Correio da Cidadania

Hidrelétrica São Luiz do Tapajós: uma “bomba-atômica” no rio Tapajós

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Estou começando a ler o EIA (Estudo de Impacto Ambiental) da Usina Hidrelétrica (UHE) São Luiz do Tapajós que o governo planeja construir no rio Tapajós, próximo a Itaituba, no Pará. O sítio belíssimo onde estão as cachoeiras São Luiz do Tapajós foi o local escolhido para erguer esse monumento ao desperdício. Pretendo ajudar a entender um pouco mais o que essa mega-obra significa para a sobrevivência do rio Tapajós e sua biodiversidade, das unidades de conservação e das populações do entorno.

 

O processo para construir a UHE São Luiz do Tapajós passou, na atual fase, pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e pelo Tribunal de Contas da União (TCU). O Estudo de Viabilidade Técnica e Econômica (EVTE) tem que ser aprovado pelo TCU. A etapa seguinte é a elaboração do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), que é responsabilidade da EPE. O EIA/RIMA tem que atender o Termo de Referência (TR) do Ibama

 

O EIA/RIMA, por definição do papel institucional, deveria ser elaborado pela EPE[1]. No entanto, a EPE abre licitação e subcontrata empresas que, sempre, são as interessadas no projeto. É uma questão que deverá ser discutida mais a fundo. Os estudos da UHE São Luiz do Tapajós foram feitos pela própria Eletrobras em parceria com a CNEC WorleyParsons Engenharia S.A.[2]. O Ibama recebeu os estudos ambientais para análise na primeira semana de agosto de 2014.

 

O Ibama poderá ou não conceder a Licença Prévia (LP), mas só depois das audiências públicas que nada mais são, no meu entendimento, do que praxe para legitimar o empreendimento. Nessas audiências, os desenvolvedores responsáveis pelos estudos têm todo o tempo que achem necessário para expor a natureza do projeto e suas tecnicidades. A sociedade que comparece só pode se manifestar por exíguos minutos. O entendimento é que as sugestões dos participantes deverão ser incorporadas ao EIA/RIMA. Nunca tive a oportunidade de constatar que o Ibama o tenha feito. O MPF questionou, em ação contra Belo Monte, essa desconsideração das contribuições das audiências públicas.  Mas é esse o “formato” que tem sido obedecido.

 

A Licença de Instalação (LI) vem depois do leilão de compra de energia a ser definido pela Aneel. É estabelecido um preço teto e o grupo que apresentar o valor com maior deságio ganha o “prêmio”. O próximo passo é definir as medidas de proteção ambiental que, se aprovadas, levam à concessão da LI. Se tudo der certo (para o governo), a LI da UHE São Luiz do Tapajós poderá ser concedida pelo Ibama somente no próximo ano. O (a) novo (a) presidente é quem vai estar no palco desse imbróglio.

 

Usina-plataforma?

 

Lendo o primeiro volume do EIA me chama a atenção o conceito de usina-plataforma que os desenvolvedores do projeto tentam nos fazer assimilar. Com que despudor está descrito no texto como a “usina-plataforma vai consolidar as boas práticas socioambientais na construção de hidrelétricas”. Abaixo transcrevo uma pequena amostra:

 

- “[usina-plataforma] concepção contemporânea de engenharia e construção que tem como objetivo o desenvolvimento energético realizado de forma integrada e em conciliação com a conservação do meio ambiente”.

 

- “Definição básica [de usina-plataforma]: consiste em uma metodologia para planejar, projetar, construir e operar um aproveitamento hidrelétrico ou um conjunto de aproveitamentos hidrelétricos situados em espaços territoriais legalmente protegidos, ou aptos a receberem proteção formal e em áreas com baixa ou nenhuma ação antrópica, de modo que sua implantação se constitua em um vetor de conservação ambiental permanente”.

 

- “O conceito de “Usina-Plataforma” é baseado nas plataformas de petróleo e tem como objetivo a realização das menores intervenções possíveis nas etapas de construção e operação das hidrelétricas sobre o meio ambiente, no caso a floresta amazônica”.

 

A teoria é pura fantasia. Quando entrei no trecho do texto que explica como o fabuloso conceito de usina-plataforma será aplicado na construção da UHE São Luiz do Tapajós, tive a certeza de que se trada de mais um engodo.

 

O estudo admite que os processos de desmatamento e degradação ambiental acontecem pela ocupação humana no entorno das obras. Que no pico da construção serão contratados cerca de 13 mil trabalhadores. Que pretendem evitar tamanho impacto na região, em especial na margem esquerda onde está o Parque Nacional da Amazônia. Como? Pergunto.

 

Com as estratégias elencadas baseadas na concepção de usina-plataforma e que nada têm de novo, a não ser o nome. Já de cara existe uma incoerência. De início se diz que usina-plataforma vai preservar regiões não antropizadas. Mais adiante se explica que a estratégia desse conceito é que o canteiro de obras principal e acessos se localizarão em área já antropizada na margem direita. Isso, segundo a proposta, vai reduzir os impactos sobre a floresta na margem esquerda (?). Mistério!

 

Quanto aos alojamentos dos trabalhadores, os autores informam que a localização também será na margem direita pelos mesmos motivos elencados. Para completar a “novidade”, as estruturas residenciais serão desativadas no final. Então me fiz a pergunta óbvia: mas não tem sido sempre assim? A ocupação será inevitável no entorno? Onde está aquele "conto da carochinha", veiculado na propaganda da Eletrobras, em que os operários seriam levados de helicópteros, como nas plataformas de petróleo, para evitar a construção de alojamentos?

