Socialismo latino-americano
- Detalhes
- Wladimir Pomar
- 02/03/2015
Continuando nosso diálogo com o socialismo de Cláudio Katz, concordamos que as experiências socialistas voltaram a despertar interesse na América Latina. Seja, como ele pensa, em virtude das vitórias e derrotas dos anos 60 e 70 do século passado, seja porque o socialismo teria reaparecido como projeto na Venezuela e na Bolívia, procurando apresentar “novas modalidades” em Cuba, e tendo sido concebido em escala regional pela ALBA.
A partir daí, nossas divergências voltam à tona. Katz considera que em todos esses casos teria reaparecido a necessidade de uma “confluência da esquerda regional com o nacionalismo revolucionário”. Por quê? Segundo ele, pela existência de um “anti-imperialismo em todos os projetos de transformação social”. A batalha contra o intervencionismo estadunidense determinaria tal confluência ou convergência. Portanto, não seria o desenvolvimento capitalista o gerador do socialismo, mas o nacionalismo revolucionário. É isto que, para Katz, teria feito com que “a luta pelo socialismo sempre fosse concebida na América Latina em um plano regional”. Faltou pouco para dizer que surgiu com Bolívar e San Martin.
Ou seja, Katz atropela a história da luta socialista na América Latina, que jamais foi concebida em um plano regional. A “Grande Pátria” bolivariana era revolucionária, mas seu conteúdo era nacionalista liberal. E ela sequer foi capaz de unificar as forças nacionais, forjadas pela dominação colonial espanhola, contra a política imperialista das novas potenciais imperiais capitalistas. E o Brasil, primeiro atrelado ao imperialismo inglês e, depois, ao norte-americano, manteve-se em pé de guerra contra seus vizinhos latino-americanos até meados do século 20.
Também não tem base empírica supor que qualquer projeto estratégico atual “deva ser apresentado nesse nível” regional porque, segundo pensa, da mesma forma que as classes dominantes formulam suas políticas nesse terreno, os setores populares não poderiam “restringir suas iniciativas ao campo meramente nacional”. Na verdade, historicamente, não só o desenvolvimento capitalista nos diversos países da América Latina tem sido extremamente desigual, como os projetos socialistas que emergiram em cada um deles têm sido fundamentalmente nacionais.
Nessas condições, afirmar que a ALBA teria “aportado uma interessante proposta regional com horizontes socialistas”, ao “promover formas solidárias de integração, contrapostas aos Tratados de Livre Comércio e diferenciadas do regionalismo capitalista do Mercosul”, não é um caminho adequado para pregar qualquer caráter socialista à ALBA. Moeda comum e reformas agrárias nada têm de socialistas. Oposição ao agronegócio tem, mais do que tudo, um caráter democrático-burguês. E grandes empresas petrolíferas, mesmo sendo estatais, podem estar mais a serviço do desenvolvimento capitalista do que do socialismo. Talvez por tudo isso, e diante das necessidades imperiosas de desenvolvimento nacional, Venezuela, Bolívia e Equador estejam adotando a política inteligente de participar do “regionalismo capitalista do Mercosul”.
Além disso, auditorias das dívidas externas, concretização do Banco do Sul, criação de um fundo de estabilização cambial de âmbito regional, e coordenação regional das reservas e movimentos de capitais, podem realmente dar “uma base comum” a “processos políticos radicais”, determinando um “sólido embasamento para um futuro socialista”. No entanto, também podem dar uma base comum ao desenvolvimento do mercado latino-americano, determinando um “sólido embasamento” para um desenvolvimento capitalista.
Afinal, no mundo hegemonizado pelo modo de produção capitalista, a luta de classes abrange tanto a luta entre vendedores (classe trabalhadora) e compradores (classe burguesa) de força de trabalho quanto a luta feroz (concorrência ou competição) entre os próprios burgueses e entre os próprios trabalhadores. A luta entre as burguesias têm se desdobrado em “processos políticos radicais”, crises e guerras tanto entre as burguesias das potências capitalistas, quanto entre estas e burguesias locais. Um exemplo foram as lutas pela independência na América Latina, Ásia e África, em diferentes momentos da história, que contaram com a participação de setores burgueses nacionais. A atual luta pela integração latino-americana, que procura escapar à submissão cega ao império do norte, não conta apenas com formas “solidárias”. Conta principalmente com formas mercantis que têm por base empresas capitalistas, nacionais e transnacionais.
