Pensando a longo prazo – Ainda o patrimonialismo
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- Wladimir Pomar
- 26/10/2016
Como vimos em várias passagens dos comentários anteriores, o centro do ataque de A Tolice... contra a Inteligência Brasileira consiste em demonstrar que no Brasil não ocorreu qualquer tipo de “patrimonialismo”, uma das condições que teriam levado a Europa Ocidental e os Estados Unidos a ingressarem no capitalismo, segundo os termos de Weber.
Em geral, se aceita que o conceito de “patrimonialismo” está relacionado àqueles Estados que não aceitavam fazer distinção entre o patrimônio público e o patrimônio do privado, regra relativamente comum aos Estados absolutistas. O patrimônio privado tornava-se, na prática, patrimônio monárquico, sem necessidade de prestar contas a quem quer que seja. Um exemplo: a baronesa russa, amante de Balzac, foi impedida pelo tzar de transferir seus bens para a França, porque isso representaria dilapidar sua riqueza monárquica.
Com base nesse pressuposto, o livro A Tolice... se mantém firme contra o que supõe uso “indiscriminado” e “incorreto” dos “termos weberianos”. Para estes, “toda vez que o feudalismo e os poderes locais e descentralizados” lograram “se desenvolver para a forma imperial e centralizada com os mecanismos modernos de controle do poder burocrático, a racionalização da conduta cotidiana e a possibilidade do cálculo econômico racional, o patrimonialismo e seus subtipos” tenderam a se “desenvolver como realidade efetiva”.
Em outras palavras, o feudalismo, desenvolvido para a forma imperial e centralizada com os “mecanismos modernos” de controle, racionalização e cálculo econômico racional, desenvolveria o patrimonialismo como realidade efetiva, permitindo que a “economia monetária” se fizesse presente e evoluísse para o capitalismo. Isto, porém, não foi verdade, pelo menos em relação à China.
Historicamente, em toda parte, a evolução para o capitalismo resultou de uma intensa e conflituosa luta de classes em torno da acumulação da riqueza (monetária e de meios de produção), e da transformação dos trabalhadores servis em trabalhadores livres. “Livres” no sentido de expropriados da propriedade de meios de produção e com “liberdade” para vender sua força de trabalho no mercado. Sem a forte presença desse “binômio contraditório” de “riqueza acumulada” e “trabalhadores livres” não houve evolução para o capitalismo em qualquer parte da Terra.
Já vimos como, na China, essa luta de classes foi resolvida negativamente, promovendo, ao invés de uma evolução, uma involução, que perdurou por mais de três séculos. Apesar disso, A Tolice... se esforça em demonstrar que, no Brasil, pelos termos de Weber, não tendo havido feudalismo, nem forma imperial centralizada, racionalização, ou cálculo econômico racional, não teria havido patrimonialismo. Isto, ao contrário do que supuseram Sergio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro.
No entanto, independentemente das ilações destes dois pensadores a respeito, vimos que o monopólio monárquico português na concessão de sesmarias, direitos de comércio no tráfico de escravos e na exportação da cana e outros produtos nativos, e na designação de representantes da Coroa (governadores, ouvidores, capitães etc.) se manteve intocável durante todo o período colonial. Os “direitos privados” eram sempre concessão do “direito público monárquico”.
Isso pode não ter sido exatamente o patrimonialismo praticado no Portugal feudal, ou medieval, nem na China, ou nos Estados Unidos do período colonial. Mas foi um tipo de patrimonialismo adaptado à condição colonial brasileira. Esse patrimonialismo caboclo não sofreu modificações substanciais nem mesmo no período que vai de 1808 a 1822, quando ocorreu a fuga da Coroa portuguesa para o Brasil, a “abertura dos portos” à frota inglesa e ao comércio com a Inglaterra, a instituição do “reino unido de Portugal e do Brasil” e a disseminação da “economia monetária”.
Tal patrimonialismo se intensificou desde então, com os grandes senhores de terras e de escravos e os traficantes de escravos abrasileirados ganhando, ou comprando, títulos de nobreza e passando a fazer parte do absolutismo monárquico caboclo para intensificar os seus “negócios”. Essa situação perdurou durante todo o Império. E, embora algumas das figuras acima tenham se metamorfoseado em outras figuras sociais, aquele patrimonialismo se estendeu depois por todo o tempo daquilo que conhecemos como República Velha. Portanto, por mais de um século.
