Pensando a longo prazo – Marx e sua economia política
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- Wladimir Pomar
- 31/08/2016
Foi no contexto do conflituoso desenvolvimento capitalista em algumas nações europeias e nos Estados Unidos (o Japão, apesar de seguir caminho idêntico, era considerado um ponto fora da curva), e com base na crítica da economia política dos pensadores burgueses, que surgiu, na segunda metade do século 19 (mais de 150 anos atrás), a economia política marxista.
A rigor, para realizar o que chamou de estudo da anatomia do capital, Marx (e também Engels) dedicou cerca de 40 anos de sua vida. Em primeiro lugar, resolveu suas contradições filosóficas a respeito da teoria da história. Isto é, a decisão dos grandes homens é que faz a história, ou esta decorre das circunstâncias legadas pelas gerações passadas? E que circunstâncias são essas?
Basicamente, a relação dos homens com a natureza, da qual eles próprios fazem parte, através do trabalho. Primeiro, através da simples coleta ou caça daquilo que a natureza lhes oferecia, com ferramentas apropriadas. Depois, modernizando tais ferramentas e passando a produzir, ou a replicar, os produtos da própria natureza, por meio de organização ou de um modo de produção apropriado.
Mais adiante, com ferramentas ainda mais avançadas, os homens passaram a transformar os produtos originários da natureza em outros produtos de proveito humano, e também transformaram seu modo de produzir. As mudanças nas relações estabelecidas entre os seres humanos, em função daquelas relações com o mundo natural, têm sido a base da história da humanidade, que constitui um complexo processo de evolução e de transformações econômicas, sociais e políticas.
Ou seja, a evolução humana tem sido fruto do trabalho, no qual o pensamento joga certo papel. Mas seus resultados muitas vezes são imprevisíveis, e nem sempre são percebidos ou compreendidos em todos os seus desdobramentos. A própria realidade natural muda, nem sempre em virtude da ação humana, consciente ou inconsciente. A história, portanto, resulta dessa evolução contraditória e de transformações complexas, em que a ação e o pensamento humano nem sempre desempenham o papel principal.
Em termos gerais, no século 18 o conhecimento histórico já indicava que a humanidade evoluíra como sociedade através da construção objetiva de formações econômico-sociais que tinham por base um modo de produção, circulação e distribuição, e por superestrutura um complexo de ideais, normas, instituições etc. resultantes e/ou dedicadas ao funcionamento daquele modo de produzir. Em outras palavras, Marx e Engels concluíram que as sociedades humanas se moviam de forma materialista e o capitalismo era um produto histórico, que precisava ser analisado como tal.
Por outro lado, até então, nenhum historiador ou filósofo fizera uma análise anatômica dos modos de produção que haviam aparecido e findado na história das sociedades humanas. Portanto, ninguém havia estabelecido um método científico de análise das sociedades. Sem tal método seria difícil decifrar a anatomia do capital em pleno desenvolvimento. Apesar ou por causa disso, os economistas políticos, ingleses e franceses, discutiam vivamente sobre aquele novo modo de gerar riquezas, sem conseguir decifrá-lo plenamente.
Já tendo uma compreensão histórica materialista, Marx foi buscar seu método de análise na filosofia alemã. Embora não tenha sido uma tarefa fácil, fez isso despindo a dialética de Hegel de sua roupagem idealista e dando às suas contradições uma base materialista. Ou seja, realizou uma operação filosófica que ainda hoje contém certa dose de complexidade para os que não possuem algum nível de conhecimentos científicos.
Jessé Souza, em A tolice da Inteligência Brasileira, talvez se baseando numa leitura superficial dos trabalhos de Marx, classificou a teoria deste de “economicista”. No entanto, baseado no material empírico até então acumulado pelo próprio desenvolvimento do capital, pelas lutas de classes que ele desencadeou e pelas teorias que ele suscitou, Marx detectou algo mais complexo do que o economicismo. Em síntese, em sua teoria, ele incorporou vários conhecimentos científicos e históricos de sua época, descobriu o segredo de reprodução ampliada do capital e sintetizou as principais tendências do desenvolvimento do capital.
