Correio da Cidadania

Primeiro passo

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É verdade que o PT tem pela frente uma situação séria a resolver quanto àquilo que o professor Bosi chamou de “mazelas”, principalmente relacionadas com “a corrupção que envolveu alguns membros do partido”. No entanto, ele se confronta também com uma situação inusitada quanto ao governo que formalmente dirige. Governo reeleito com a promessa de fazer “mais e melhor”. Porém que, apesar disso, chegou à conclusão que o país vivia uma situação econômica caótica. As contas públicas estariam desarranjadas, a inflação estaria saindo do controle, o Brasil correria o risco de perder o grau de investimento etc. etc. etc.

 

Ao acreditar nessa miragem negativa montada pelo deus mercado, o governo formalmente dirigido pelo PT ingressou, sem ouvir sua base social e política de apoio, e sem ouvir o próprio partido, no caminho de um “ajuste fiscal”. Este penaliza principalmente aos trabalhadores e aos setores sociais intermediários, e premia o sistema financeiro. Em outras palavras, realizou uma guinada que Belluzzo qualificou de “direita”, e que alguns economistas mais calmos têm chamado de “desajuste”.

 

Há um certo consenso entre os atuais críticos que, desde 2013, existia um agravamento da situação econômica. Por um lado, porque o governo teimava em manter o “crescimento via consumo”, sem associar a isso um nível crescente de investimentos. Por outro, porque as perspectivas do cenário internacional apontavam para uma redução da demanda e dos preços das commodities minerais e agrícolas, que jogam um papel exagerado na balança comercial brasileira. Apesar disso, como apontam inúmeros economistas livres das viseiras neoliberais, os índices de preços encontravam-se em patamares de um dígito, as contas públicas podiam ser controladas pelos sistemas normais, e a relação dívida/PIB mantinha-se num nível razoável. Como diz Leda Paulani*, “consideradas as despesas totais, ou seja, juros da dívida inclusos, nossa relação déficit/PIB anda na casa dos 3%, contra 4% nos países do Euro, 8% no Reino Unido e 9% no Japão”.

 

Portanto, a rigor, desde 2013 a questão central residia em mudar a política de crescimento via consumo, associando-a a uma forte política de investimentos. Porém, naquele momento, para muitos dirigentes e teóricos petistas, a situação econômica estava sob controle, sendo desnecessário mudar de estratégia. Aos alertas de que a burguesia brasileira estava criando um “clima de terror”, como agora o chama Paulani, para livrar-se do governo formalmente dirigido pelo PT, boa parte considerava que isso era exagero e que seria possível manter inalterada a situação e avançar passo a passo.

 

Tais dirigentes e teóricos não levaram em conta que a tentativa de reduzir a taxa de juros, em 2010, havia levado pânico político à burguesia, em especial à burguesia financeira. A experiência mostrara que os lucros dessa fração burguesa, e também das demais, podem aumentar, mesmo quando a economia tem um baixo crescimento, se o dinheiro puder ser usado na especulação e no rentismo da dívida pública. Dowbor mostra que, em 2014, apesar do baixo crescimento econômico, os lucros do Itaú e do Bradesco foram superiores a 25%.

 

Ou seja, uma economia funcionando sob a pressão de um sistema financeiro predatório como esse não consegue alavancagem. E, qualquer tentativa de baixar os juros é considerada uma agressão mortal. Assim, apesar dos alertas sobre a existência daquilo que hoje Paul Singer chama de greve dos investidores, “greve” que procurava ser justificada por supostos descontroles nas contas públicas e na inflação, grande parte dos dirigentes e teóricos do PT e do governo fizeram ouvidos de mercador. Na prática, acabou enredada pelo “clima de terror” pré-eleitoral, capitulou apesar da vitória no segundo turno, e está permitindo que tal clima atinja seu paroxismo com o desajuste promovido pelo ministro Levy.

 

Embora a taxa de juros tenha se elevado, desviando cerca de 5% a 7% do PIB brasileiro para as burras dos rentistas; embora a base social e política do PT e da esquerda ainda esteja perplexa; embora o câmbio tenha se descontrolado; e embora a intelectualidade progressista tenha demorado a reagir, o ministro Levy ainda não foi capaz de levar o país ao caos desejado. Afinal, como assegura Dowbor, o Brasil continua com mais de 20 milhões de empregos formais, com cerca de 40 milhões de pessoas que saíram da miséria, e com um desemprego na faixa de 6%, que é um dos menores da história. E, de acordo com Amyr Khair, a dívida pública, por volta de 60%, é razoável. Afinal, o Japão tem 200% de dívida pública e ninguém acha isso um absurdo.

