Aquilo que não enxerguei em Sergio Moro: a violação
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- Telma Monteiro
- 25/06/2019
Imagem: El Pais
Para a maioria dos brasileiros, a Lava Jato se transformou numa lavagem d’alma. Após décadas de desmandos de políticos no exercício de seus mandatos, finalmente chegara uma espécie de “redentor” classificado como o salvador da Pátria. Sergio Moro seria por quase cinco anos aquele super-homem que nossos olhos supervalorizariam.
Eu também acreditei. Confesso, que até hoje (21 de junho de 2019), Sérgio Moro era para mim um juiz imbuído de fazer justiça, punindo a corrupção que grassa no Brasil. A Lava Jato deu-me esperanças de um Brasil melhor, onde a justiça seria feita e empresas corruptoras e agentes públicos corruptos pagariam pelos seus crimes.
A Lava Jato então perdeu seu ídolo, justiceiro, aquele que era considerado imaculado em meio a tantos crimes contra os cidadãos, para o governo recém-eleito. Mas, hoje, isso é passado e o sonho de justiça se foi como fumaça.
Sergio Moro foi desnudado. Se por jornalista ou hacker, a mim não importa mais. Tentei entender o que faria um homem daquela envergadura, que levara tantos comprovadamente criminosos para o cárcere, largar a magistratura para ingressar num voo cego, num governo que se delineava autoritário, misógino, fascista, homofóbico, racista, armamentista, deslumbrado e pútrido.
Para muitos o ingresso de Moro nessa tormenta governamental se justificava pelo propósito de colocar em prática seu projeto de transformação do sistema penal brasileiro, de diminuir a violência e dar segurança aos cidadãos que sofrem em todo o Brasil.
A primeira impressão de que eu poderia estar equivocada foi, quando, já nos primeiros dias de Bolsonaro na presidência, diante da nomeação de generais e que tais para participarem do governo, o superjuiz, até então calado, continuou calado e passou a seguir o “mito” como se estivesse hipnotizado por um Hitler do século 21.
Os dias foram passando, semanas, meses e Moro continuou calado e não esboçou nenhum gesto que demonstrasse seu descontentamento com o desmanche, por exemplo, do sistema ambiental do país, ou com a possibilidade de transferir o ministério do Meio Ambiente para a pasta da agricultura, ou com o decreto de porte e posse de armas de fogo para os cidadãos comuns. Moro prosseguiu fazendo vistas grossas aos desmandos de pouco menos de seis meses desse governo inóspito e corrosivo de Bolsonaro e seus filhotes.
Moro se manteve impávido quando seu projeto pretenso de segurança foi deixado de lado pelo Congresso; ou quando Ricardo Salles desmanchou o Ibama, o ICMBio, a Funai – órgão, inclusive, que pertenceria à sua pasta, da Justiça; ou quando Damares deu amplas manifestações de homofobia e loucura; ou quando o ministro da Educação chamou estudantes de imbecis inúteis; ou quando um governo inativo achou que governaria por decretos ou medidas provisórias.
Aguardei Moro em cada momento desses citados e por muitos outros que me fariam estender este texto. Moro, pensei, você foi magistrado reconhecido internacionalmente, homenageado, respeitado até então por ter desbaratado uma quadrilha na Petrobras, por ter colocado poderosos na cadeia, o que está esperando para se manifestar ou se libertar dessa loucura que contraria todos os preceitos cultuados por um juiz? Tentei, mais uma vez, entender o que o levaria ao silêncio, à pretensa ignorância e descaso em relação ao todo atordoante do que estamos vivenciando. Mesmo que não fosse de sua alçada.
Li tudo sobre todas as decisões desse governo que está levando o país ao abismo da insanidade coletiva e não ouvi uma só palavra de contrariedade do super-homem impoluto que Moro fora ou pensávamos que era. Ele não vai renunciar ao cargo depois de tudo isso? Ele não vai se manifestar contra as ações que contrariavam a toga que usava ou o juramento que na certa fizera? Que contrariava completamente a imagem que construíra e o guindara aos píncaros da justiça?