Isto é:
a) definiu o capital como uma relação econômica e social, historicamente constituída, entre os proprietários dos meios de produção, circulação e distribuição (burguesia) e a força de trabalho, livre para o assalariamento (proletariado);
b) essa relação capital tem como sua célula mais simples e genérica a mercadoria. Meios de produção são mercadorias; as matérias primas a serem transformadas são mercadorias; a força de trabalho que move os meios de produção e transforma as matérias primas é mercadoria; os produtos resultantes do trabalho humano e dos meios de produção são mercadorias;
c) do ponto de vista social, a relação capital também é contraditória. Envolve tanto cooperação quanto conflito. Primeiro, entre a burguesia proprietária dos meios de produção e os proletários proprietários de força de trabalho. Estes cooperam com a burguesia no processo produtivo, mas conflitam com ela principalmente porque seu salário corresponde apenas ao pagamento de uma parte do tempo de trabalho que dispendem na produção. Isso embora nem sempre tenham consciência da existência do valor excedente (mais-valia) que produzem e é apropriado pela burguesia, mesmo que o salário cubra suas necessidades de reprodução social;
d) a relação capital também é contraditória entre os próprios burgueses, entre os próprios proletários, e entre essas classes sociais e as classes remanescentes de formações históricas anteriores. Seus conflitos manifestam-se principalmente na concorrência, que impele os burgueses a expulsar do mercado outros burgueses, e a explorar, submeter ou liquidar as classes remanescentes, e os proletários a disputar os postos de trabalho, oferecendo-se por salários menores;
e) a evolução dessas contradições impele o desenvolvimento técnico e científico do capital, elevando sua capacidade produtiva, sua produtividade e a concentração e centralização da riqueza produzida. A evolução da capacidade produtiva é acompanhada de uma crescente substituição do trabalho vivo (emprego direto do trabalhador na produção) pelo trabalho morto (realizado por máquinas), promovendo tanto uma queda na taxa média de lucro quanto um desemprego crescente da força de trabalho e, portanto, uma redução da capacidade social de consumo;
f) na ânsia de reverter a tendência de queda da taxa média de lucro, e garantir sua reprodução ampliada, o capital desenvolvido é impelido a exportar capitais, tanto na forma especulativa financeira, quanto na forma de transferência de plantas industriais, para países de baixo ou nenhum desenvolvimento capitalista. Isto faz com que o modo de produção, circulação e distribuição capitalista tenda a ser reproduzido, mesmo desigualmente, por todo o mundo;
g) quanto mais se expande mundialmente, mais graves se tornam as contradições do capital, em particular aquela que contrapõe o aumento da capacidade produtiva privada à redução da capacidade social de consumo, demonstrando que os limites do capitalismo se encontram no próprio processo de desenvolvimento do capital, gerando um absurdo civilizatório;
h) essas contradições econômicas e sociais do capital são a base sobre a qual se assenta toda a superestrutura ideológica e política (no sentido mais amplo desses conceitos). Tal superestrutura, por um lado, reflete a posição dominante da relação capital e, por outro lado, e ao mesmo tempo, gera as oposições ideológicas e políticas que se contrapõem a tal dominância.
Tal síntese nos diz que há uma intensa relação dialética entre a economia, a sociedade civil e a política, refletindo-se na cultura e nos hábitos. A economia tem suas próprias leis de desenvolvimento, leis que impactam fortemente sobre o pensamento e as ações humanas. Nesse sentido, a força e o papel do mercado capitalista não são uma invenção diabólica. São apenas reflexo da realidade sobre a mente dos seres humanos.
Ao refletirem sobre essa realidade, os economicistas de direita consideram que o mercado é perfeito, ou que suas deficiências são passageiras. Os economicistas de esquerda supõem que a política não pode agir sobre a economia, o que os leva, muitas vezes, a não se diferenciarem dos economicistas de direita. Já o marxismo não é economicista por não ser uma doutrina. É apenas um instrumento de análise da realidade concreta, em seus diferentes aspectos contraditórios, econômicos, sociais e políticos.
Ao ver demonstradas as principais tendências do capital (econômicas, sociais e políticas), que apontou há cerca de 150 anos, o marxismo tornou-se um instrumento inigualável. Primeiro, para ajudar as classes subordinadas ao capital a verificarem as contradições particulares de cada mercado nacional e sua relação com o mercado global. Segundo, para traçaram suas estratégias e táticas (políticas, sociais e econômicas) para agir conscientemente sobre o capital e superar suas contradições, em especial aquela que opõe a produção social à brutal e desumana apropriação privada e torna o capital, cada vez mais, como afirmamos acima, uma aberração civilizatória.
No Brasil, grande parte dos ativistas que desempenharam papel político importante nos recentes 16 anos manteve uma visão distorcida do marxismo. Isso os impediu de analisar melhor as contradições da sociedade brasileira, os levou tanto ao economicismo quanto ao culturalismo, e os fez escorregar na estratégia e nas táticas, tanto de conciliação quanto em seu inverso, de ausência de qualquer aliança. Nessas condições, era previsível que fossem surpreendidos pela crise econômica, social e política, assim como pelos desdobramentos do golpe parlamentar dos representantes políticos do capital, em fase final de execução.
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Wladimir Pomar é escritor e analista político.