2003, pelo massacre/expulsão das populações árabes, turcomenas e yazeditas, no norte do Iraque, região denominada pela mídia ocidental de “Curdistão”, ou seja, o território a ser reservado exclusivamente aos curdos, ideia monstruosa que foi aceita até mesmo em meios ditos “progressistas” do Ocidente. [Lembremo-nos que os curdos participaram, junto com os turcos, no genocídio dos armênios na Anatólia, durante a I Guerra Mundial (1914-18), “limpando” o leste da Turquia da presença armênia, território que se tornou, desta forma, de “maioria” curda].
Portanto, era verdadeira a afirmação de W. Bush de que a “guerra” não era por petróleo. O ataque dos EUA era para destruir o Iraque como Estado e como nação, visando erradicar qualquer possibilidade do país árabe mesopotâmico de se constituir como um centro irradiador de um processo civilizatório, uma vez que a modernização da sociedade iraquiana promovida pelos governos militares nacionalistas, especialmente os do regime do partido Ba’ath (inclusive o de Saddam Hussein), foi muito bem sucedida. O petróleo, na verdade, foi um “bônus extra”.
Não surpreende, portanto, neste cenário dantesco de extermínio sistemático de uma nação, a formação de uma seção iraquiana da al-Qaeda, que daria origem ao atual EIIL ou ISIS. A ferocidade da invasão, que exterminou mais de 650 mil iraquianos entre 2003 e 2006, segundo estudos da insuspeita Universidade Johns Hopkins, levou à formação de uma resistência iraquiana. Os ianques, para fazerem frear a dura resistência dos iraquianos, que chegou a eliminar 100 soldados ianques por mês entre 2006 e 2007, mudaram a tática de marginalizar os “sunitas”. O general David Petraeus teve a “brilhante” ideia de dar início a uma guerra sectária entre as comunidades árabes sunitas e xiitas do Iraque, que até então conviviam e coexistiam mescladas há milênio e meio, mesmo sob o multissecular domínio otomano, cujo império se declarava defensor da ortodoxia sunita.
O ISIS teve um importante papel neste conflito. De repente, carros-bombas começaram a explodir em mesquitas sunitas e xiitas em Najaf, Karbala e Samarra, em 2006. Em Bagdá, as milícias ditas “xiitas” lideradas por Moqtada al-Sadr (integrante de um dos clãs mais influentes das comunidades xiitas do Oriente Médio) deram início ao combate às tropas invasoras ao mesmo tempo em que promoviam a “limpeza confessional” da população “sunita” dos bairros ditos majoritariamente “xiitas”. O objetivo claro era o de dividir o Iraque em três territórios étnica e confessionalmente homogêneos, isto é, a balcanização do país mesopotâmico. O norte seria destinado aos curdos, o sul, aos “xiitas”, e o leste, aos “sunitas”, conforme uma antiga geoestratégia elaborada pelas lideranças sionistas na Palestina, ainda na década de 1930, segundo o historiador palestino Nur Masalha.
O discurso sectário e racista dos EUA foi uma das bases legitimadoras da invasão de 2003. Para a Casa Branca, Saddam Hussein era um cruel ditador da “minoria” sunita que oprimia brutalmente a “maioria xiita” e os curdos. (De maneira análoga, os ianques acusaram os governos de Hafez e Bashar al-Assad na Síria de serem “uma cruel ditadura da minoria alauíta que oprimia a maioria sunita”). Tal discurso sectário e racista também foi aceito acrítica e surpreendentemente pela esquerda em todo o mundo, salvo raras exceções, o que demonstra claramente um profundo eurocentrismo dos chamados “progressistas” na leitura do mundo não ocidental. Neste aspecto, não nos surpreendemos, portanto, com a adesão do Partido Comunista Iraquiano (na verdade, alguns integrantes ditos comunistas que usaram a sigla para se aliarem aos EUA) à invasão ianque e ao governo fantoche imposto pela ocupação em Bagdá, em 2003.
