Correio da Cidadania

Estados Unidos: primeiro ano de Biden – expectativas aquém do esperado

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Dezenas de agremiações partidárias transitam na política norte-americana, embora apenas duas se destaquem ao longo dos últimos cento e cinquenta anos: a democrata e a republicana – de quando em quando, há terceira via de efêmera duração, fruto da dissensão de uma das duas maiores. Diante disso, muitos consideram de maneira equivocada que a divisão do sistema estadunidense em dois grandes partidos representaria uma disputa entre esquerda, mesmo comedida, e direita.

De modo geral, é uma contenda interna por ser ambas de matiz conservador caracterizada entre setores mais ou menos extremados, embora haja, a depender do momento e do local no país, a oportunidade para desempenho de grupos até progressistas. Ainda assim, são segmentos com menor expressão eleitoral, malgrado o alcance ocasional nos meios de comunicação.

A título de exemplo recente, cite-se a atuação do Senador Bernie Sanders, de Vermont, ora membro do Partido Democrata, ora seu desfiliado: conquanto ser bem conhecido no país e bastante experiente no parlamento, ele teve nas duas ocasiões das prévias democratas votação diminuta, desestimuladora de lhe proporcionar um convite para integrar a chapa presidencial de Hillary Clinton em 2016 ou a de Joe Biden em 2020.
 
Na descrição de parte da atividade partidária, faz-se necessária uma tipologia – provisória, saliente-se – para designar as pessoas envolvidas em maior ou menor escala com o cotidiano político em cujo centro contam os candidatos com o apoio nos processos eleitorais bienais de países de jaez republicano como Estados Unidos ou Brasil. Nos de regime parlamentar, a ocorrência dos ciclos pode variar muito como na Itália.

A datar do alistamento, o eleitor pode ser filiado ou não a uma agremiação: em não sendo, poderia ser eventualmente apoiante de candidaturas ou admirador de sigla ou de movimento em determinada ocasião ou momento.

Em sendo inscrito a um partido, poderia ser militante, padrão costumeiro do agregado, classificado como defensor de uma visão de mundo mais equilibrada, isto é, crítica, apesar da manifesta inclinação pela agremiação sob certo grau de idealização ou romantismo. De forma esperada, a defesa dos valores perenes suplantaria a de postulantes a cada eleição.

O poder seria o meio para viabilizar propostas nas diversas áreas: economia, meio ambiente, educação, transporte, segurança pública, saúde, assistência social etc.. Seu objetivo preferencial seria o de apoiar candidaturas a partir de determinadas temáticas, não a de candidatos em si. Sua laboração aperfeiçoaria o processo democrático por causa dos debates, escritos, comícios, reuniões etc..
   
De maneira paralela, haveria o miliciano, degenerescência contemporânea do militante, ou seja, a involução da atuação política se observados valores iluministas. Com o advento de outros modos de comunicação como as redes sociais digitais, sua presença torna-se intensa, porque a limitação da mobilidade física encerrou-se com a facilidade de circulação via canais de interação imediata, global e semianônima.

A possibilidade de utilização da violência estendeu-se da física com maior vigor para a psicológica, com a disseminação de intimidações e com afirmações sobre pessoas ou situações de modo distorcido ou inventado. Seu apego é menor com representações partidárias ou com ideologias tradicionais, abrigadas constitucionalmente, ao vincular-se de maneira fanática mais a nomes, via conjurações ou complôs. Exemplo de ‘complotistas’ são os invasores do Congresso norte-americano em janeiro de 2021 favoráveis a Donald Trump.

Contudo, o radicalismo de tais grupos - isto é, autoritários e sectários - expressa-se em variadas partes do planeta, como no Brasil, indistinto da matriz partidária adotada. Com a crise dos modelos de desenvolvimento vigentes na época da Guerra Fria, o comunismo, o socialismo e a socialdemocracia, restou um ascendente, o neoliberalismo, cuja execução na nova ordem global não trouxe resultados sociais positivos, a despeito da publicidade constante de que seu problema seria a aplicação insuficiente das diretrizes, nunca sua implementação.  

Apesar de seu fracasso no dia a dia da população, o ideário neoliberal continua a vigorar na prática, mesmo em legendas autointituladas de esquerda, incapazes de ir além durante as campanhas eleitorais da costumeira retórica onde a primeira sílaba ‘re’ é aplicada de maneira automática – renovação, reconstrução, reforma, recuperação, até revolução etc.; ao chegar ao poder, o cotidiano de tais governantes, outrora entusiastas progressistas, é no máximo o entusiasmo momentâneo de segmentos da juventude conjugado com o ceticismo realista – ou por que não desânimo - dos militantes de maior vivência.

Nesse sentido, já não se escandalizariam os mais experientes com encontros reservados entre dirigentes de partidos por suposto tão distintos em seus programas ou com refeições em salões requintados onde se selariam acordos entre lideranças de siglas oficialmente avançadas – mas de fato remotamente esquerdistas ou operárias – com representações de agremiações conservadoras – quiçá reacionárias - em meio a acepipes e manjares em pleno ambiente nacional de crise política e econômica.   

O retorno dos democratas a Washington em janeiro de 2021 representa maior acautelamento da direita nos Estados Unidos, não o ascenso da esquerda, mesmo branda. Interrompeu-se ao menos de modo temporário o extremismo da ala reacionária dos republicanos, haja vista a incapacidade de lidar de forma simultânea com a acerba rivalidade comercial com a China, com a emergência de uma inaudita pandemia do vírus corona, com o desemprego crescente, ainda quando incidental, e com a atuação militar descabida no continente asiático, materializada em duas décadas de fincamento infrutífero em solo afegão.

