Correio da Cidadania

O rumo do retrocesso

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O ex-presidente FHC continua pontuando, apesar do descalabro em que deixou o Brasil. Como boquirroto, no entanto, em recente artigo ele nos brinda com o programa que as forças conservadoras estão colocando em ação. Segundo ele, é preciso começar mudando a visão de mundo segundo a qual o Ocidente estaria “em declínio” e que, de sua crise, os BRICS, o mundo árabe e o ex-terceiro mundo teriam papel de destaque. Por quê? Porque isso não estaria acontecendo.

 

Para FHC os EUA salvaram seu sistema financeiro, afogaram o mundo em dólares e deram uma “arrancada forte na produção de energia barata”. Ou seja, FHC não entende que a “salvação” do sistema financeiro norte-americano e o afogamento do mundo pelos dólares é justamente o sinal mais evidente do declínio dos EUA. Fazem isso à custa da sua indústria e do trabalho. Mais de 50 milhões de norte-americanos vivendo abaixo da linha da pobreza é um dos sinais mais evidentes da ladeira em que ingressou seu “way of life”. E os problemas ambientais e sociais causados pela exploração do xisto estão rapidamente se transformando de barato em caro.

 

Estranhamente, FHC nada diz sobre a Europa saindo do declínio, já que lá não há qualquer sinal de fumaça. Ele prefere falar dos árabes “se estraçalhando”, sem lembrar que isso se deve, em grande medida, à interferência estadunidense, que armou os talibãs, Al Qaeda, ISIS e outros grupos que, como Frankenstein, se voltam contra seu criador. Ou diz, com desdém, que a Rússia “passou a ser produtora de matérias-primas”, ignorando os projetos de suas relações com a China e esquecendo que ele próprio, FHC, cumpriu o vergonhoso papel de transformar o Brasil na mesma condição.

 

De passagem, reconhece que “só a China foi capaz de dar ímpeto à sua economia”. Mas tira como única conclusão desse fato que “as próximas décadas” serão de “coexistência competitiva” entre os EUA e a China. Em virtude disso, partes da Europa se integrarão “ao sistema produtivo norte-americano”, enquanto as “potências emergentes”, como o Brasil, México e África do Sul, terão que buscar “espaços de integração comercial e produtiva para não perderem relevância”.

 

FHC sabe que o “sistema produtivo norte-americano” é o sistema corporativo de suas transnacionais globalizadas, enquanto o território estadunidense se encontra num perverso processo de desindustrialização. E que as corporações europeias travam uma competição incessante com as norte-americanas e japonesas, enquanto as “potências emergentes” estão justamente articulando-se através dos BRICS e outros acordos para enfrentar a competição destrutiva das corporações globais e não perder relevância. Apesar disso, omite que o Brasil perdeu relevância justamente durante seu governo, por se subordinar à lógica dessas corporações.

 

Porém, nada disso parece importar. A ótica consiste em fazer com que a politica externa brasileira mude de foco. Abra-se ao “Pacífico”; estreite “relações com os Estados Unidos e a Europa”; faça “múltiplos acordos comerciais”; não tema a “concorrência”; ajude o país a “se preparar para ela”; volte a “assumir seu papel na América Latina”; livre-se do “bolivarianismo prevalecente”; se engaje no “Arco do Pacífico”; se livre do abraço das “irracionalidades argentinas”; dê mais atenção ao “aumento da produtividade, sem redução dos programas sociais”; não restrinja o “aumento da produtividade ao chão das fábricas”; realize um “ousado programa de ampliação e renovação da infraestrutura”; dê “maior atenção à qualificação das pessoas” e “às suas condições de saúde, segurança e transporte”; abaixe “os impostos sem selecionar setores beneficiários”; e abra “mais a economia, sem temer a competição”.

 

Ou seja, por um lado, FHC sugere que a política externa volte a ser aquela que implantou durante seu período neoliberal, com o agravante de que considera o Pacífico um oceano norte-americano, sequer comentando que o eixo principal de desenvolvimento mundial se deslocou para o sudeste da Ásia, ou o Pacífico oriental. Por outro lado, sugere o contrário do que fez durante seus oito anos de governo. Não esqueçamos que nesse período o “chão das fábricas” foi em grande parte destroçado e desnacionalizado pela ação das corporações estrangeiras, a infraestrutura foi sucateada, o ensino profissional foi quase destruído, a educação e a saúde foram privatizadas e desqualificadas, os impostos continuaram elevados, e a economia foi totalmente aberta para os oligopólios internacionais. Ou seja, se sua política externa é de subordinação aos EUA e Europa, sua política interna será a mesma de quando foi presidente.