Novo ‘governo’ para um novo país
Em 1 de julho de 2004, foi imposto pela ocupação um governo dito autóctone com a tarefa de promover eleições em 2005; no entanto, as leis eleitorais consolidavam o sectarismo confessional. Com uma Constituição imposta pelos invasores, o Iraque deixou de ser oficialmente um país árabe e o poder seria repartido entre as confissões religiosas, tal como no Líbano: assim, a presidência da república cabia a um curdo, a vice-presidência a um “sunita” e o primeiro-ministro, com poderes muito ampliados, deveria ser um “xiita”.
Tratava-se de uma aberração política uma vez que os governos do Ba’ath não permitiam uma divisão política em tal base: Saddam Hussein governava com vários vice-presidentes das mais diversas confissões religiosas (curdos, “xiitas”, “sunitas” e “cristãos”, como Tarik Aziz). Inúmeros curdos se tornaram ministros de Estado e “xiitas” ocupavam os mais altos escalões da república iraquiana (chefias militares, ministérios, comando do Ba’ath). Na verdade, grande parte do exército iraquiano era formada por “xiitas”, inclusive o alto oficialato. Foi este mesmo exército quem esmagou a revolta sectária e separatista de “xiitas” no sul do Iraque, em 1991, promovida pelos EUA.
A imposição, pelas tropas ianques, de um governo em bases sectárias no Iraque foi apoiada pelo regime dos aiatolás do Irã, tido como inimigo de Washington D.C. desde a Revolução islâmico-nacionalista de 1979. Porém, mais uma vez, o Iraque fez convergir os interesses do Irã, dos EUA e de Israel. Ainda em 2003, pouco antes da ofensiva, o presidente iraniano Mohammed Khatami autorizou o uso do espaço aéreo do país (certamente com o consentimento do líder supremo do Irã, Ali Khamenei) pelos ianques contra o Iraque; além disto, aceitou cortar laços com o grupo armado e partido político libanês Hizbollah, de orientação confessional xiita, na resistência contra a ocupação militar israelense do sul do Líbano. Em troca destas ações, os iranianos exigiam o direito ao prosseguimento do programa nuclear para fins pacíficos. Tal acordo oferecido ao Ocidente foi rejeitado parcialmente.
De fato, segundo o historiador argentino-brasileiro Osvaldo Coggiola, o Irã teria proibido as milícias iraquianas sob seu controle de combaterem as forças invasoras. Os mercenários pró-Irã não se furtaram em expulsar os 50 mil refugiados palestinos que haviam se deslocado para o país mesopotâmico com a derrota árabe na fundação de Israel, em 1948-49. A guerra sectária fomentada pelos generais ianques invasores promoveu ainda a expulsão de quase a totalidade das comunidades cristãs iraquianas (cerca de 1 milhão de pessoas), após sofrerem massacres e perseguições tanto pelas armas dos pershmergas quanto pelas milícias “xiitas”. Mais de 2 milhões de iraquianos se refugiaram em outros países, especialmente, os vizinhos (como a Síria, principalmente, a Jordânia, a Turquia e o Líbano). A geoestratégia do exército dos EUA foi bem-sucedida: em 2008, governado por uma máfia sectária entranhada no pouco que restou do Estado iraquiano, o país estava de facto divido em três territórios com populações étnico-confessionais razoavelmente homogêneas; o sul se tornou predominantemente “xiita”, o centro-oeste, “sunita”, e o norte, curdo. A violência sectária diminuíra consideravelmente os ataques da resistência.
