Correio da Cidadania

Pensando a longo prazo – Desenvolvimento capitalista

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Atualmente, o modo de produção, circulação e distribuição presente na Alemanha, Estados Unidos, Japão, França e Inglaterra é o mesmo que está presente no Brasil, Argentina, Grécia etc. etc. etc. Mas qualquer estudante relativamente bem informado sabe que, entre o primeiro e o segundo grupo desses países, há diferenças acentuadas, como indicamos em comentários anteriores.

 

Além disso, nem sempre todas as nações tiveram o capitalismo como seu modo de produção na mesma época. No final do século 19, o capitalismo já havia alcançado um alto desenvolvimento nos países “avançados”. Porém, mesmo entre eles, a gênese, ou a acumulação primitiva de capital, assim como as formas com as quais cada um se desenvolveu, foram diferentes.

 

A Inglaterra, por exemplo, a primeira a ingressar nesse novo modo de produção, circulação e distribuição começou com a revolução agropastoril, a partir do século 14, dando surgimento às relações monetárias na agricultura e à formação de uma imensa massa de força de trabalho “livre” e vagabunda, expulsa dos campos para as cidades. Paralelamente, assistiu a um intenso processo mercantilista de acumulação de riquezas, por meio do banditismo nos mares, do tráfico de escravos para as colônias americanas, da dominação de novos territórios, com o uso da canhoneiras, e do desenvolvimento de suas manufaturas.

 

O processo de estabelecimento da relação intrínseca entre a riqueza, na forma de propriedade privada de meios de produção, e a força de trabalho livre, abundante e à toa nas cidades britânicas, relação que veio a ser chamada capital, ganhou vulto ao longo dos séculos 17 e 18. Mas só deu um salto a partir do início do século 19, com a emergência da “revolução industrial”. Todo esse processo foi marcado por choques intensos, opondo feudais e camponeses, feudais e burgueses, católicos e protestantes, monarquistas e republicanos, e capitalistas e assalariados.

 

Momentos marcantes do processo inglês de desenvolvimento do capitalismo foram a imposição da monarquia constitucional, a revolução puritana, os movimentos dos levellers e diggers, e a revolução gloriosa do final do século 17. Esta consolidou a monarquia constitucional e a aliança entre a nobreza remanescente e a burguesia em ascensão.

 

A França, por sua vez, não chegou a formar uma massa tão imensa de força de trabalho livre e vagabunda como a inglesa. Suas guerras externas e conflitos internos corroeram o sistema feudal, enfraqueceram o monopólio dos nobres sobre as terras e fizeram surgir uma classe camponesa proprietária de terras. Paralelamente, a burguesia francesa procurou, com o apoio da monarquia, participar da disputa dos saques marítimos e da dominação de novos territórios, e criar manufaturas de objetos de luxo.

 

No entanto, a ordem estamental e absolutista francesa mantinha não só os privilégios da nobreza e do clero, incluindo os altos tributos sobre as classes que produziam e comerciavam. Isto constituiu o principal obstáculo para o desenvolvimento industrial, num momento em que a produção manufatureira inglesa tornava-se avassaladora.

 

Essas contradições, como na Inglaterra, manifestaram-se também nos choques intensos entre feudais e camponeses, entre feudais e burgueses, entre católicos e protestantes, monarquistas e republicanos, e assalariados e burgueses. Mas não resultaram em qualquer acordo entre a nobreza e a burguesia. Foi preciso uma revolução republicana radical para que o crescente poder econômico da burguesia se transformasse também em poder político liberal.

 

Já os Estados Unidos, para conformar-se como tal, primeiro tiveram que passar pela condição de colônia inglesa, onde foram estabelecidos dois sistemas antagônicos de produção. No Sul, o escravista, produtor de algodão e outros produtos agrícolas demandados pela metrópole britânica. No Norte, os homesteads foram a forma principal, através da qual os imigrantes europeus se estabeleceram para realizar a produção agrícola e pecuária, inclusive em luta contra os indígenas.

 

Assim, diferentemente do Sul, os lavradores do Norte utilizaram principalmente o trabalho familiar e assalariado, sempre prontos para enfrentar os indígenas e abrir novas fronteiras agrícolas. O que não excluiu os casos de “escravidão por dívidas”, contraídas pelos migrantes para seu transporte da Europa (principalmente Inglaterra e França) para a América do Norte.

