Argentina: a difícil sobrevivência após a submersão neoliberal
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- Virgílio Arraes
- 13/11/2007
No alvorecer dos anos
Uma década mais tarde, os efeitos socioeconômicos do vagalhão liberalizador no continente foram inegáveis, visto que governo algum se posicionou majoritariamente de forma contrária. Naquela altura, contudo, a exaltação havia sido posta em segundo plano porque, ao efetivar-se a avaliação, ainda que provisória, os resultados foram lastimáveis.
Diante do quadro desfavorável, os apologistas de tal doutrina – tecnocratas normalmente de perfil cosmopolita - adotaram duas posturas para justificar o insucesso: incompletude e incompetência. No primeiro, ao haver a subscrição incompleta das extensas medidas recomendadas de abertura e de desestatização, o processo situou-se suspenso, de maneira que o resultado aguardado seria naturalmente frustro.
No tocante ao segundo, as burocracias nacionais - enfurnadas tradicionalmente em modos de gestão nacional-desenvolvimentista ou, em menor escala, socialista e, por conseguinte, anacrônico na visão neoliberal – não estiveram bem preparadas para executar o novo padrão, sendo necessária a sua substituição.
Destarte, um outro corpo administrativo, isto é, uma tecnocracia – moldada gerencialmente em organizações internacionais, de preferência, econômicas ou corporações multinacionais – far-se-ia necessária para a implementação eficiente de programas de desestatização e de enxugamento do Estado em compasso rápido.
Todavia, o problema não é a aplicação do programa, mas sim a sua formulação. A Argentina, onde se realizaram eleições no dia 31 de outubro último, é o melhor exemplo disto. No pleito de 2003, pôde-se observar claramente a decadência platina, não obstante a retirada substantiva do Estado da atividade econômica.
Ao término do mandato duplo (1989-1999) de Carlos Menem, o país tinha mais de 13 milhões de pobres, desemprego de quase 25 por cento, dívida externa triplicada e déficit fiscal superior a 11 bilhões de dólares. A conversibilidade entre o peso e o dólar, embora oficialmente fosse de um para um, estava sob descrédito, ainda que o desfecho formal ocorresse somente em dezembro de 2001.
Além do mais, em algumas áreas do território argentino, como no diminuto estado de Tucumán, por exemplo, o quadro social era sobremaneira desolador, de acordo com a avaliação distanciada do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, por haver subnutrição e até fome em larga escala.
Mesmo diante de um balanço pessimista, os conservadores argentinos - representados na candidatura de Carlos Menem novamente - trapeariam o estandarte do anticomunismo, em estilo similar ao da Guerra Fria, para enfatizar possível influência que Cuba e Venezuela teriam no país, caso a oposição, representada por Néstor Kirchner, ganhasse, o que, por extensão, acarretaria a possibilidade de revisão das medidas implementadas a ferro e a fogo no decênio precedente.
Ante a inocuidade de sua campanha no segundo turno, dado que as pesquisas apontavam uma diferença de mais de 40 pontos entre ele e Kirchner, Menem renunciaria em maio, a poucos dias antes da votação final, e garantiria o bastão presidencial a seu opositor, pondo fim à turbulenta transição política advinda desde a renúncia de Fernando de
Conquanto não tenha sido uma gestão de esquerda, Kirchner distanciou-se, sem dúvida, do conservadorismo de governos como os do Brasil e do Chile, nominalmente de esquerda. Distante da ortodoxia econômica, ele amenizou para seu sucessor, eleito no primeiro turno, a herança desabonadora recebida há quatro anos.
Politicamente, o ponto mais distinto de seu mandato foi na área de direitos humanos: em setembro de 2003, o Congresso aprovou a lei nº. 25779, que tornou nulas a do Ponto Final (23492/86) e a da Obediência Devida (23521/87), que haviam encerrado a possibilidade de levar a julgamento suspeitos de crimes contra os direitos humanos – apenas na área militar, estimaram-se 400 envolvidos.
No final do mesmo ano, o Executivo edificaria o Arquivo Nacional da Memória - sob responsabilidade da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça - relativo à preservação da documentação de períodos autoritários, em especial o da última ditadura, classificada como regime de terrorismo do Estado. Em 2006, outra lei, 26085, estabeleceu o dia 24 de março – começo da ditadura militar de 1976 - como feriado vinculado à memória pela verdade e pela justiça.
Do ponto de vista simbólico, Kirchner, ao lado do prefeito de Buenos Aires, Aníbal Ibarra, transformou, em março de
Ao longo da ditadura, avaliou-se que cerca de cinco mil pessoas pereceram em suas instalações. Ademais, os filhos de prisioneiras lá nascidos não foram entregues às suas famílias de sangue, mas distribuídos a outras com laços de amizade com servidores daquela unidade.
Em maio deste ano, o Procurador Geral da República, Esteban Righi, emitiu parecer a favor da inconstitucionalidade do decreto 1082/89, assinado por Menem, que havia impossibilitado julgar suspeitos de crimes contra a humanidade – assassínios, torturas, desaparecimentos, dentre outros - no período ditatorial.
Segundo ele, o teor do documento havia se chocado, de início, com o prescrito pela Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo país em agosto de 1984. Por fim, o ex-presidente Raúl Alfonsín afirmou, em recente artigo de imprensa, que, com tais medidas, a democracia argentina estava consolidada.
Virgílio Arraes é professor de Relações Internacionais na UnB.
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