Estados Unidos: perspectivas para 2021
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- Virgílio Arraes
- 12/01/2021
Os democratas retornam à Casa Branca em poucos dias, após um interregno de quatro anos, algo raro na política norte-americana, vez que Donald Trump se tornou um dos poucos presidentes a candidatar-se e não reeleger-se. Isso não acontecia desde a derrota do republicano George Bush, sênior, nos anos 90.
Joe Biden e Kamala Harris, chapa vencedora de composição inédita, terão o desafio na década iniciada de renovar a liderança dos Estados Unidos na sociedade global, dado que a lamentável postura do dirigente republicano de questionar o resultado da eleição presidencial sem fundamentos (1) dificulta a articulação dos Estados Unidos com as demais potências acerca de problemas de monta, tais quais meio ambiente, saúde, terrorismo, desenvolvimento econômico etc.
O primeiro aspecto a ser desembaraçado pelos democratas refere-se, sem dúvida, ao enfrentamento consistente da pandemia do vírus corona como uma questão sanitária e científica, não como rivalidade bilateral, no caso com a China, ascendente oponente.
Minimizá-la como tem sido feito por Trump colocou o país em situação bastante crítica, ao custo de centenas de milhares de vidas e de milhões de infectados, muitos dos quais sem recuperação total até hoje, até por não dispor de assistência médica apropriada. De toda maneira, diferente do Brasil social-liberal, o governo republicano situou-se entre os primeiros a vacinar sua população, ainda que em escala modesta – cerca de quatro milhões de pessoas.
Internamente, há o desafio de estimular a economia, com vistas à recuperação do grau de emprego a um patamar próximo do período anterior à pandemia, e retomar as atividades de ensino, nas quais milhões de crianças e adolescentes com menos disponibilidade de recursos digitais em seus lares têm sido prejudicados, com a adoção de medidas de saúde apropriadas. Nesse sentido, o governo tem de destinar bilhões de dólares, com o propósito de melhorar o acesso à internet de toda a comunidade escolar e também as condições de segurança sanitária.
Ao mesmo tempo, há a imperativa missão de combater o persistente racismo incrustrado na administração pública conforme a opinião pública global pôde observar na atuação de polícias municipais no ano passado (2). Não fosse a imensa mobilização popular, a proposta de reforma policial não iria ser apresentada no Congresso.
Do ponto de vista simbólico dos democratas, há um primeiro passo, visto que a composição ministerial é a mais diversificada da história dos Estados Unidos desde a administração de Bill Clinton há quase trinta anos.
Na política exterior, a América Latina de novo nutre expectativas positivas, frustradas a cada passagem de dirigente, malgrado a bandeira partidária. Biden conhece a região acima da média dos seus predecessores. Como vice de Barack Obama, visitou a região mais de quinze vezes, incluindo o Brasil. O ponto premente para vários países como os do Caribe e o vizinho México conecta-se com a revisão da legislação relativa à imigração – Trump endureceu o tratamento aos emigrantes, ao chegar até a separar filhos de pais na fronteira.
Outros tópicos importantes são polêmicos no continente, embora necessários em uma democracia de fato: meio ambiente, direitos humanos e oposição cerrada à improbidade; todos são aspectos bastante delicados no relacionamento diplomático, ao se considerar a questão da soberania em plena globalização – interação irreversível, ainda que nem sempre a almejada. A título de ilustração, evoquem-se Venezuela, Cuba e claro Brasil.
Como desdobramento, agremiações políticas aproveitam-se da oportunidade para fustigar seus adversários a depender do pendão hasteado pelo governo do momento: se este coopera, é submisso ou falto de firmeza; se não, é renegado ou carente de responsabilidade perante a sociedade.
Nas décadas de 70 e 80, em moldura de Guerra Fria, o tema de direitos humanos, em face das ditaduras militares na América Latina, era candente; com o encerramento da disputa bipolar, a questão ambiental ascendeu mais, em decorrência do aquecimento planetário, do desmatamento acelerado e das modificações na agricultura; nos últimos anos, o da corrupção adquiriu maior vigor, em função da interdependência com outros pontos como os do terrorismo, narcotráfico e lavagem de dinheiro, entre outros.
Os democratas terão de constituir na pauta multilateral posicionamentos distintos dos republicanos, ao mirar a relação com a União Europeia, após a saída da Grã-Bretanha, e com a Rússia, na qual a identificação entre Trump e Putin em vista do autoritarismo é inegável, a com a China, em virtude dos perenes laços de comércio e dos atritos por causa da pandemia corrente, e sem dúvida com o Oriente Médio e cercanias. Haverá ainda países cuja atenção deverá ser mantida, defronte a importância política, militar e econômica tais como Índia, Coreia do Norte, Turquia, Egito, Nigéria, África do Sul e Irã.
Menos conservadora, a composição presidencial vencedora terá a oportunidade de firmar a primazia norte-americana desde que considerado o multilateralismo, haja vista a progressiva extenuação do país desde os anos 90 em termos econômicos, militares e (por que não?) científicos, como demonstra a incapacidade de enfrentar de modo adequado a pandemia do vírus corona.
Notas:
1) O artigo foi escrito antes da invasão do capitólio pelos apoiadores de Trump, incitados pelo próprio presidente, com vistas a contestar o resultado eleitoral de novembro.
2) A postura no mínimo leniente de vários policiais que faziam a segurança do Capitólio reforça o ponto aqui apresentado.
Virgílio Arraes
Doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.