Não, ele não fez nada, não contestou, não emitiu opinião, mesmo não sendo mais juiz, embora titular da pasta da Justiça, sobre decisões do governo que contrariam a justiça. Aquela mesma justiça que ele parecia ter exercido com Lula preso, o seu grande triunfo. Talvez pensasse que a história já o iria imortalizar.
Não, ele não mereceu mais as minhas desculpas. Sua fraqueza ficou desnuda e sua vaidade evidente demais.
Sergio Moro, então, se desmanchou como uma escultura de areia ao simples sopro de uma brisa. Eu não quis acreditar que ele violara todas as regras, todos os ditames de uma magistratura, enquanto magistrado. Esperei demais, mesmo depois do depoimento no Senado, quando ele parecia tão seguro e sereno, se absteve de se desculpar pelos diálogos que não deveria ter tido no exercício da magistratura, em plena Lava Jato. Não se lembrou, ou fingiu não lembrar, dos artigos do Código de Conduta da Magistratura ou do Código de Processo Penal, ou ainda, o mais importante: da Constituição Federal.
O tempo apagou todos esses ditames que norteiam o desempenho de um juiz? Ou foi a ambição de se imaginar no topo do mundo como Presidente do Brasil ou, menos ambicioso, como Magistrado do Supremo Tribunal Federal.
A verdade, infelizmente, é que você se tornou dispensável, Moro. Já serviu para o fim principal de dar credibilidade e crença de justiça ao governo eleito. Você quase conseguiu, mas não se pode enganar todos o tempo todo.
Minha grande amiga de muitas lutas, Zuleica Nycz, escreveu e me ajudou a enxergar:
“Sobre outro argumento que você [eu, Telma] usou, notei que você mesma reconheceu que ele foi movido pela vaidade ao aceitar o cargo de ministro. Reconhece que ele é humano e tem defeitos. Logo, ele não tem direito de violar as regras da boa conduta do juiz, por estar agindo como ‘herói da luta anticorrupção’ porque não está isento da vaidade. Ou seja, ele não pode estar acima da lei somente porque a causa que está julgando é de interesse público, porque acima de tudo está o direito das partes a um julgamento imparcial. O interesse público não pode ser um motivo para manipulação da acusação e do juiz... Se um juiz vaidoso puder decidir sozinho quando ele pode violar as regras, não existe mais o que chamamos de civilidade”.
Lamento muito, Sergio Moro, você não é mais o herói e nem o super- homem. Você se esvaziou. E, para minha consciência ficar ainda mais tranquila, fui pesquisar os artigos que norteiam o desempenho da magistratura e que você violou - como demonstram os diálogos nos vazamentos veiculados pela mídia - quando juiz, durante a Lava Jato.
Renuncie, Sérgio Moro.
“A par de afirmar como princípio a independência de cada uma dessas instituições, a Constituição dispõe também sobre a autonomia de ambas, vedando expressamente que uma exerça influência sobre a outra – a não ser pelos meios e nos limites legalmente previstos – recomendando ou tentando impor determinada orientação no desempenho das atribuições legais de cada uma”.
“Esse diálogo do magistrado com o membro do Ministério Público, travado fora dos autos em comunicações pessoais e supostamente sem a possibilidade de conhecimento público, contraria gravemente os princípios e as normas constitucionais relativos ao desempenho das atribuições da magistratura e do Ministério Público e ao relacionamento entre ambas as instituições”.
(...) imprudente o uso do Telegram e não das vias oficiais para diálogos entre um magistrado e um membro do Ministério Público, quando já existe uma rede oficial e segura do Ministério Público Federal para eventuais comunicações, dentro dos limites legais”.
(...) dispõe o Código de Processo Penal, em seu artigo 254, segundo o qual” o Juiz dar-se-á por suspeito: IV. Se tiver aconselhado qualquer das partes”.”
Código de Ética da Magistratura
Art. 5º Impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas atividades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam submetidos.
CAPÍTULO III
IMPARCIALIDADE
Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito.
Art. 13.O magistrado deve evitar comportamentos que impliquem a busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social, mormente a autopromoção em publicação de qualquer natureza.
Art. 17. É dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente público, de empresa privada ou de pessoa física que possam comprometer sua independência funcional.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp35.htm
Art. 36 - É vedado ao magistrado
III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.
Telma Monteiro
Ativista sócio-ambiental, pesquisadora e educadora