Estados Unidos-Brasil: atrito na relação por causa do Irã
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- Virgílio Arraes
- 08/03/2023
Embora falte um ano e meio para a eleição presidencial nos Estados Unidos (EUA), os aspirantes ao cargo mais relevante da nação já se movimentam nas duas principais agremiações, ainda que em uma, a democrata, a vaga seja reservada a Joe Biden, atual mandatário. Distinto da maioria dos países, a política externa compõe o cotidiano do Executivo e do Legislativo.
A confrontação entre Rússia e Ucrânia assinala isto, por exemplo. Apesar da distância e do ponto central do conflito, a delimitação de novas fronteiras a partir da vontade de Moscou, Washington envolveu-se desde o início da agressão em fevereiro de 2022 com Kiev, ao fornecer armamentos sofisticados e apoio diplomático constante, de sorte que grandes potências, como Londres, Berlim e Paris, se conectariam de modo similar com Mariyinsky.
Com os democratas na Casa Branca desde janeiro de 2021, a ultradireita, bem aconchegada entre os republicanos vinculados ao antigo dirigente Donald Trump, recuou conquanto mantenha no parlamento e nos meios de comunicação sua verborreia, ao aludir, entre outros assuntos, ao perigo de suposta esquerda em determinados locais do planeta.
Durante a Guerra Fria (1947-1991), formuladores e decisores estadunidenses, ao se deparar com governantes do 3º Mundo contestadores de diretrizes washingtonianas, optavam por classificá-los sob rubrica uniforme de esquerdistas ou subversivos, logo orientados pelo Kremlin ou a ele submissos, ao invés de delinear identificação precisa, logo sortida, ao levar em conta a história recente e a formação cultural de cada nação: socialista, social-democrata, nacionalista e até comunista.
Assim, a título de exemplo apenas na América Latina e Caribe naquela época, mandatários de matiz diferenciado como o coronel Jacobo Arbenz na Guatemala, Fidel Castro em Cuba, João Goulart no Brasil ou Salvador Allende no Chile situavam-se em plano equivalente aos olhos de boa parte da elite sociopolítica norte-americana, malgrado a visível dessemelhança da base ideológica dos presidentes mencionados.
À proporção que a rivalidade bipolar avançava na década de setenta do século vinte, outro elemento ajudaria a desnortear o corpo formulador e depois o grupo executante dos Estados Unidos: o religioso extremado, questionador do ideário da Casa Branca, porém também do Kremlin.
A referência maior seria o Irã, a partir da Revolução Islâmica, de matiz xiita, iniciada em janeiro de 1978. Em fevereiro de 1979, Reza Pahlevi, monarca desde 1941, seria destronado em prol da liderança nacional religiosa mais expressiva: aiatolá Ruhollah Khomeini.
O impacto da ruptura institucional influenciaria o curso eleitoral ao desaguar na votação de novembro de 1980, desfavorável a Jimmy Carter, então presidente em busca da reeleição. Passavam os Estados Unidos, como o restante do mundo, por grave crise energética em função das alterações ocorridas a datar de outubro de 1973, após o desfecho da Guerra do Yom Kippur.
Em abril de 1979, a antiga Pérsia se tornaria uma república islâmica. Seis meses depois, os Estados Unidos abrigariam o rei deposto sob alegação humanitária: tratamento de câncer. Com a repercussão da iniciativa, estudantes em Teerã invadiriam a representação estadunidense e aprisionariam dezenas de servidores públicos.
A contrapartida para a retirada da embaixada e para a libertação dos funcionários seria a extradição do antigo xá. A resposta da Casa Branca à exigência estudantil seria a de suspender a aquisição do petróleo local e, ao mesmo tempo, a de congelar fundos iranianos em bancos norte-americanos. A consequência seria o aumento da tensão bilateral e a piora da crise energética.
Em face do sério impasse, ela decidiria resgatar seus cidadãos via operação militar à socapa a partir de Omã – seria batizada de Garra de Águia. Concebida às pressas, ao ignorar a questão climática da região médio-oriental, e mal implementada, a ação ampliaria a corrosão da administração de Carter interna e externamente.
O Irã iria libertar os reféns apenas em janeiro de 1980, minutos após a posse de Ronald Reagan. Portanto, já lá se vão mais de quatro décadas de severo desentendimento entre ambos, outrora aliados próximos, como a posição oposta de cada um no confronto russo-ucraniano.
Com o retorno ao Planalto em janeiro último de Luiz Inácio Lula da Silva, apontar-se-ia de novo a identificação de correntes políticas ou antes partidárias de Brasil e Estados Unidos – trabalhistas e democratas ao invés de liberais e republicanos.
Por isso, chama a atenção o modo por que Brasil autorizou a atracagem entre 26 de fevereiro e 4 de março no Rio de Janeiro de dois navios da esquadra do Irã. A aprovação em si, apesar de críticas de democratas e republicanos nos Estados Unidos, é costumeira.
Todavia, a data do consentimento da atracação teria sido alterada, a fim de que não reverberasse de maneira negativa o encontro entre Lula da Silva e Joe Biden no começo de fevereiro em solo estadunidense. Com tal postura, não houve demonstração de independência do governo, porém de insegurança diante de dois países em torno dos quais Brasília tem interesses diferentes e dificilmente convergentes se tratados além da visão bilateral.
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Virgílio Arraes
Doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.