 

Basta ver que, para realizar tal programa, FHC propõe a “redefinição das relações entre o governo e a sociedade, entre o Estado e o mercado”. Como? Despolitizando “as agências reguladoras”, estabilizando “os marcos regulatórios”, revigorando e estimulando “as parcerias público-privadas para investimentos fundamentais”. Ou seja, fazendo “com competência o que o governo petista paralisou” e o governo Dilma “vê-se obrigado a fazer”, mas “atabalhoadamente”, deixando de mobilizar o “setor privado, os investimentos na escala e na velocidade necessárias para o país dar um salto em matéria de infraestrutura e produtividade”.

 

O problema da infraestrutura e da produtividade consiste em que FHC não tem moral alguma para dar lição a ninguém. Seus governos foram um fracasso total e uma auditoria a respeito poderia levá-lo a ser qualificado como algo mais grave do que “atabalhoado”. Mas FHC, para justificar seus pontos de vista, vê-se constrangido a acusar os governos Lula e Dilma de “anti-privatistas e estatizantes”, algo que não tem comprovação empírica alguma. Pela esquerda, ambos têm sido qualificados como “privatistas” e “pouco estatizantes”, ambos acreditando que a burguesia, mesmo com juros reais de 5% ou mais, seria empreendedora industrial ao invés de jogar nas bolsas.

 

Certamente, ambos garantiram que as estatais não continuassem sendo privatizadas, o que deixaria o Estado sem qualquer instrumento de orientação econômica, mas o setor privado brasileiro há muito não se desenvolvia tanto como nos últimos 12 anos. A tal ponto que sua ânsia de lucros abusivos o levou a praticar a corrupção numa escala desmesurada, como está sendo demonstrado pela operação Lava-Jato. Portanto, se algo pode ser criticado nos governos Lula e Dilma é que deveriam ter fortalecido a ação controladora do Estado para criar maiores barreiras à corrupção, algo para o qual as agências reguladoras se mostraram incompetentes.

 

O objetivo de FHC é, porém, mais específico. Quase como advogado das corporações petrolíferas estrangeiras, reclama da definição do modelo de exploração do pré-sal, que garantiu a Petrobras como operadora única e participante acionária de 30% de qualquer consórcio de exploração dos poços da área. Embora o leilão de Libra tenha demonstrado que isso não afugenta os interessados, não reduz o potencial de investimentos em sua exploração, nem diminui os recursos que o Estado poderia obter com o regime de partilha, FHC teima em repetir que o modelo “é ruim para a Petrobras e péssimo para o país”. A Chevron e congêneres certamente agradecem.

 

A sanha doutoral de FCH não para por aí. Ensina que “tão necessário quanto recuperar o tempo perdido e acertar o passo nas obras de infraestrutura, será desentranhar da máquina pública e, sobretudo, nas empresas estatais”. Segundo ele, “felizmente nem todas cederam à sanha partidária”. Esquece que, em sua época, as estatais, além da privataria que as arrebanhou, não estiveram livres das indicações partidárias do PSDB e confraria.

 

No mesmo tom professoral, ele conclama o restabelecimento do “sentido de serviço público nas áreas sociais, de Educação, Saúde e reforma agrária, resguardando-as do uso para fins eleitorais, partidários ou corporativos”. Clama pela revalorização da “meritocracia”; pela “obsessão” no “cumprimento de metas” para um “salto na qualidade dos serviços públicos”; pela “cultura de planejamento”; pela “cobrança por desempenho e avaliação de resultados”, sem “marketismo”. É como se dissesse que, em sua experiência de governo, esteve isento do “sistema de cooptação, barganhas generalizadas, corrupção, despreparo administrativo e voluntarismo”. Haja “esquecimento”!

 

Assim, sem qualquer pudor, FHC quer “redesenhar a rota do país”, com “mudanças no governo”. Haveria “um grito parado no ar, um sentimento difuso, mas que está presente”, cabendo “às oposições expressá-lo e dar-lhe consequências políticas”. Essa “esperança” do ex-presidente parece estar sendo posta em prática pelo PMDB e outros partidos da base “aliada” e da oposição ao governo Dilma. Eles o estão emparedando para cumprir o programa desenhado por FHC. E estão avançando na reforma política de seus sonhos, para evitar que os trabalhadores e o povo tenham voz e participação, e se contentem com o voto como expressão máxima da democracia. Estamos ingressando no rumo do retrocesso.

 

 

Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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