No primeiro ano do quatriênio, o balanço da gestão de Joe Biden demonstra a dificuldade ou o desinteresse de reforma do governo do sistema, haja vista a perspectiva escolhida para a análise. Há sem dúvida um obstáculo para a proposta de mudanças pela Casa Branca: a estreita margem no Congresso: no Senado, os democratas contam com quarenta e oito votantes ao passo que os republicanos, com cinquenta – os independentes, entre os quais se conta Sanders, são dois. Se houver voto de minerva, cabe à vice-presidente Kamala Harris, presidente, por sua vez, da casa; na Câmara, Biden possui duzentos e vinte e um enquanto a oposição, duzentos e treze.     

Não obstante o evidente percalço, a administração conseguiu a aprovação em novembro de projeto de lei concernente à infraestrutura do país. Avaliado em mais de um trilhão de dólares o investimento, a legislação só foi possível graças ao apoio extraído de dezenove Senadores – eram necessários dez – e treze deputados da oposição republicana.  Destina-se a lei a aprimorar o sistema de aeroportos, rodovias, hidrovias, ferrovias, portos, pontes, infovias, redes hídricas e elétricas etc..

Contudo, a segunda parte da propositura de modernização enfrenta maiores óbices, até pela quantia almejada: de início, eram três trilhões e meio de dólares; agora, em função da resistência no parlamento, em torno de dois trilhões de dólares. O pacote vinculado a melhoramentos sociais e energéticas deverá ser votado em janeiro de 2022 no Senado.    

A ascendente inflação atingiu sua maior marca em quase quarenta anos – em 1981, ela transpôs pela última vez desde então os dez por cento anuais. Ainda que se estime ser uma alta momentânea, ou seja, sazonal, em decorrência dos efeitos oriundos da pandemia, como o desmantelamento parcial das cadeias de produção, a população sofre suas consequências diretas nos setores de alimentação, energia e moradia.

Por outro lado, há um dado positivo à gestão de Biden: a redução significativa do nível do desemprego, se tido por referência janeiro de 2021: em novembro, estava ligeiramente acima dos quatro por cento, pouco mais de dois pontos abaixo do começo da administração. No florescer da pandemia, ele chegou a quase quinze por cento – abril de 2020.       

Biden começou seu mandato, segundo a Reuters, com cinquenta e cinco por cento de aprovação e trinta e dois por cento de reprovação. Dois meses depois, atingiria seu zênite: cinquenta e nove de aceitação. A datar de agosto, já não supera os cinquenta por cento. Na primeira quinzena de dezembro, encontrava-se com índices de aprovação e reprovação equivalentes: quarenta e oito.

Índices mais desfavoráveis ao presidente obtêm-se na pesquisa da NPR já da segunda parte do mês. Nela, o mandatário possuía meros quarenta e um de aceite enquanto o descontentamento girava ao redor de cinquenta e cinco.

Embora fatores específicos pesem em disputas estaduais, o desgaste da administração Biden pode ter influenciado também a derrota do candidato democrata McAuliffe na disputa da Virgínia por pequena margem em novembro, estimado como favorito até os derradeiros dias do processo eleitoral.

Na política externa, a imagem corroída dos Estados Unidos com Donald Trump adquiriu polimento com Joe Biden e mostra-se distinta em alguns segmentos como na postura multilateral em meio ambiente ou pandemia, via Organização Mundial de Saúde (OMS).

A despeito da melhora, os republicanos atrasam a programação da sabatina no Senado de dezenas de indicados para cargos no Departamento de Estado. A motivação para os adiamentos varia de acordo com a insatisfação dos congressistas perante o governo.

Da saída embaraçosa do Afeganistão à tibieza na condução da edificação do gasoduto entre Alemanha e Rússia – o Nord Stream 2, concluso em setembro para o desagrado da Ucrânia, receosa da perda possível de receita por possibilitar ela a passagem do produto quando o licenciamento estiver finalizado. A demora da licença decorre também da perspectiva de que possa haver em breve embate militar entre Moscou e Kiev.  

Há diferença de calibragem da condução da política exterior, mas não de abordagem, em outros como o relativo à acirrada concorrência comercial com a China, estendida a campos como o farmacológico por causa da pandemia e diplomático por conta de Hong Kong; reconheça-se que a verborragia com países autoritários como Coreia do Norte, Cuba, Venezuela ou Irã arrefeceu até porque os parceiros norte-americanos pouco afeitos à democracia se recolheram, em face da crescente corrosão interna como é o caso do Brasil.

Aliás, a atenção dedicada à América Latina equivale-se à do tempo de Trump: pouquíssima, malgrado, por exemplo, a importância de atualizar a legislação relativa à imigração, tema caro ao continente.   

A retirada definitiva das tropas do Afeganistão em agosto foi desastrosa, ao largar seus aliados à própria sorte depois de duas décadas de coligação. Poucos dias depois do retorno dos efetivos aos Estados Unidos, os fundamentalistas locais assenhoraram-se sem problemas do país. O encerramento significou o fracasso da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em sua primeira tentativa de operar fora de suas fronteiras, ao ter em vista a ausência de coordenação final entre os países associados. O malogro da missão otoniana poderá repercutir no desembaraço de movimentos extremistas na região.

Em suma, ajustes em andamento pela Casa Branca, porém dificultados pela situação econômica interna adversa – como a inflação – e pela desconfiança de nações tanto aparceiradas como as da União Europeia com destaque para a França, ludibriada na negociação de venda de submarinos nucleares para a Austrália, como das já tradicionais rivais China, em especial, ou Rússia.

Virgílio Arraes

Doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.

Virgílio Arraes
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