Correio da Cidadania

Fim de uma era?

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É fato que o neoliberalismo não chegou ao seu final com o profundo choque no setor imobiliário – Fannie Mae e Freddie Mac - e no bancário – Lehman Brothers e Wachovia - nos Estados Unidos, porém a crendice em sua eficiência duradoura, sim. É possível, no entanto, que muitos zelotes desta profissão de fé continuem ainda a sua pregação, mas sem a reverberação do passado.

 

O mercado desprendido não conseguiu, portanto, manter-se estável por muito tempo – nem sequer se aproximou da maioridade completa. Destarte, a regulamentação é inevitável em virtude da distribuição deplorável dos prejuízos para toda a sociedade. Observe-se que o período de auge do neoliberalismo brilhou menos do que o da social-democracia.

 

Nem o mais panglossiano dos neoliberais – mesmo na América Latina - cometeu a parvoíce de opor-se abertamente à imediata intervenção do Estado, já empregada pela Casa Branca com o fito de tentar minimizar a severidade dos danos. A presença estatal justifica-se em decorrência da necessidade premente de ressuscitar o setor hipotecário e, por conseguinte, impedir o colapso da economia.

 

Reconheça-se que a desregulamentação desenfreada na economia trouxe, ao longo de aproximadamente duas décadas, prosperidade, porém apenas para poucos no planeta. A partir da década de 80, a divisa neoconservadora foi menos impostos e menor presença do Estado, o que significou, no cotidiano, cortes orçamentários nas rubricas sociais.

 

Em tese, os neoliberais crêem que, havendo abertura, haverá abundância material. A objeção de que a desregulamentação não conduziria, por exemplo, ao desaparecimento de pequenas empresas e, por conseguinte, à formação de monopólios não é por eles aceita. Todas as tentativas de regulamentação seriam resquícios do Antigo Regime, do período do florescimento e afirmação das corporações, sérios entraves ao crescimento.

 

No momento, para a grande maioria da população, notadamente nos estratos sociais menos opulentos, coube-lhe meramente a desilusão, após vislumbrarem de soslaio uma possível era de prosperidade. Basta assistir ao noticiário para observar estatísticas de milhões de norte-americanos desalojados de suas residências em vista dos efeitos do desemprego – muitos vivendo em carros.

 

Além do mais, o quadro atual desfaz a possibilidade de um retorno célere a taxas maciças de crescimento. Contudo, é temerário afirmar que a economia norte-americana adentre em um processo recessivo similar ao de muitos anos no Japão na década de 90.

 

A eliminação, mesmo parcial, do controle no funcionamento dos mercados deveria, na opinião dos partidários da desregulamentação, viabilizar principalmente companhias detentoras de bons projetos, mas sem capital suficiente para levá-los a cabo. Esta situação levaria, então, a partilhá-los por intermédio do estabelecimento de composições, ou seja, com sócios.

 

Estes, ao comprarem ações disponíveis, passariam a ter como contrapartida uma parte da companhia e uma expectativa de auferir bons rendimentos. Os parceiros do empreendimento poderiam ter um perfil variado, indo de pequenos poupadores da classe média a grandes investidores – em muitos casos, especuladores.

 

Na prática, são os últimos que têm determinado o incessante ritmo da compra e da venda de ações, tendo por interesse não a inovação ou mesmo a associação, mas meramente o lucro no curto prazo. Os defensores do neoliberalismo argumentam que a ação destes induz o pleno desenvolvimento da economia; por seu turno, os céticos afirmam que há somente o ganho de poucos. Desligados cada vez mais do mundo produtivo, os especuladores conseguiram sem as antigas amarras legais assemelhar o seu comportamento ao de jogadores de cassino.

 

Para o grosso da sociedade, principalmente na classe média do eixo atlântico - desprovida dos mecanismos de proteção destinados aos investidores ou aos especuladores de porte -, a materialização do desapontamento será em pouco tempo a titularidade de uma dívida de difícil quitação no curto prazo, em face das características dos contratos de hipoteca.

 

Mesmo diante do desmoronamento norte-americano, a continuidade de um período de fartura é credulamente observada como viável em muitos países da periferia, como no Brasil, por exemplo. Boa parte das elites latino-americanas acredita piamente na contenção eficiente dos efeitos deletérios advindos dos mercados do norte.

 

Em termos de comparação histórica, diferentemente da crise desencadeada em outubro de 1929, quando do segundo semestre da administração do presidente Herbert Hoover, republicano, desta feita, o contratempo econômico chegou ao final do duplo quatriênio de George Bush, do mesmo partido, em pleno período eleitoral, o que limita a possibilidade de reação. Ademais, o atual titular ainda se depara com outro problema de monta: o militar, ao conduzir duas guerras de longa duração.

 

Quanto aos republicanos liderados por Hoover, os democratas sob Franklin Roosevelt terminaram por superá-los de maneira acachapante na disputa presidencial de 1932, ao conquistarem quase 500 votos no colégio eleitoral e a maioria nas duas casas. Concernente a Bush, a probabilidade de que o seu partido perca em novembro é substancial, ainda que não de modo esmagador, em decorrência da incerteza do tamanho da presente atribulação.

 

Resta observar, caso os democratas vençam, se eles terão o mesmo tirocínio para aplicar uma política anticíclica como a efetivada pelo seu partido nos anos 30. Naquela época, o objetivo havia sido duplo: a redução do desemprego – durante muito tempo, acima da casa dos 20% - e a supervisão das flutuações econômicas. No longo prazo, uma das conseqüências deste posicionamento político foi um desenvolvimento econômico maior, com menor desigualdade social.

 

Virgílio Arraes é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.

 

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