EUA: em lembrança da iniciativa de Daniel Ellsberg
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- Virgílio Arraes
- 22/06/2023
A potência dos Estados Unidos (EUA), indiscutível nas duas confrontações planetárias entre 1917 e 1945, diluiu-se na seguinte, conhecida como Guerra Fria, em decorrência da disputa global entre eles e os soviéticos, por sua vez, representantes principais de maneira respectiva do capitalismo e do comunismo.
Conquanto a ampliação do seu inexcedível poderio militar, haja vista o número de artefatos nucleares e de tropas disponíveis, o desgaste político da Casa Branca seria crescente: nos anos 50, com a Guerra da Coreia e com a Crise de Suez no Egito; nos 60, com a Crise dos Mísseis de Cuba e com a Guerra do Vietnã.
À medida que o tempo se desdobrava, a rivalidade amero-soviética aumentava, apesar de efêmeros arrefecimentos, impulsionada também pelo alcance cada vez maior dos meios de comunicação no lado ocidental.
Até o encerramento da Segunda Guerra Mundial, governos tinham controle relativo sobre a circulação do registro dos acontecimentos ultramar, de sorte que podiam editar versões mais favoráveis a fim de exibir a seus habitantes e, assim, estimular o moral patriótico, por exemplo, pelo noticiário jornalístico ou cinematográfico.
Com o advento da televisão, a sociedade estadunidense deparava-se com nova opção de informação gratuita, materializada em canais concorrentes entre si pela atenção incessante de telespectadores e, ao mesmo tempo, pela necessidade de atrair anúncios frequentes de empresas.
Malgrado a incansável disseminação rádio-televisiva no território norte-americano, ao estender sua programação durante o dia todo, periódicos ainda fascinavam o público em geral. Desde meados da década de 60, a tiragem diária média superava os 60 milhões de exemplares - https://www.pewresearch.org/journalism/fact-sheet/newspapers/ .
Se nos anos 40 fotografias ou filmetes glorificavam o esforço da administração federal na política exterior, na de 60 eles a corroíam. Atacar a ideologia comunista em país distante e pobre como o Vietnã já não atraía o apoio interno do eleitorado até em função da demora da invasão e de seus resultados desfavoráveis.
Desgastavam-se os norte-americanos com a disputa de forma dupla: nos campos de batalha, a superpotência enfrentava rival faltoso de recursos, porém obstinado em resistir à capacidade castrense do invasor; em casa, a população menosprezava a mobilização governamental voltada a conter a onda de esquerda no continente asiático.
Dadas a condição financeira e a disposição do Executivo, via Pentágono, de manter a presença de contingentes em solo vietnamita, o conflito aparentava prolongar-se de maneira indefinida, a não ser que houvesse iniciativa incisiva do Legislativo, desde que estimulado de modo contínuo pela insatisfação da opinião pública.
A despeito da repercussão viva dos canais de TV, uma das materializações mais peremptórias do descontentamento da sociedade com o andamento da Guerra do Vietnã adviria de meio de comunicação tradicional, o jornalístico, pela publicação de artigos em série dos prestigiados New York Times e Washington Post.
O repertório viria a ser conhecido por leitores da nação a datar de junho de 1971 com o nome de documentos do Pentágono (Pentagon Papers), fruto do destemor de Daniel Ellsberg, ex-servidor do Departamento de Defesa e funcionário do importante centro de investigação e de reflexão RAND corporation, responsável por copiar arquivos secretos com milhares de páginas relacionadas com o acompanhamento pormenorizado de anos do avanço do socialismo na Ásia entre 1945 e 1967, em especial com o do Vietnã - https://www.loc.gov/exhibitions/drawing-justice-courtroom-illustrations/about-this-exhibition/crime-corruption-and-cover-ups/daniel-ellsberg-and-the-pentagon-papers/.
A veiculação, após rigorosa avaliação das equipes de reportagem do diário nova-iorquino e washingtoniano, fortaleceria o posicionamento antibelicista e contribuiria para desestimular de modo gradativo o engajamento de Washington contra Hanói.
A incomum iniciativa valeria vigorosa reação do governo de Richard Nixon, ao considerar o vazamento espionagem e, por conseguinte, crime de lesa-pátria. Ao levar a questão ao Judiciário, com o fito de proibir as reportagens, a administração federal teria vitória na primeira instância, mas ao cabo o Superior Tribunal garantiria a publicação do material.
Apesar da posição judiciária, Ellsberg seria vítima da mão pesada da Casa Branca: o consultório de seu antigo psiquiatra seria arrombado em busca de seu histórico e sua linha telefônica seria grampeada de forma clandestina com o intuito de coletar dados adversos a ele e de identificar outros envolvidos.
Além disso, receberia ele acusações de espionagem, amparadas sob legislação da época da Primeira Guerra Mundial, e de formação de quadrilha, cujas penas poderiam ultrapassar um século caso fosse condenado. De novo, o Judiciário não acataria a argumentação governamental e anularia o processo em maio de 1973.
Décadas depois, seu exemplo iria inspirar ações similares concernentes à divulgação de informações oficiais vinculadas com dois conflitos: o do Afeganistão e o do Iraque.
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Virgílio Arraes
Doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.