Portanto, no quadro da disputa entre as burguesias latino-americanas e a burguesia ianque, a diversidade do desenvolvimento capitalista na América Latina não é algo menor. Não é por acaso que todas as medidas apresentadas por Katz vêm sendo adotadas não só pelos países da ALBA, mas por um número bem maior de países latino-americanos, contribuindo para o desenvolvimento capitalista regional, sem apagar as diferenças nacionais. Ou seja, não apagam o fato de que os projetos nacionais capitalistas tendem a forjar projetos socialistas diferentes, por mais que possam ser solidários entre si. Se isto não for levado em conta, qualquer unidade popular no continente não passará de um sonho, o mesmo sonho de dois séculos para conquistar uma “segunda Independência”.
A suposição de que o projeto de unidade latino-americana não esteja corroído pelas mesmas exigências separatistas que sacodem a Europa, é subjetiva. O separatismo latino-americano foi concretizado há mais de dois séculos com a divisão em diferentes países (no caso da divisão da República Centro Americana, há menos tempo), apesar de seus idiomas não serem tão diversos quanto os europeus. Foi justamente a existência de estruturas nacionais historicamente incompletas e obstruídas pela dominação imperial que constituiu a base dessa diversidade de projetos nacionais.
Talvez por isso Katz tenha se visto obrigado a reconhecer que os chamados “teóricos do marxismo latino-americano” tenham não só reivindicado a “gesta da Independência de San Martin e Bolívar”, e a “fórmula de Nossa América de Marti”, mas também considerado as “especificidades nacionais”, como Mella e Mariátegui. Mas, ao invés de tomar isso como contradições reais, Katz sustenta que o regionalismo latino-americano possui um veio internacionalista, por onde seu socialismo se desenvolveu em intensidade desde a revolução cubana.
Tal veio teria impulsionado a criação de organismos revolucionários continentais, a realização de conferências tricontinentais e o envio de missões de “solidariedade militante” a várias partes do mundo. Ele teria reaparecido, na última década, por meio da proposta de criação de uma nova Internacional Socialista. Para ser coerente com a realidade, Katz poderia ter acrescentado que os “organismos revolucionários continentais”, “as conferências tricontinentais” e as “missões militantes”, que tentaram exportar revoluções, fracassaram e feneceram. E que, paradoxalmente, as revoluções só tomaram impulso nos períodos em que a situação internacional levou à dissolução das Internacionais.
Já os Fóruns Sociais Mundiais, que ele procura agregar a tal “veio internacionalista”, têm outros objetivos e seus resultados estão em processo de reavaliação. É verdade que eles contribuíram para o protesto global contra o capitalismo mundializado. No entanto, talvez seja necessária mais modéstia e menos soberba ao supor que o “marxismo latino-americano atual delimita esta dimensão global do capitalismo contemporâneo e, por conseguinte, a necessidade de ações comuns de todos os explorados e subjugados do planeta”. Mesmo porque, como o próprio Katz reconhece, “as tradições nacionais e regionais mantêm uma influência decisiva”.
Assim, proclamar que “o socialismo atual recupera a necessária convergência de processos de emancipação nacional e social”, buscando “relançar um projeto com raízes nacionais e respostas mundiais ao capitalismo globalizado”, não passa de empáfia. Os socialistas e comunistas, ao contrário, precisam reconhecer que ainda estão nos primeiros passos de sua recuperação. Ainda estão longe de retomar a análise marxista das leis do desenvolvimento capitalista e das formas históricas locais que essa formação econômica e social assume em cada região e nação. E sua compreensão sobre o novo estágio do desenvolvimento capitalista globalizado, e sobre as formas das lutas de classe que tal estágio impõe, ainda são incipientes.
Tudo bem que se proclame que o socialismo “encarna a maior esperança do século 21 e pode ser uma bússola para todos os povos que anseiam por igualdade e justiça”. Mas, da mesma forma que não podemos confundir propaganda com ação, não devemos confundir desejo com realidade.
Leia também:
Wladimir Pomar é escritor e analista político.