Pouco a pouco, com a “purificação” dos territórios completada, a guerra “civil” diminuiu de intensidade. Mas a invasão da Síria pelos mercenários pagos, treinados e armados pelos EUA, a partir de março de 2011, fez retornar lentamente uma onda de atentados a carros-bombas em bairros de maioria “xiita” em Bagdá. O Iraque era uma das bases de penetração dos mercenários clientes dos EUA (o ISIS) em território sírio para derrubar o governo de Bashar al-Assad, que, para a Casa Branca, havia cruzado a linha vermelha ao estreitar laços com Saddam Hussein, lançando o temor de uma unidade ba’athista entre Síria e Iraque.
Pelo fato de Bashar ter se negado a apoiar a invasão do Iraque em 2003 (ao contrário do que fizera seu pai, Hafez, na primeira invasão de 1991), os EUA promoveram um processo de desestabilização da Síria: primeiramente, forçando a retirada das suas tropas estacionadas no Líbano há quase trinta anos, em 2005; segundo, autorizando os primeiros ataques israelenses ao território sírio desde a guerra do Yom Kippur (1973), sob o pretexto de desmantelar supostas bases “terroristas” palestinas, em 2003; terceiro, patrocinando uma nova invasão israelense do Líbano, que assassinou mais de 1200 árabes (libaneses e palestinos), repelida pelo Hizbollah, milícia armada e financiada pelo Irã e pela Síria; quarto, permitindo um ataque israelense a uma suposta fábrica de artefatos nucleares construída por norte-coreanos, localizada ao norte da Síria, em 2007. Nenhuma destas ofensivas abalou o governo de Damasco.
Somente com a eclosão da chamada “Primavera Árabe”, em 2011, uma rebelião popular disseminada por todo o mundo árabe, exigindo o fim dos quase eternos regimes autoritários árabes (sendo a maioria cliente dos EUA), que Washington D.C. percebeu a oportunidade para mudar os regimes pouco simpáticos ou de pouca utilidade ao seu poder no mundo árabe. Após a derrubada do ditador do Egito aliado, o brigadeiro Hosni Mubarak, no poder desde 1981, era hora de derrubar o governo independente do Ba’ath no poder em Damasco desde 1963 e sob a presidência de Bashar al-Assad desde 2000.
Não tardou a se planejar e executar uma invasão da Síria por mais de 100 mil mercenários ditos “islâmicos” financiados pelos EUA e recrutados pela Arábia Saudita mundo afora, em 2011. A partir da segunda metade de 2012, já se configurava a vitória irreversível do governo de Bashar al-Assad sobre os terroristas. Os invasores se concentravam ao sudoeste, oeste e noroeste do país, estendendo-se por toda fronteira com a Turquia. Eles também penetravam pelo sul, através da fronteira com a Jordânia. Em decorrência da enorme pressão das tropas sírias sobre os mercenários no oeste do país, o ISIS, que já estava empenhado numa campanha terrorista no Iraque desde 2012, iniciou seus ataques no leste da Síria, junto à fronteira com o Iraque, tomando a província de Deir al-Zor, ao longo dos rios Tigre e Eufrates.
Segundo consta, o ISIS é treinado pelas forças especiais do exército dos EUA na Jordânia. Entretanto, ao invés de se aliarem à Frente al-Nusra, seção síria da al-Qaeda, o ISIS passou a combatê-la. Não faltaram acusações de que o governo sírio tivesse algum tipo de aliança com o ISIS para dividir os grupos armados anti-Damasco. Com a divisão entre os “rebeldes” e a vitoriosa contraofensiva de Bashar al-Assad em marcha, Washington D.C. ameaçou entrar em guerra diretamente contra a Síria sob o pretexto de defender o povo sírio do suposto ataque do exército com armas químicas contra o subúrbio da capital Damasco entre agosto e setembro de 2013. Tal pretexto havia sido usado contra Saddam Hussein para justificar a invasão ianque do Iraque, em 1991. O Ocidente acusou Bagdá de ter usado armas químicas contra os curdos num vilarejo, Halabja, ao norte do Iraque, em 1988, assassinando milhares de pessoas. Mais tarde, soube-se que o ataque não foi realizado pelo governo iraquiano, mas esta revelação jamais teve ampla divulgação pela mídia ocidental.
