Estados Unidos: qual democracia no Oriente Médio?
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- Virgilio Arraes
- 17/09/2011
No despontar dos primeiros anos do século XXI, há a impressão geral de que a democracia progressivamente se incorpora ao cotidiano do planeta. Nos últimos meses, constata-se, por exemplo, sua emergência entre a juventude em países cujas elites sempre se opuseram a ela, como no Oriente Médio e adjacências – movimentação alcunhada pelos meios de comunicação de Primavera Árabe.
Não obstante haver avanços, ela não se firmou ainda, de sorte que é preciso zelar de maneira constante por sua existência, ou melhor, por sua sobrevivência. Atualmente, se, por um lado, se reconhece seu valor universal, há poucas décadas havia tal consenso, principalmente ao longo da disputa ideológica entre Estados Unidos e União Soviética por cerca de quarenta anos.
Em novembro de 1979, veiculou-se um artigo na revista Commentary, publicação de feitio conservador, onde se criticava a execução da política externa do presidente Jimmy Carter, do Partido Democrata. Sua autora, Jeanne Kirkpatrick, era professora da renomada Universidade Georgetown.
O texto chamou a atenção do público especializado por dois motivos: o polêmico teor, por causa dos conceitos enunciados, e a filiação política de Kirkpatrick, democrata de longo tempo.
De certa maneira, o trabalho terminou por representar sua despedida do campo democrata, visto que ela seria convidada, depois do êxito eleitoral de Ronald Reagan, do Partido Republicano, para ser a representante norte-americana na Organização das Nações Unidas – seria a primeira mulher a ocupar o posto, local em que ficaria por quatro anos.
O artigo, desdobrado em livro em 1982, apresentou uma visão singular das ditaduras existentes. O autoritarismo de direita seria bastante distinto do totalitarismo de esquerda, apesar de críticas comuns a ambos por conta do desrespeito aos direitos fundamentais – na época, Cyrus Vance, titular do Departamento de Estado, corretamente afirmava que tortura não tinha ideologia.
De acordo com a autora, os regimes totalitários/esquerdistas – embora invocassem valores liberais clássicos como liberdade e igualdade – valer-se-iam da coerção para modificar de forma definitiva a estrutura de uma sociedade, mesmo a vinculada à cultura – seria a reeducação ou a reengenharia social.
Por sua vez, os autoritários/direitistas, apesar da manutenção da desigualdade sócio-econômica e do patrimonialismo, tradicionalmente sustentariam determinados princípios, até mesmo cristãos. Isso possibilitaria manter características pessoais e familiares em todo o convívio social.
Assim, haveria mais espaço para a mudança positiva de um país, ou seja, o de direcionar para a democracia - mutatis mutandis - o exemplo do ‘homem cordial’ de Sérgio Buarque de Holanda.
No balanço da acadêmica, o custo social de alteração seria, a princípio, menor nos governos autoritários. A prova definitiva da diferença entre os dois tipos seria exemplificada na quantidade de refugiados, o que demonstraria a (in)satisfação de uma população com um certo tipo de regime político.
A temática humanitária era cara ao governo de Carter. Foi uma maneira de buscar a recuperação da imagem dos Estados Unidos, depois da malograda presença por anos no Vietnã. Desta feita, ele tentou apartar sua administração da dos antecessores, ao valorizar negociações diplomáticas mais cristalinas, independentemente de ser o país aliado, alinhado ou inimigo, ao reforçar, em tese, valores democráticos e ao aproximar-se mais do Congresso. Duas conseqüências foram a tentativa de estreitamento com a América Latina e com a África e a contenção da corrida armamentista nuclear.
Ao decidir que direitos humanos permeariam sua política exterior, Carter intentou responder aos opositores do país, costumeiros lembradores da postura imperialista de Washington. Na América Latina, centrou-se atenção no Brasil, Chile e Argentina, observado este o caso mais escandaloso. Em junho de 1977, a primeira-dama norte-americana, Rosalynn, oficialmente deslocou-se a sete países e neles todos mencionou questões polêmicas, como o combate a ilícitos transnacionais, a assinatura do tratado de não proliferação de armas nucleares, comércio bilateral e, por fim, direitos humanos.
Dado que o continente havia se distanciado da tentação comunista, ele podia aplicar sem restrições os direitos fundamentais. O novo posicionamento não proporcionou resultados efetivos no segmento humanitário e ocasionou manifestações de descontentamento por parte dos ditadores locais – enxergavam as recomendações como descabida intromissão. No caso do Brasil, o país aproveitou o descontentamento e não renovou o acordo militar bilateral, vigente desde 1952.
Diante de tais exemplos, o texto de Kirkpatrick indicou de modo pragmático a desnecessidade de mudar, uma vez que o saldo contrapunha-se aos interesses do país. Assim, concentrar-se de maneira utópica em uma temática tão complicada apenas favoreceria o adversário maior, a União Soviética, por dispor em plano secundário tópicos militares e econômicos.
Com a vitória de Ronald Reagan, a atenção a direitos humanos seria substituída por outra, vinculada à democracia. Isso desaguaria na aceitação de alterações meramente compensatórias - no plano sócio-econômico, nunca estruturais. Em resumo, seria a era das democracias formais, não substantivas.
A troca de prioridade dos Estados Unidos viabilizou a várias ditaduras, especialmente as sul-americanas e médio-orientais, prolongar a sobrevivência, ao desenvolver a fórmula de uma transição sempre negociada, com duração longa, por vezes de muitos anos.
As últimas movimentações políticas no norte da África e no Oriente Médio indicarão em breve se o caminho seguido por aquelas sociedades rumo à democracia será o mesmo da América Latina: espera-se que eles avancem bem mais na pavimentação dos direitos fundamentais.
Virgílio Arraes é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.