 

Em outras palavras, ainda há tempo de a direção do PT fazer valer seu peso político e impedir que o desajuste promovido por Levy leve o país ao caos pretendido pela burguesia, caos sem o qual não conseguirá defenestrar o PT do governo. Ainda há tempo de realizar um “cavalo de pau”, recuar das medidas que penalizam os trabalhadores, e adotar uma política de investimentos de longo prazo. Afinal, como diz Paulani, esta é a única política capaz de “preservar emprego e renda”. Ou, melhor ainda, gerar mais emprego e mais renda.

 

No entanto, responder o que é possível fazer para elevar o nível interno dos investimentos ainda não é consensual.  Singer, por exemplo, acha que “a situação está difícil porque o investimento privado quase cessou e o governo não dispõe de recursos para realizar investimentos públicos faltantes. Por isso, o crescimento da economia é muito pequeno quando não nulo”.

 

Dowbor, por seu turno, considera que, “em termos estruturais”, a economia brasileira é “uma das que melhor se apresenta”, sendo buscada por capitais internacionais “para investimentos diretos”. Porém, como “grande parte dos ganhos é desviada para intermediários financeiros, que não só não investem no desenvolvimento do país, como se escondem em paraísos fiscais e não pagam os seus impostos”, o eixo principal de medidas estaria “no ajuste do sistema de intermediação financeira”.

 

Paulani, por outro lado, acha que o gasto público em investimento “constitui aquilo que se poderia chamar de “uma injeção de demanda efetiva direto na veia da economia”. “Considerando o cenário desolador do ponto de vista da demanda externa, tanto do ponto de vista dos preços quanto do ponto de vista das quantidades demandadas, essa seria uma medida necessária, até porque, dados os tipos de investimentos de que o país é carente (infraestrutura, habitação etc.), eles teriam enorme efeito multiplicador”. Paulani também considera indispensável “introduzir mecanismos adicionais de controle dos fluxos internacionais de capital e efetivar e fortalecer aqueles que já existem”, de modo a “reduzir a volatilidade” da taxa de câmbio, com “consequências positivas” sobre a inflação e “a política de juros reais elevadíssimos”.

 

Khair, por seu turno, considera que é fundamental colocar “a Selic no lugar”, trazendo “benefícios como o equilíbrio nas contas internas e externas, além de equilíbrio econômico”. Para “colocar a casa em ordem rapidamente em relação à questão fiscal, ele propõe “parar de emitir título público, emitindo moeda como faz EUA, Europa e Japão desde 2008”, e desfazer-se das reservas internacionais de US$ 380 bilhões, “feitas com o endividamento em Selic”, “um crime” que “não precisamos”.

 

João Sicsú, por outro lado, pergunta: “Mas e o dinheiro? É hora de fazer uma reforma tributária progressiva, é hora de fazer aquilo que não foi feito até hoje. No Brasil, quem paga imposto é a classe média e a pobre, rico não paga imposto. (...) É preciso ter consciência de que taxar os milionários do país é uma importante fonte de recursos. Quantos empresários não tiram dinheiro da sua empresa como pessoa física e não pagam nada? Alguns dizem que é bitributação. Não. (...) Imposto Rural é quase nulo. Imposto sobre heranças é ridículo, 4%. (...) Precisa coragem política, mas só se tem coragem para tirar benefícios sociais.

 

Paulani também acha a reforma tributária de “importância é total” porque é um “dos fatores estruturais que ajuda a explicar nossa crônica desigualdade”. Dowbor se associa à necessidade da reforma tributária como absolutamente vital, e sugere “controlar os fluxos de evasão fiscal”. Odilon Guedes e outros economistas propõem “reduzir os impostos indiretos (que oneram proporcionalmente mais os pobres), desonerar a folha de pagamentos, e sobretudo cobrar impostos dos que detêm fortunas improdutivas”. Em sentido oposto está Khair, que não acredita “em reforma tributária sem uma mudança de contexto político, com uma sociedade mais bem informada e sem essa mídia que é uma porcaria”, embora defenda “o imposto sobre grandes fortunas”.

 

Quem quer tudo talvez não queira nada. Para evitar isso, talvez seja necessário concentrar-se em descobrir as formas de elevar o nível interno dos investimentos, num difícil contexto de correlação das forças políticas. Podemos fazer isso apenas com recursos públicos? Como fazer com que o capital privado nativo invista (a “greve” continua)? Deve-se atrair ou não o capital estrangeiro? Em que base? Como controlar os fluxos de capitais especulativos e/ou direcioná-los para investimentos produtivos? Como controlar a volatilidade cambial?

 

Responder a essas perguntas e obter um consenso razoável em torno das respostas talvez possa constituir o primeiro passo para colocar uma trava no desajuste levyniano, realizar o cavalo de pau que a política econômica precisa e começar a criar as condições políticas necessárias para reformas estruturais, como a tributária e outras.

 

Wladimir Pomar é analista político e escritor.

* As citações utilizadas foram retiradas da entrevista prestada pelos autores à Revista Fórum.

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