Pensando a longo prazo – ainda sobre a ciência
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- Wladimir Pomar
- 10/08/2016
A questão da “modernidade” capitalista é importante, tanto para Jessé Souza quanto para todos os que se confrontam com as contradições dessa formação econômica e social. Em defesa de Max Weber, A Tolice da Inteligência Brasileira afirma que ele “formulou os dois diagnósticos de época mais importantes para a autocompreensão do Ocidente até nossos dias: uma concepção liberal, afirmativa e triunfalista do racionalismo ocidental e uma concepção crítica extremamente influente desse mesmo racionalismo”.
Para Weber “a efetiva revolução moderna, na medida em que transformou a ‘consciência’ dos indivíduos e, a partir daí, a realidade externa”, teria sido “a figura do protestante ascético”. Este, “com vontade férrea e as armas da disciplina e do autocontrole”, teria criado “o fundamento histórico para a noção do ‘sujeito moderno’...”. Isto é, uma ‘personalidade’... “percebida como um todo unitário com fins e motivos conscientes e refletidos”. Tal ideia seria “o fundamento da noção de ‘liberalismo moderno’...”.
De acordo com a leitura do trecho acima, teria havido uma “revolução moderna”, consubstanciada no “protestante ascético”, com poder de transformar a “consciência dos indivíduos” e criar o “liberalismo moderno”. Podemos deduzir que tal “liberalismo” seja o pensamento dominante do capitalismo, embora nem sempre Jessé deixe isso muito claro. Para tentar comprovar, ou não, tal tese, será útil viajar um pouco pelos séculos que conduziram ao capitalismo, ou ao “liberalismo moderno” (nem sempre a mesma coisa).
Podemos partir do século 13, quando se intensificaram mudanças importantes tanto no feudalismo chinês quanto no europeu. A dinastia Yuan intensificou o comércio com o ocidente através da Rota terrestre da Seda. Veneza, Gênova, Alexandria e Constantinopla disputavam a supremacia comercial sobre o Mediterrâneo e o Mar Negro. A Liga Hanseática montou uma rede comercial com mais de 100 cidades nos mares do Norte e Báltico, incluindo Lubeck, Hamburgo, Bruges, Londres e Novgorod.
Tal comércio, em pleno predomínio feudal na China e na Europa, incluía produtos silvestres, como peles e madeiras; produtos agrícolas, como trigo, lãs e chá; produtos minerais, como ferro, cobre, sal e pedras preciosas; e produtos manufaturados, como tecidos de seda e de lã. Em outras palavras, o autarquismo feudal estava sendo minado e rompido. Isto tanto pelos excedentes de sua agricultura e seu artesanato quanto através da atividade comercial de uma crescente classe de mercadores, situados em burgos ou cidades, algumas das quais se transformaram em verdadeiras potências militares, a exemplo de Gênova e Veneza.
Paralelamente, por volta do século 14, os chineses haviam feito descobertas transformadoras. Utilizavam a pólvora em lançadores de foguetes e obuses. E haviam inventado a bússola, o leme, a vela triangular e os cascos náuticos com divisões estanques. Isto lhes permitiu construir embarcações (juncos) de 120 metros (quase cinco vezes maiores do que as futuras caravelas portuguesas e espanholas dos séculos 15 e 16), e organizar frotas com mais de 20 mil homens, para comerciar no sul da Ásia, Golfo Pérsico e leste da África.
Esse comércio e as riquezas que gerou acirraram a luta de classes entre feudais e mercadores (burguesia comercial), tanto na Europa quanto na China, ambas as regiões ainda dominadas por monarquias feudais, fossem centralizadas (China), fossem fragmentadas (Europa). O resultado dessa luta foi totalmente diferente em cada uma das duas regiões.
Na China, onde o feudalismo com monarquia centralizada tinha uma história de mais de mil anos, desde a dinastia Qin (séc. 2 a.n.e.), os feudais se impuseram aos mercadores. A monarquia proibiu as viagens e o comércio marítimos. A frota naval foi destruída. A dinastia Ming se cindiu e sucumbiu à invasão e à imposição da dinastia Qing, da pequena etnia manchu. Tudo isso causou uma verdadeira regressão econômica e social. Enrijeceu o sistema feudal e transformou a riqueza acumulada durante o mercantilismo Yuan e Ming num tesouro de desfrute nobre, que chegou mesmo a enganar Adam Smith e Karl Marx sobre sua natureza.
