Iraque: a dissolução do país
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- Virgílio Arraes
- 24/04/2008
Após o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, as forças armadas norte-americanas intentam adaptar-se a formas constantes de combate dos países periféricos, não mais centradas em exércitos convencionais – defasados tecnologicamente e, portanto, incapazes de oferecer resistência duradoura –, porém nas guerrilhas, cujos membros difundem-se na própria população e empregam armamentos leves.
Tanto no Iraque como anteriormente no Afeganistão, ao encerrar-se a fase de deposição dos governos locais, as tropas estadunidenses teriam de comportar-se como polícia, a fim de garantir a manutenção da ordem interna até a organização de uma nova administração.
Todavia, elas mostraram-se duplamente despreparadas para assumir a responsabilidade porque nem conseguiram estabilizar nenhum dos dois países, fragmentados em disputas étnicas e religiosas, nem treinar adequadamente os policiais e militares. No caso do Iraque, ele teria sido o primeiro experimento dos formuladores neoconservadores rumo a uma região democrática e neoliberal.
Um dos primeiros episódios – e um dos mais lamentáveis - do Iraque recém-ocupado foi o saque da Biblioteca Nacional, depositária de documentação de valor histórico inestimável. Nela, havia, por exemplo, vários textos de antigos autores latinos e gregos bem como farta documentação sobre o período em que o país havia pertencido ao Império Otomano e depois, em que foi independente, sob a forma de uma monarquia encabeçada por membros do clã hachemita, descendente de Maomé.
Ao entregá-la à própria sorte, os efetivos anglo-americanos desrespeitaram a Convenção de Haia, de 1954, para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado. Embora os Estados Unidos não a tenham ratificado, o Iraque o fizera em dezembro de 1967 - o Brasil, a título de curiosidade, em setembro de 1958.
Em 2004, a verba destinada à recuperação da Biblioteca pelo Governo Provisório não chegou a cem mil dólares – atualmente, há certo auxílio da Agência Norte-Americana para o Desenvolvimento (Usaid) e da Biblioteca Nacional Britânica. Contudo, se não houve a preservação dos registros históricos de forma adequada para ela, houve para o Ministério do Petróleo e para a Polícia Secreta.
Saliente-se que o dilaceramento do país é justificado pelas forças armadas norte-americanas pelo número inadequado de combatentes disponíveis, a esta altura bastante sobrecarregados com as suas obrigações cotidianas. O desgaste reflete-se, sem sombra de dúvida, no dia-a-dia. Nem mesmo a parceria oficiosa com seguranças privados – contractors – de várias nacionalidades amenizou a tensão, tanto para os cidadãos como para os militares.
Não há razão plausível, até o momento, para o desmantelamento quase total da burocracia iraquiana, à guisa de eliminação da presença do Partido Baath. A remoção teria de ser, ao menos em um primeiro momento, restrita à cúpula. Desvaneceu-se, assim, a memória administrativa mais recente da ditadura iraquiana.
Ao desconstituir a totalidade das forças armadas e polícia, por exemplo, não se promoveu ao mesmo tempo o desarmamento eficiente de seus ex-membros. De servidores públicos – mesmo mal - remunerados passaram para desempregados armados, em um país em conflito e sem perspectiva imediata de recuperação, devido ao desmantelamento de sua infra-estrutura.
Além do mais, em detrimento da mão-de-obra local, importaram-se, por intermédio das empresas contratadas para reconstruir o país, dezenas de milhares de trabalhadores da Índia e das Filipinas, sob justificativa de maior familiaridade com o idioma inglês. Com o desemprego em índices altos, as guerrilhas sectárias – por religião ou etnia - beneficiaram-se indiretamente da incúria desta decisão.
Por outro lado, pode-se enxergar temporariamente benefícios para a coligação transatlântica, visto que não há grupo algum no país que consiga ofertar aos seus compatriotas plataforma política de alcance nacional.
Isto, no futuro próximo, auxiliará a permanência, ainda que discreta, das tropas estrangeiras: é a execução inspirada remotamente na divisa latina divide et impera (dividir para governar), também aplicada pelos britânicos na região durante a sua presença imperial há algumas décadas. Contudo, os custos humanos e materiais da adoção de tal estratégia dificilmente serão superados.
Virgílio Arraes é professor de Relações Internacionais na UnB.
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João Rodolfo
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