Ou seja, o Estado brasileiro manteve seu poder público acima do privado, ao mesmo tempo em que permitia às classes que o dominavam utilizar-se a seu bel prazer de tal poder. Entre 1820 e 1822, quando as classes dominantes portuguesas, livres de Napoleão, tentaram reaver seu poder patrimonialista sobre a colônia, o poder absoluto no Brasil já estava em mãos das classes dominantes locais, os senhores de terras e de escravos e os traficantes de escravos, que tinham na Inglaterra o principal mercado para a produção primária brasileira.
Os momentos seguintes foram aqueles em que essas classes fazem valer seu poder absoluto. Não somente contra os portugueses metropolitanos, mas principalmente contra as classes subalternas e intermediárias que pretendiam mudanças tanto no direito de posse e propriedade da terra quanto na liberdade de trabalho e de comércio. Às revoltas urbanas no Rio de Janeiro, somaram-se a Farroupilha, no Rio Grande do Sul, a Balaiada, no Maranhão e Piauí, e as Cabanadas, em Alagoas e no Pará, contra as quais o poder monárquico respondeu com a criação da Guarda Nacional. Os “oficiais” desta (Coronéis, Majores e Capitães) eram latifundiários de diferentes extensões, enquanto os “soldados” eram principalmente agregados e “jagunços” dos próprios latifúndios.
Essa é a demonstração mais cabal do patrimonialismo caboclo, no qual o “público e o privado” se fundiram num único corpo para esmagar a eclosão dos “de baixo”, ainda mais que estes tinham como bandeira, como proclamava o “cabano” Angelim, uma tal de “liberdade”. Tal patrimonialismo garantiu não apenas o absolutismo monárquico, mesmo mascarado de “parlamentarismo”, mas também o monopólio da propriedade fundiária e as relações escravistas.
Esse patrimonialismo só começou a entrar em crise quando a caça e o tráfico de escravos africanos se tornaram uma “aporia” para o império capitalista britânico. Este necessitava mão-de-obra livre, inclusive nas colônias e semicolônias, capaz de consumir produtos industriais. A nação britânica, que antes fora a traficante-mor de escravos africanos, passara a afundar os “navios negreiros”, transformando-os em “tumbeiros”, e tornando cada vez mais caro o custo das “peças” escravas que chegavam ao Brasil.
Nessas condições, o sistema latifundiário cafeeiro, com o apoio do Estado imperial, saiu na frente para resolver seu problema de escassez de mão-de-obra. Importou europeus livres para trabalharem, primeiro como parceiros, ou agregados e, depois como “colonos”, que combinavam parceria e assalariamento. Além disso, o Estado imperial também introduziu uma cunha, embora pequena, no sistema de monopólio fundiário, ao importar europeus e açorianos para ocuparem as regiões sulinas como agricultores familiares.
Mas a classe latifundiária escravocrata, apesar de sua crise evidente, que exigia mudanças nas relações de trabalho, não perdoou o Estado monárquico quando este foi compelido a dar fim à escravidão. Apesar de a monarquia haver mantido intocado o monopólio da propriedade fundiária, o latifúndio lhe impôs a República, sem tocar, porém, no velho patrimonialismo, numa singularidade bem brasileira.
Além disso, como observou Victor Nunes Leal, em seu Coronelismo: enxada e voto, o latifúndio escravista perdeu o escravismo, mas reteve a maior parte dos ex-escravos, que não sabiam para onde ir, nem o que fazer como “homens livres”. Os incorporou como “agregados”, obrigados ao pagamento da renda em espécie (meia, terça, quarta), ao “cambão”, e às dívidas do “fornecimento”. Em troca da manutenção de seu monopólio sobre o solo, os latifundiários garantiam o poder absoluto do Estado “republicano”, através dos “votos de cabresto” e das milícias de “jagunços”, estes para liquidar desafetos territoriais e/ou políticos.
Que esse patrimonialismo tenha servido para Sérgio Buarque de Holanda conceituar o homem brasileiro como “homem cordial” talvez possa ser explicado pelos mesmos motivos que Jessé Souza acusa vários autores de interpretarem Weber erroneamente.
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Wladimir Pomar é escritor e analista político.