Violações dos direitos humanos, em 2013 e 2014 (1)
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- Telma Monteiro
- 06/01/2014
Para fugir um pouco do formato tradicional de retrospectivas e perspectivas, optei por abordar as violações dos direitos humanos. Selecionei fatos que engolfaram a Amazônia, como os projetos hidrelétricos em processo de licenciamento e em construção; plantas de mineração; tramitação de projetos de lei no Congresso Nacional; o vai e vem das ações civis públicas no judiciário; a mobilização indígena. São temas que continuarão e recrudescerão em 2014.
Como os acontecimentos se sucederam numa cornucópia de violações, optei por dividir em duas partes a análise, para não correr o risco de cansar os leitores.
“Justiça já” será o mote do próximo ano e é fácil visualizar de antemão o acirramento de conflitos e de guerras jurídicas entre Ministério Público e governo. Mais projetos de mineração e estudos de aproveitamentos de bacias hidrográficas estão sendo planejados nos rios amazônicos do Brasil e dos países vizinhos. Mas os questionamentos das ilegalidades que cercam todo esse aparato do governo federal têm sido cada vez mais incisivos por parte do Ministério Público. Nunca se viu, desde a Constituição de 1988, tantas ações civis públicas, num único ano, com a participação maciça de procuradores na busca incansável de justiça para o meio ambiente e as minorias.
Na outra ponta, as lideranças indígenas estão cada vez mais atualizadas e informadas sobre licenciamento ambiental e acompanham as tramitações de projetos de lei que, se aprovados, podem prejudicar os seus direitos. Os indígenas exigem seu lugar nos processos decisórios que podem alterar para sempre suas vidas, sua cultura e seu passado.
A Fundação Nacional do Índio (Funai) já não tem estrutura para cumprir seu papel na defesa dos direitos indígenas frente a tantos projetos de hidrelétricas, hidrovias, estradas, linhas de transmissão, plantas minerárias. A Funai nunca esteve tão vulnerável às pressões políticas como nas decisões que tomou em 2013. Decisões e pareceres técnicos que defendem a necessidade de consulta aos indígenas e que foram desconsiderados em nome de apagões inexistentes, de projetos com custos atraentes de impactos socioambientais reduzidos ou de elevado interesse para o estado e ou setor elétrico.
Foi sob essa pressão política que a Funai mudou covardemente sua decisão sobre o inaceitável Estudo do Componente Indígena (ECI) da UHE São Manoel, apresentado pelo Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Foi assinado por Maria Augusta Assirati, presidente da Funai, o ofício de última hora, ao Ibama, que deu por sanadas as questões pendentes do ECI. Mudanças de decisões a toque de caixa, que contrariam pareceres dos técnicos, são prática recorrente, também, na diretoria de licenciamento do Ibama. Em 2013, particularmente, foi acintoso.
Some-se a isso uma arma jurídica poderosa que está sendo usada pela Advocacia Geral da União (AGU): a Suspensão de Segurança (SS). A SS, em casos que comprovam a violação dos direitos humanos, que ouso chamar de “apagão de Justiça”, se transformou numa manobra corriqueira para derrubar todas as liminares favoráveis concedidas aos argumentos do Ministério Público, em decisões proferidas contra os projetos hidrelétricos.
Promessas de um governo mentiroso
Jamais tantos grupos indígenas estiveram em Brasília para protestar contra projetos hidrelétricos e as violações dos seus direitos. A bola da vez é o plano de construir uma sequência de empreendimentos na bacia hidrográfica do Tapajós, que ameaçam os direitos indígenas. Sentindo-se humilhados, traídos e ameaçados, os Munduruku deram o tom contra o governo durante todo o ano de 2013. Eles escreveram cartas, bradaram, viajaram de forma incansável e destemida, pedindo para serem ouvidos pelas autoridades e pela sociedade. Pararam Belo Monte duas vezes e mantiveram pesquisadores sob sua guarda na aldeia. O governo federal fez ouvidos moucos e promessas vãs e ainda mandou a Força Nacional e a polícia rodoviária federal para intimidá-los.
Diante de tantas reivindicações, o governo prometeu suspender o processo de licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, a maior planejada na bacia, até que os Munduruku fossem consultados. Foi só uma manobra para acalmar os ânimos. Não cumpriu. Marcou uma reunião com os índios na aldeia. Não foi. Prometeu retirar os pesquisadores das terras indígenas. Não retirou. Os estudos de campo para elaboração do EIA/RIMA (Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental) continuaram e os pesquisadores permaneceram na região com uma escolta da polícia.
Os Munduruku ficaram divididos e chegaram a sofrer baixas no movimento de resistência devido às táticas pouco ortodoxas empregadas por autoridades, para cooptar lideranças a favor dos projetos. É uma prática covarde de um governo disposto a tudo, até de fomentar discórdia entre os indígenas, para ver seus planos de crescimento e grandeza realizados.