“Geoestratégia do caos”
A ameaça de guerra direta dos EUA à Síria, que poderia levar a uma III Guerra Mundial aberta, em setembro de 2013, dado o deslocamento de tropas chinesas e iranianas e da frota russa em direção ao país árabe, foi neutralizada pela diplomacia russa. Derrotados momentaneamente no Oriente Médio, os EUA deslocaram sua guerra contra o “eixo da resistência” para a Ucrânia, onde promoveram um golpe de Estado liderado por nazistas e liberais em fevereiro de 2014, dando início a uma campanha de limpeza étnica contra a população russófila ucraniana. Centenas de agentes do FBI e da CIA foram deslocados para a Ucrânia para apoiar o governo nazista-liberal imposto pelo golpe de fevereiro de 2014. O FBI ficou encarregado de criar uma polícia política na Ucrânia, assim como a CIA de dar suporte aos nazistas para “caçar” e expulsar russos e até mesmo judeus. Em resposta, a Rússia retomou a Península da Criméia, que havia sido cedida por Moscou a então república soviética da Ucrânia na década de 1950. Pouco a pouco, várias províncias do leste da Ucrânia pediram adesão à Federação Russa, temendo a política nazista-liberal de arrocho salarial, o desmantelamento do precário seguro social e a campanha de limpeza étnica. Além disto, com o embargo à Rússia imposto pelos EUA, Moscou e Pequim se aproximaram, estreitando laços econômicos através de investimentos em infraestrutura para o comércio de gás entre os dois países. Com mais este revés na política externa, Washington D.C. está instilando “guerras civis” na Ucrânia, para desestabilizar a Rússia, e no Iraque, para desestabilizar a Síria e o Irã.
A “geoestratégia do caos” é a aposta de Barack Obama, que demonstra não ter política externa coerente desde a derrota na Síria em setembro de 2013. O ISIS, que é financiado pelos EUA e Arábia Saudita e com discreto apoio do “Curdistão”, está concentrando suas operações militares na fronteira iraquiana com a Arábia Saudita, Jordânia e a Síria, aterrorizando a população local com o uso de extrema violência. Neste sentido, o grupo terrorista anti-xiita visa criar um “corredor” ligando o reino saudita à Síria, facilitando o apoio logístico à ofensiva ianque-saudita sobre o território sírio. O Iraque é governado por uma ditadura de mafiosos “xiitas”, clientes do Irã e dos EUA, encabeçada pelo primeiro-ministro Nuri al-Maliki, que está sofrendo contestação de quase toda população iraquiana.
Em janeiro e fevereiro de 2011, no ápice da chamada “Primavera Árabe”, a população iraquiana realizou inúmeras manifestações contra o autoritarismo, a corrupção generalizada e as políticas ultra-liberais e sectárias do governo de al-Maliki, que não sanou a destruição deixada pela ocupação. Como resposta, o primeiro-ministro desencadeou uma feroz repressão, ordenando a prisão de milhares de manifestantes. Organismos de defesa dos direitos humanos acusaram o governo de prender, torturar e assassinar inúmeras pessoas que se manifestaram contra o governo. Simultaneamente a estes protestos, o ISIS retomou a campanha terrorista sectária anti-xiita, assassinando civis em vários atentados com carros bombas. A violência retornava aos patamares da época da ocupação militar, especialmente entre os anos de 2006 e 2008, no apogeu da guerra sectária promovida pelo exército dos EUA.