 

Não parou por aí. Mesmo na margem esquerda haverá um canteiro de obras para a construção das ensecadeiras e barragem e, pasme, o acesso será pela Transamazônica. Cadê a novidade? Mas agora vem o pior: a proposta é fazer parceria com o poder público local para evitar o surgimento de vilas ou novas cidades. Vão construir cerca eletrificada?

 

Quer saber mais? Pois bem, há previsão de “alojamentos, canteiros e outras infraestruturas de apoio às obras civis e de montagem dos equipamentos eletromecânicos, compactos, de fácil desmonte e com estruturas reutilizáveis, e localizados preferencialmente em área do futuro reservatório ou áreas próximas já antropizadas, a serem ambientalmente sustentáveis. Nessas áreas, deverão ser consideradas as melhores práticas de gestão ambiental. Ao final da obra, as áreas não aproveitadas devem ser recompostas. Os canteiros que não se localizarem na área do futuro reservatório”.

Isso é exatamente o que se tem feito em outros empreendimentos e que está contemplado nos programas sociais. Onde está o conceito de usina-plataforma? Não vou mais discorrer sobre essa incoerência, pois já ficou claro que se trata de muito mais do mesmo.

 

A grandiosidade do monstro

 

Sinceramente, é humanamente impossível pensar em algum conceito ou metodologia de menor intervenção no meio ambiente apelidado de usina-plataforma, diante dos números apresentados nos estudos, como os surpreendentes 7.608 m de extensão total da barragem (mais de sete quilômetros e meio), no sentido diagonal do rio. Ou a área de 729 km² que ficará permanentemente inundada. Ou o reservatório que terá 123 km de extensão. Isso não será um verdadeiro estupro da floresta?

 

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Há muito mais ainda, como o consumo aproximado 2.800.000 m³ de concreto convencional; de 850 mil toneladas de cimento; de 208 mil toneladas de aço. Só de rochas serão escavadas perto de 22 milhões de m³. Alguém tem ideia do que isso significa em termos de intervenção local? Basta dar uma olhada nas fotos da destruição do ambiente causada pelas escavações do canal de desvio das águas do rio Xingu, nas obras da usina de Belo Monte.

 

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Engenheiros e arquitetos que acompanham nossa luta contra os projetos hidrelétricos desnecessários nos rios amazônicos, e que surfam nas redes sociais, têm ideia do que significam os números acima. Imagine toda essa espécie de “bomba atômica” caindo no coração da Amazônia, no rio Tapajós, no limite das belíssimas cachoeiras de São Luiz do Tapajós e de toda a biodiversidade da região.

 

Outro trecho do EIA causa o mais profundo terror, porque descreve em poucas palavras a importância ambiental da região:

 

- “O Complexo Tapajós está sendo planejado na bacia do rio Tapajós e sua importância energética pode ser comparável à sua relevância ambiental. Além de se situar no coração do bioma amazônico, entre a confluência dos rios Juruena e Teles Pires e a foz do Tapajós no rio Amazonas, é região de baixa densidade populacional, bem conservada do ponto de vista ambiental e detentora de Unidades de Conservação que perfazem 52% da sua área total”.

 

Quem pensou que a UHE Belo Monte, no rio Xingu, seria a maior surpresa em termos de dimensões e custos de uma hidrelétrica no Brasil se enganou.

 

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Alguém tem alguma dúvida dos impactos que mais essa monstruosidade poderá causar? Bom, ainda não consegui ler as quase 3 mil páginas dos estudos ambientais. Tenho outra preocupação sobre se vão nos dar uma ideia de quanto ouro poderá sair de todas as escavações e remoção de rochas previstas na construção. Afinal, essa região está inserida no maior distrito aurífero do mundo.

 

O processo está tramitando no Ibama. Notícias na mídia já falam em leilão antes do final do ano. Tem muita água para passar debaixo dessa ponte. E, espero, tem o MPF que está de olho no caso. Ou a equipe técnica do Ibama, num surto de consciência, pode perfeitamente emitir um parecer técnico que conclui não haver viabilidade ambiental, por exemplo. Um juiz poderá dar uma liminar que impeça mais essa catástrofe, já que há várias ações civis públicas tramitando no judiciário. Milagres acontecem, né?

Notas:

[1] LEI N° 10.847, DE 15 DE MARÇO DE 2004. Autoriza a criação da Empresa de Pesquisa Energética – EPE e dá outras providências. Artigo 4°, X - desenvolver estudos de impacto social, viabilidade técnico-econômica e socioambiental para os empreendimentos de energia elétrica e de fontes renováveis; disponível em http://www.epe.gov.br/Downloads/Lei_10.847_15.03.04.pdf

[2] Criada em 1959 – por professores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, um dos mais renomados centros de formação em engenharia no país –, a CNEC foi incorporada, dez anos depois, pelo grupo Camargo Corrêa. Em 2010, a CNEC foi adquirida pelo grupo australiano WorleyParsons, agregando expertise em exploração de petróleo, construção de refinarias, portos e plataformas em águas profundas – setores em expansão no Brasil. A integração também fará com que a CNEC WorleyParsons se torne uma referência em hidroelétricas na América Latina. Disponível em http://www.cnec.com.br/htmls/quemsomos.php

 

 

Telma Monteiro é ativista socioambiental, pesquisadora, editora do blog http://www.telmadmonteiro.blogspot.com.br, especializado em projetos infraestruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil.


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