Guerra da Ucrânia: usurpação de identidades nacionais
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- Virgílio Arraes
- 24/05/2022
Foto: Azovstal, Mariupol. Créditos: MOs810 / Commons Wikimedia
Há muitas gerações, ainda que de maneira inadequada, o termo russo tem sido aplicado de quando em quando a diversos povos da Europa como finlandeses ou bálticos, distantes do ponto de vista cultural, ou mesmo a próximos como belarussos e ... ucranianos, independentes semanas depois de fracassado golpe de Estado em agosto de 1991 na agonizada União Soviética (URSS).
O fenecer do regime do denominado socialismo real interrompeu o longo processo de ‘russificação’ de comunidades situadas na Europa e na Ásia, acentuado desde o século dezenove pela expansão da burocracia imperial, como a das instituições de ensino, e a da Igreja Ortodoxa. Sob o bolchevismo, isso não cessaria - em boa parte da bipolaridade sovieto-americana, o russo seria a língua franca nos países do leste europeu.
No comunismo moscovita, o Estado reconhecia de modo oficial mais de uma centena de nacionalidades sob seu vastíssimo território, o maior do globo, de forma que a população (auto)considerada russa, malgrado o risco de imprecisão estatística, se situasse em torno de trinta por cento da total – a marcante transmissão da cerimônia de abertura da Olimpíada de 1980 buscou, por exemplo, demonstrar a diversidade cultural, embora na prática sem força similar no ideário do Kremlin.
Há semanas, as forças armadas russas esforçam-se para conquistar a cidade portuária de Mariupol, em especial o complexo metalúrgico – Azovstal – onde milhares de combatentes – de veteranos a conscritos - resistiam a pesados bombardeios.
Aos olhos de Moscou, os entrincheirados seriam o núcleo da extrema direita ucraniana, justificativa principal para a investida do governo de Putin contra o país a datar do final de fevereiro; aos de Kiev, elas seriam o centro do nacionalismo espontâneo, apesar de ocasionais, mas questionáveis, vínculos políticos com o poder Executivo.
Azov, a despeito da polêmica da utilização do nome por grupos paramilitares locais, é de importância simbólica para a Rússia porque, ao cabo do último quarto do século dezessete, o exército moscovita conquistou-a ao oponente otomano e também é estratégica por permitir ao país o amplo acesso ao mar Negro.
Por outro lado, os ucranianos têm memória sobre acontecimentos relevantes e recentes nos quais o povo sofreu bastante diante da primazia russa dentro da União Soviética, não obstante o universalismo proposto: na administração de Stalin, ocorreu a Grande Fome no alvorecer dos anos trinta, por conta da coletivização imposta das terras férteis.
Nos oitenta, durante a gestão de Gorbachev, eis o acidente nuclear na usina Chernobyl, com consequências ainda mais desventuradas à população residente ao redor do complexo em decorrência da demora do governo de tornar público o fato e assim contribuir para a retirada célere dos moradores próximos à área contaminada.
Outrossim, ponto polêmico e de divergência acentuada entre as duas sociedades é o grau de envolvimento de parte da elite da Ucrânia com a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, em face da possibilidade de granjear apoio a sua independência, aguardada por Kiev desde o encerramento de outra confrontação - a Russo-Polonesa (1654-1667) – e vivida de maneira efêmera no desdobrar da Revolução Russa (1917-1923).
Trago a trago, a Rússia avança sobre os territórios estimados como necessários para controlar o ingresso a portos azovienses, de sorte que enfraqueça a Ucrânia, mesmo após um futuro cessar-fogo.
Não se descarte o retorno em breve das medidas de ‘russificação’ das regiões anexadas pelo Kremlin, tópico menosprezado pela diplomacia norte-atlântica, interessada no momento na debilidade moscovita, não na preservação quievita.
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Virgílio Arraes
Doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.