Na Europa ocorreu um processo diferente. Nos séculos 14 e 15, a implantação de manufaturas de tecidos de lã, na Holanda, foi favorecida pelo comércio marítimo da Liga Hanseática, mas teve dificuldades para expandir sua produção em virtude da escassez de matéria prima. O que foi resolvido pelos senhores feudais ingleses através do cercamento e da expulsão dos camponeses de suas terras, e das terras comunitárias, para criar ovelhas e vender a lã para as manufaturas holandesas.
Nesse processo, aparentemente “economicista”, milhões de camponeses, expulsos para as cidades inglesas, transformaram-se em hordas de vagabundos miseráveis. Ao mesmo tempo, a economia monetária penetrou no campo inglês, seja pela venda da lã, seja pela introdução do arrendamento de terras para a criação ovina, e também pela expansão de manufaturas de diferentes tipos, que começaram a utilizar mão de obra assalariada.
Já a monarquia portuguesa travou com sucesso uma guerra de independência contra o reino espanhol e também realizou uma revolução interna. Por um lado, aliou-se aos mercadores para lançar-se ao mar salgado, já que este era o único caminho para circundar a muralha espanhola e ter contatos comerciais com outros reinos europeus, assim como para buscar novas terras e produtos “índios”, que antes chegavam à Península Ibérica através das rotas chinesas e das caravanas árabes.
A revolução de Avis submeteu os nobres feudais a uma reforma agrária para incentivar a produção agrícola, criar uma nobreza de joões-sem-terra para comandar suas naus e liberar parte dos camponeses para equipá-las. Assim, entre 1415 e 1498, as naus portuguesas exploraram todo o litoral ocidental africano, circundaram o Cabo das Tormentas (depois Boa Esperança), exploraram o litoral oriental da África e, através do Oceano Índico, chegaram à Índia, ou “às índias”.
O “sucesso” das navegações portuguesas foi seguido pelas navegações espanholas no Atlântico ocidental. Estas, inicialmente, abriram as Américas à exploração espanhola e portuguesa, e descobriram o caminho para o Oceano Pacífico e para a Polinésia e a Ásia através do Atlântico sul. Logo depois, levaram holandeses, ingleses e franceses a também lançar-se aos oceanos para disputar, legal e/ou ilegalmente, as riquezas encontradas nas novas terras.
Esse período, que se estendeu pelos séculos 16, 17 e 18, marcou profunda e irremediavelmente todos os povos envolvidos. Os europeus promoveram matanças brutais e generalizadas, assim como o saque violento de riquezas minerais e agrícolas encontradas nos novos territórios, transformados em colônias, em muitos dos quais reintroduziram o escravismo, principalmente através da caça e da desagregação de populações africanas.
Esse período conformou aquilo que muitos chamam de mercantilista, e que Marx indicou ter sido de acumulação primitiva do capital na Europa. Ou seja, esse foi o processo que levou a acumulação das riquezas extraídas das colônias a estabelecer uma relação específica com as hordas de pobres e vagabundos expulsos dos campos. Ao transformar estes em trabalhadores assalariados, e estabelecer a relação deles, como assalariados, com os meios de produção (na forma de dinheiro, ferramentas, máquinas etc.), aquele processo histórico criou a categoria “capital”, antes inexistente, necessária ao surgimento de um novo modo de produção, circulação e distribuição.
Esse processo de “acumulação primitiva”, que levou ao surgimento do “capital”, criou suas classes específicas. De um lado, burguesia, ou capitalista, ou empresariado. De outro, trabalhadores assalariados, ou proletariado (como as haviam denominado os romanos), ou classe operária.
E, como mostra a ciência histórica, as “figuras” que realmente sobressaíram, na Europa, foram, por um lado, os mercadores aventureiros, os bucaneiros, os latifundiários ingleses que “modernizaram” sua agricultura e os monarcas aliados dos “burgueses”. Por outro, os camponeses e pobres, que particularmente nos séculos 14, 15 e 16 organizaram rebeliões e tentaram soluções próprias para a crise do feudalismo, a exemplo das “jacqueries” e dos “levelers” e “diggers”.
A “concepção liberal” e a “figura do protestante ascético” só emergiram paulatinamente em meio a tudo isso, e só tomaram forma mais precisa entre os séculos 17 e 18. Isto como resultado, não como “promoção” da nova ordem. E, além disso, em confronto com uma classe produtora “livre” da suserania feudal, e livre para vender sua força de trabalho como a forma principal de sobrevivência.
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Wladimir Pomar é escritor e analista político.