 

Além disso, a ausência de força de trabalho suficiente para o desenvolvimento agrícola do Norte induziu, em grande medida, a cópia de inventos mecânicos ingleses para a criação e produção de máquinas que substituíssem o trabalho humano. Em outras palavras, no Norte criou-se, mesmo antes da Independência, uma burguesia agrária e industrial, assim como uma classe de trabalhadores assalariados, enquanto no Sul predominava uma classe escravocrata sobre uma classe de escravos e de frações burguesas mercantis.

 

A independência (1776) foi uma aliança das classes escravocratas e burguesas para livrar-se das taxas e protocolos coloniais. Nos quase cem anos seguintes, o sistema escravista Sulista manteve-se inalterado. O Norte, porém, desenvolveu-se não só como sistema agrícola de homesteads, mas também como sistema industrial, necessitado de força de trabalho assalariada. O que o levava a receber de braços abertos os negros fugidos das plantações escravistas do Sul, e a lhes fornecer a condição de “homens livres”.

 

A Guerra Civil Americana, ou Guerra de Secessão, desencadeada em 1861, teve como causa básica a liberação da força de trabalho escrava para o desenvolvimento, tanto da indústria do Norte quanto para a ocupação do Oeste norte-americano. Não por acaso, paralelamente ao ato de libertação dos escravos, em 1862, foi sancionado o Homestead Act. Este não só atraiu centenas de milhares de novos imigrantes europeus para ocupar as terras do Oeste, mas também abriu vaza para que os ex-escravos também pudessem tornar-se camponeses livres.

 

Processos específicos e diferenciados de gênese e desenvolvimento capitalista também ocorreram, durante o século 19, na Alemanha e no Japão. O que houve de comum em todos esses processos foi a emergência da relação entre riqueza acumulada, na forma de meios de produção, circulação e distribuição, e trabalhadores livres, mas desprovidos de qualquer propriedade, a não ser sua força de trabalho, passível de venda como qualquer outra mercadoria.

 

Desse modo, os séculos 18 e 19 acumularam um rico material empírico sobre as diferentes formas de surgimento e de desenvolvimento do novo modo de produção, circulação e produção capitalista. E havia uma viva polêmica em torno dos elementos comuns a tal modo, o que deu surgimento à nova ciência da economia política, desenvolvida primeiramente pelos ingleses e, depois, por Marx.

 

As emergentes nações capitalistas praticamente dominaram todas as restantes nações do mundo, de onde arrancavam matérias primas agrícolas e minerais demandadas por seus sistemas industriais. Mas, o seu modo capitalista de produção, circulação e produção não era predominante, ou mesmo existente, em tais nações. E a história de cada uma delas, e de suas lutas contra o domínio colonial capitalista, parecia mesmo um mistério para muitos dos que se debruçavam para entender o que consideravam uma resistência ao avanço “civilizatório” do mercado capitalista.

 

Portanto, o desenvolvimento capitalista ocorreu e ocorre de forma desigual, não só entre as nações avançadas, mas entre estas e as nações atrasadas, e também entre as nações atrasadas. Por um lado, as leis de desenvolvimento do capital em cada país são idênticas.

 

Por outro, o desenvolvimento geral delas em cada país avança em ritmos históricos diferentes, dependendo da concorrência interna dos seus diversos capitais, e da concorrência externa entre os capitais dos diversos países. A tendência do capital, ao globalizar-se, de criar um mundo capitalista plano, não passa de uma ilusão de ótica.

 

Basta prestar atenção ao intenso processo de desindustrialização dos Estados Unidos, e de idêntico processo, mas não de mesma intensidade, no Japão e na Europa Ocidental. Ambos são provocados pela queda da taxa média de lucro de seus capitais, obrigados a exportá-los para o resto do mundo, tanto na forma de dinheiro fictício e especulativo, quanto na forma de plantas industriais, segmentadas e/ou completas, para tentar elevar aquela taxa média.

 

O resultado tem sido a continuidade da desindustrialização dos países avançados, apesar da brutal acumulação centralizada de capital em mãos de um pequeno grupo de magnatas, e o aumento da industrialização de países agrários e agrário-industriais, alguns dos quais até pouco tempo atrás eram considerados “inviáveis”, a exemplo de Angola. Isso para não falar dos “fenômenos” China e Índia.

 

Portanto, a oposição entre “avançados” e “atrasados” continua presente, com dinamismos próprios que precisam ser analisados cientificamente para que não se tenha uma daquelas visões distorcidas, conformistas e superficiais da realidade em constante mutação.

 

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

 

 

 

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