Desta forma, o premier Nuri al-Maliki intensificou a cooperação com a Síria, tentando reprimir as ações do grupo terrorista. Esta cooperação com Damasco-Bagdá, sob as benções de Teerã, se tornou intolerável aos olhos dos EUA, de Israel e da Arábia Saudita. Esta colaboração chegou ao ápice quando al-Maliki comprou armas da Rússia, o que certamente deve ter acendido a luz vermelha em Washington D.C. Portanto, o ataque do ISIS tem por um dos seus objetivos desestabilizar o governo de al-Maliki para forçar a sua derrubada. Seria este o motivo de o corrupto parlamento iraquiano, majoritariamente “xiita”, não ter declarado guerra ao ISIS durante a captura de Mossul? Cada vez mais, fica evidente que a geoestratégia balcanizadora, posta em prática parcialmente pelo general David Petraeus, esteja por detrás da ofensiva do grupo terrorista.
É preciso ressaltar que o recrudescimento das ações do ISIS no Iraque “coincidiu” com a vitoriosa campanha de reeleição do presidente sírio Bashar al-Assad no começo de junho, onde o comparecimento dos eleitores foi maciço. Bashar foi reeleito para mais um mandato de sete anos, entre 2014 e 2021, com mais de 75% dos votos.
Um segundo revés eleitoral para os EUA no Oriente Médio foi a recusa do parlamento libanês em “eleger” o sinistro líder das Forças Libanesas, o ultra-direitista liberal “cristão” Samir Geagea, para a presidência do Líbano, uma república liberal e sectária, no final de maio de 2014. Geagea e sua milícia “cristã” sectária promoveram inúmeros massacres contra libaneses drusos e, inclusive, de cristãos durante a Guerra do Líbano, entre 1975 e 1990. Geagea se notabilizou pela sua fidelidade à aliança com Israel, o ódio mortal à Síria, aos libaneses muçulmanos e, sobretudo, aos palestinos, sendo um dos mentores do Massacre de Sabra e Chatila de 1982, embora tenha cooperado com a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), quando esta foi atacada pelo Amal, milícia “xiita” pró-Síria, entre 1985 e 1988. Ele foi acusado inclusive de ter massacrado a família do líder da milícia Marada, também “cristã” e ultra-liberal, “Tony” Frangieh, cujo “pecado” era ser simpático à Síria, quando Israel realizou a sua primeira grande invasão do Líbano em 1978. Segundo alguns relatos da imprensa libanesa, Geagea teria pessoalmente degolado a filha, ainda criança, e estuprado a esposa de “Tony” na presença do próprio, antes de assassinar toda a família. É este mesmo Geagea o “ungido” pelos EUA e Arábia Saudita para presidir o Líbano. O problema é que, com este currículo, o parlamento libanês não endossou tal sacramento. Desta forma, o Líbano permanece sem presidente da República desde o fim de maio de 2014.
Com a possível eleição de Geagea no Líbano, na frente oeste, e a retomada da ofensiva anti-Ba’ath pelo ISIS, na frente leste, os EUA acreditavam pressionar e encurralar Bashar al-Assad. Esta estratégia está falhando. Pelo visto, Barack Obama precisará revisar sua geoestratégia eurasiática se quiser continuar a ter chances de fazer um sucessor na Casa Branca. Colecionando fracassos no Oriente Médio e na Ucrânia, crescem as chances de os republicanos, muito mais sedentos de sangue do que Obama (como se isto fosse possível), ocuparem a presidência e retomarem a ofensiva numa escalada de violência ainda muito superior à dos últimos dois últimos mandatos presidenciais.
Afinal, foi pelo direito de exterminar os índios para roubar-lhes suas terras que a casta/classe racial de proprietários brancos anglo-saxões protestantes da América rompeu seus laços coloniais com a Inglaterra. Portanto, a promoção de uma III Guerra Mundial aberta e nuclear é uma possibilidade concreta, e a destruição da Síria e do Iraque, dois pólos civilizatórios multimilenares, é um passo decisivo para os EUA executarem este projeto apocalíptico.
Ramez Philippe Maalouf é historiador (Uerj), mestre e doutorando em Geografia Humana (USP)