Mas o recado dos índios é claro:
“Se o governo quiser diálogo com Munduruku tem que parar a Operação Tapajós e mandar tirar as forças armadas de nossas terras. Nós não somos bandidos, estamos nos sentindo traídos, humilhados e desrespeitados com tudo isso. O governo não precisa da polícia e da força nacional para dialogar com o povo Munduruku. Nós queremos diálogo, mas só falaremos com o governo depois que todos os caciques do alto, médio e baixo conversarem e tomarem sua decisão. É nosso último aviso. Se a Operação não parar, não vai ter mais diálogo com os Munduruku, vamos acionar os caciques e vai ter guerra".
Tapajós
Os projetos hidrelétricos no rio Tapajós foram, em 2013, causa constante de conflitos entre governo, ONGs, movimentos sociais e indígenas.
Apesar de alguma dissensão ocorrida durante o ano, os Munduruku permaneceram firmes na decisão de não aceitar construção de hidrelétricas em seu rio precioso. O governo, no entanto, confirmou que vai construí-las assim mesmo: com o apoio do agronegócio, comerciantes, grandes empresas nacionais e internacionais, empreiteiras e políticos, mas contra as comunidades tradicionais, os indígenas, as comunidades de pescadores, os madeireiros e a Natureza. Nas decisões, o que conta é o poder do dinheiro.
Para tentar enfiar as usinas do Tapajós goela abaixo da sociedade, as autoridades ligadas ao setor elétrico estão “patenteando” uma nova invenção chamada de “usina plataforma”, que será usada em áreas “desabitadas” de floresta que, dizem, foi inspirada em plataformas de petróleo em alto mar. O objetivo seria a redução dos impactos ambientais. Até agora é uma incógnita como a novidade permitiria a implantação de hidrelétricas no meio da floresta sem criar impactos em terras indígenas, em unidades de conservação e em comunidades tradicionais.
Recentemente, o secretário de Planejamento e Desenvolvimento do Ministério das Minas e Energia (MME), Altino Ventura Filho, em entrevista à Carta Capital, disse que a região onde serão construídas as usinas no rio Tapajós não é habitada. Para o secretário, indígenas em suas terras, comunidades tradicionais como a de Montanha e Mangabal e Pimental, nas margens do rio Tapajós, não são habitantes, ou gente, segundo seu critério.
Incansáveis, os Munduruku que habitam o alto e médio Tapajós, contrariando o que imagina o secretário, enviaram nove cartas ao governo pedindo o cancelamento dos projetos das hidrelétricas em rios que atravessam suas terras. Foi em vão. O Ibama deu autorização de abertura de picadas para as pesquisas em campo.
O ministro da Secretaria Geral da Presidência República, Gilberto Carvalho, também prometeu que os indígenas seriam consultados e que poderiam opinar sobre os projetos hidrelétricos na bacia do Tapajós. Até agora não cumpriu a promessa.
O Ministério Público Federal (MPF) chegou a recomendar ao Ibama, à Aneel, à Eletrobras e à Eletronorte a suspensão do processo de licenciamento ambiental das usinas Cachoeira dos Patos e Jatobá, planejadas para o rio Jamanxim, principal afluente do Tapajós.
Ainda em 2013, a diretoria da Associação Pusuru, organização pilar da resistência dos Munduruku, sofreu um golpe e foi destituída para dar lugar a representantes simpáticos às hidrelétricas e aliados do governo. Os Munduruku não aceitaram a diretoria cooptada. Em reunião na aldeia Restinga, caciques e lideranças Munduruku se organizaram em uma nova associação, a Da’uk, e reafirmaram que não querem mesmo as hidrelétricas e nem a presença de estranhos não autorizados em seu território.
No início de dezembro, os Munduruku ocuparam a sede da Advocacia Geral da União (AGU). Pediram a revogação da Portaria 303, a demarcação da Terra Indígena Munduruku no Médio Tapajós (aquela que não tem ninguém) e a manutenção da liminar que suspendeu o leilão da hidrelétrica de São Manoel, no rio Teles Pires. Não foram atendidos. A liminar foi cassada pela AGU com um novo pedido de Suspensão de Segurança. Era a data em que se comemorava o Dia Internacional dos Diretos Humanos.
É bom lembrar que não são apenas as hidrelétricas que ameaçam a bacia do Tapajós, as terras indígenas e a floresta. Outros monstros estão saindo do inferno e vão assombrar 2014. Um grande processo de ocupação já está ocorrendo na bacia hidrográfica do rio Tapajós, incluindo os seus principais formadores, os rios Teles Pires e Juruena.
Um Plano Hidroviário na Amazônia, que tem como parceiros técnicos do governo holandês, está mobilizando investidores para construção de terminais de armazenamento e de embarque. Grandes empresas de mineração e eletrointensivas aguardam os portos fluviais e hidrovias para ampliar sua capacidade de transporte de carga. Em 2013, novas rodovias que cortarão unidades de conservação e terras indígenas foram licitadas para integrar a futura malha hidroviária. Em 2014, começa a sangria dos produtos extraídos da exploração dos recursos naturais.
Leia na parte 2: Belo Monte, hidrelétricas Teles Pires e São Manoel, hidrelétricas do rio Madeira e os erros cometidos, mineração e PEC 215.
Telma Monteiro é ativista sócio-ambiental, pesquisadora, editora do blog http://www.telmadmonteiro.blogspot.com.br, especializado em projetos infra-estruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil.