O Inferno de Dante – a reunião
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- Telma Monteiro
- 26/05/2020
“há três aspectos das coisas que devem ser evitados nos modos: a malícia, a incontinência e a bestialidade." (...) A justiça divina retratada no livro ["Divina Comédia" de Dante Alighieri] é cabal, racional e definitiva, o que torna o inferno dantesco uma espécie de "caos impiedosamente ordenado"
Todo mundo está comentando a reunião ministerial do Bolsonaro, de 22 de abril de 2020. Meu estômago estava meio fraco. Só assisti a uma parte e foi suficiente para pensar sobre o que nos levou a produzir tanto lixo humano no Brasil. Lixo que governa o país e que eu não entendo de onde saiu. Saiu? Não, foi excretado, por sabe-se lá qual sina a que estamos destinados.
Está na hora de pensar, mesmo em meio à pandemia, como vamos fazer para nos livrar desse lixo em tempo de salvar vidas ameaçadas pela pandemia da Covi-19, entre outras coisas. Estive horas nas redes sociais e o que me surpreendeu mesmo foi que todos escreviam as mesmas coisas, comentários semelhantes que apenas diferiam no vocabulário, nos qualificativos, nas expressões de horror. Horror? Que horror? Pois já não vínhamos assistindo, todos os dias, as destrambelhadas falas do presidente do Brasil diante do palácio, para sua claque bem adestrada?
É evidente que com as redes sociais nos tornamos preguiçosos, pois nos limitamos a escrever nossas impressões, nossas interpretações, nossos qualificativos sobre este ou aquele verme, neste caso específico, presente à reunião ministerial. Assim como temos feito ao longo desses últimos 17 meses, desde que Bolsonaro assumiu. Não foram poucas as oportunidades de nos sentirmos incomodados, agredidos, pudicamente ofendidos por escatológicas palavras de presidente ou ministros.
Escatológica foi também, como classifico, a atuação de gente como Moro, Regina Duarte, Mandetta, Weintraub, Guedes, Damares, Ricardo Salles et caterva. E Mourão, com seu risinho cínico e olhar perscrutador ladino. Eu sei o que você pensa, Mourão, pois está estampado no seu modo de agir.
Mas, vejamos, onde nos levará, afinal, assistir e comentar tudo o que se passou na reunião? Celso de Mello assistiu e se disse chocado (foi o que li em algumas mídias) com a natureza daquilo que foi dito e explicitado ou escondido nas entrelinhas das falas daqueles que precisei ter estômago para ouvir e ver algumas partes apenas. Mas o vídeo o chocou com o quê, exatamente? Afinal ele, Celso de Mello, é parte de um dos poderes, e transita em Brasília, deve ouvir seus assessores, colegas, família, amigos, infiltrados, funcionários e, tenho certeza, que não havia quem não soubesse tudo o que fora dito na tal da reunião. Era público desde que aconteceu.
O pouco que assisti deu para observar o séquito de servidores de bandeja nas mãos servindo o convescote, com água, café, petiscos ou docinhos, sei lá. Ora, eles não têm ouvidos? Ou não entendem o português o suficiente para perceber que um bando de urubus estava ali para comer a carniça do povo brasileiro que está morrendo ao poucos, todos os dias, graças à falta de estratégias para amenizar o resultado da pandemia?
Não há como não ter ideia daquilo que ocorreu numa reunião que mobilizou toda a mídia nacional em busca de um grande escândalo ou crime declarado para chutar de vez essa corja da presidência da república. Mas o balão furou, era só ar, e presenciou-se uma cusparada de palavrões e chavões que todos nós já conhecíamos desde que Bolsonaro assumiu em terreno fértil deixado por Temer e antes dele por Lula, e Dilma e FHC.
Ricardo Salles foi apenas Ricardo Salles, um verme sempre à espreita da excrescência das leis ambientais não cumpridas. Há algum tempo ele estava sumido, obscurecido pelo chefe que se encarregava de despistar e improvisar besteiras para que essa mídia incompetente e ávida do mesmo espaço para suas aberrações. Salles é outro predador nos escaninhos do poder de Brasília, assim como Weintraub, ou Guedes, ou Damares. Todos escondidos atrás da grande “moita” cultivada por Bolsonaro.
Que ninguém se engane, aquilo que viram foi apenas a cortina de fumaça, pois o fogo está nos recônditos, com presença de generais de pijama transitando pelos palácios e pela praça dos Três Poderes, onde se organiza algo muito maior, acobertado por um bando de ministros pusilânimes que estrearam no poder dito “pós-corrupção”. Sim, uma das poucas coisas que meu estômago pode depreender da tal reunião foi ouvir da boca de Bolsonaro que lá não havia corrupção. Só não caí na gargalhada porque estava com náuseas. O que era aquilo tudo senão os mais altos degraus de um ambiente corrupto?
Desviar dinheiro da Petrobras não é a única forma de corrupção que se conhece. Ou vamos chamar do que a fala de Guedes sobre ajudar as grandes empresas e deixar à míngua as pequenas para que morram seus CNPJs? Enterrar milhares de brasileiros mortos por falta de respiradores, UTIs, hospitais, seria exatamente o quê? Não seria corrupção o que impediu que os recursos estivessem disponíveis para salvar vidas, equipar hospitais, remunerar os profissionais da saúde? Querem mais corrupção? E o todo o dinheiro que deveria ter sido destinado para aqueles que perderam o emprego, os chamados autônomos, os empreendedores individuais, os moradores de rua? Dificultar o acesso a esses recursos não é corrupção?
Vender a “bosta” do Banco do Brasil, como vociferou Guedes, aos ansiosos banqueiros que fazem fila para pegar sua fatia no butim, é o quê? Não é uma forma de corrupção? Vender empresas estatais para ficarmos nas mãos de empresas privadas e sujeitos a depender delas e seus preços “de mercado” é o quê? Não devemos chamar de corrupção esse resultado que vai favorecer aqueles que querem se locupletar com os ganhos privados e deixar livre para os políticos os recursos dos impostos pagos pelos brasileiros?
E quanto a Moro? Dezesseis meses no governo e só agora percebeu que aquilo não era ambiente saudável para ele? Assistiu reuniões com ministros, presidente, generais, aliviou um monte para a familícia e só agora se deu conta que precisava denunciar algo? Uma porcaria de reunião onde se ouviu palavrões, ameaças ao STF, ao meio ambiente, aos governadores. Só agora, Moro? E o resto do tempo, todos eram santos impolutos? Não houve corrupção nesse tempo em que as investigações no Rio de Janeiro davam conta de que havia um Queiroz sumido, dois assassinatos, de Marielle e de Anderson, com as investigações em banho-maria, em que não se sabe (ou finge-se não saber) até agora os mandantes? Isso não se chama corrupção?
E quanto aos vazamentos de óleo no litoral brasileiro? Milhões de galões que enegreceram nossas praias, causaram prejuízos às comunidades, sem que todo o aparato da marinha detectasse, sequer, de onde e como. Isso foi impedido por incompetência, desleixo ou corrupção? Ricardo Salles esteve à frente do Ministério do Meio Ambiente por todos esses meses, 17, para ser mais precisa, quando se deram os incêndios na Amazônia e no Pantanal, sem que ninguém tenha sido responsabilizado, preso ou ao menos acusado. Que nome dar a isso senão corrupção? E o Ibama e a ordem dada ao Ministério do Meio Ambiente para não destruir os equipamentos dos garimpos ilegais em terras indígenas? Como denominamos isso? No meu conceito e no de muita gente se chama corrupção. E o INPE e Ricardo Galvão colocado na rua como se fosse um ninguém só porque expôs os dados legítimos do aumento do desmatamento na Amazônia? No lugar dele colocaram um astronautinha fajuto que nem sabe somar direito. Como chamamos isso, também, senão corrupção?
Mas ainda não terminei. Falta falar da Vale, de Mariana e Brumadinho, que estão em segundo plano, encobertos pelas demais desgraças, e todos acabaram esquecendo que as vítimas não receberam aquilo que lhes cabia, sob a égide de contribuições miseráveis a algumas “obras” do governo. Uma Vale execrada pelo mundo inteiro se esquiva das suas responsabilidades e o governo endossa. Como chamar a isso senão corrupção? E as consequências para o meio ambiente de todos esses desastres que deveriam ter recebido o apoio e a exigência de governo, esse de Bolsonaro, “sem corrupção” e demais instituições ditas democráticas que nem se manifestaram e, quando o fizeram, foi para “inglês ver” e sem qualquer consequência para os responsáveis? Como chamar isso também, senão corrupção?
E quanto ao Fundo Amazônia e os mais de 2 bilhões de reais que estão no Banco do Brasil sob a égide do BNDES? Que ninguém mais menciona, e o governo finge não existir, bem como o Ministério do Meio Ambiente e seu corrupto Ricardo Salles, que quer se aproveitar da exposição das mortes com a Covid-19 para implementar leis frouxas e facilitar a destruição de biomas brasileiros e beneficiar, entre outros, o agronegócio. Como chamarmos tudo isso, senão corrupção?
Portanto, Bolsonaro, não me venha com essa conversa de que no seu governo não tem corrupção. Tem sim, e não que você tenha o privilégio de ser o primeiro. É sim a continuação de um longo período, desde a descoberta do Brasil, em que corrupção sempre foi a palavra que define o estrago que tomou conta da vida e dos prejuízos para a evolução do povo brasileiro até descambar no pior dos males representados pelo seu governo. Além da corrupção, a incompetência, o cinismo e o desrespeito com o povo e as instituições democráticas.
E por falar nisso, o Congresso tem contribuído, se mostrado um dos maiores defensores do autoritarismo que está por vir, implementado na calada da noite, pois continua omisso e conivente como sempre foi. Só que agora é pior, negocia a liberdade de seus eleitores. Encobre sob um manto de sangue a destruição da sociedade brasileira e do seu povo.
Telma Monteiro
Ativista sócio-ambiental, pesquisadora e educadora