Correio da Cidadania

Capital e singularidade do Brasil

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Apesar de tudo que já existe sobre o desenvolvimento capitalista no Brasil, A Tolice..., considera que o “núcleo da concepção do Brasil como uma sociedade moderna” permaneceria “não discutido”. Isto, apesar do “pressuposto no argumento weberiano”, de que “a irremediável confusão entre as diversas esferas sociais” seria aquilo “que garante a apropriação do excedente social”, como o “butim livre para a formação de fortunas” dos “setores privilegiados”.

 

Portanto, ainda segundo A Tolice..., se ampliarmos “a ideia de ‘capital’ de sua conotação meramente econômica, que possuía em Marx”, e englobarmos “tudo aquilo que pré-decide o acesso a todos os bens e recursos escassos”, poderíamos “chegar a uma hierarquia bem mais convincente... ’impessoal’... Esta se imporia “à vontade individual” porque, no mercado, “até o homem mais rico do mundo tem que ‘obedecer’ às suas leis, que não escolhem ‘pessoas’...”.

 

Isso parece um “aborto de montanha”. Ficamos sem saber quem pré-decide o acesso aos bens. Será a “irremediável confusão” das “diversas esferas sociais”? A “hierarquia impessoal”? Ou o “mercado” que impõe “suas leis” até ao “homem mais rico do mundo”? Na prática, quem entende o “capital” apenas por sua conotação “meramente econômica” costuma se ver diante dessas contradições.

 

O que não é o caso de Marx. Para este, o capital é uma relação econômica e social. Uma relação humana, entre proprietários privados de meios de produção e proprietários de força de trabalho, para a realização da produção, circulação e distribuição da riqueza social (que não é composta apenas de “bens e recursos escassos”, nem é “impessoal”, como A Tolice... se esforça por fazer crer).

 

Essa relação social e econômica promove tanto a “irremediável confusão” nas esferas sociais quanto impõe ao mercado suas leis “extremamente pessoais”, já que só sacrificam os “mais ricos” pela concorrência de outros “mais ricos”, e ambos os “privilegiados” sacrificam os desprovidos de meios de produção. Portanto, ao contrário do “pressuposto weberiano”, é a relação (econômica e social) entre os proprietários dos meios de produção, os capitalistas, e os proprietários da força de trabalho, os trabalhadores, que “garante a expropriação do excedente social”.

 

O capitalista individual se apropria do valor excedente que o trabalhador individual cria durante o tempo em que sua força de trabalho é comprada. E o capitalista social (o conjunto da classe capitalista ou burguesa) se apropria do valor excedente que o trabalhador social (o conjunto da classe trabalhadora) cria durante o tempo em que sua força geral de trabalho é comprada. Ou seja, o valor gerado no tempo de utilização da força de trabalho é a base da acumulação da riqueza na sociedade capitalista. Desse valor, gerado a cada momento de utilização da força de trabalho, o capitalista retribui ao operário, por meio do salário, apenas a parte necessária à reprodução de sua força de trabalho, física e mental. É esse mecanismo, ao mesmo tempo econômico e social, que fornece o “butim livre para a formação de fortunas”. O mercado é o espaço material e temporal em que essa relação capital se dá.

 

No capitalismo, ao contrário de outras formações econômico-sociais, como o feudalismo e o escravismo, tudo se transforma em mercadoria, a ser transacionada no mercado. Mercadorias que assumem diferentes formas, como dinheiro-força de trabalho (capital variável), e como dinheiro-meios de produção, matérias primas, produtos industriais e agrícolas, bens móveis e imóveis, projetos, serviços, abundantes ou escassos (capital constante). Todas essas formas são negociadas como mercadorias, tendo por base o valor produzido no processo de emprego da força de trabalho.

 

Em outras palavras, não existem “capitais impessoais” ou “capitais culturais”. Estes são frutos de um “economicismo” infantil que se nega a ver o capital como uma relação econômica e social, estabelecida entre seres humanos para realizar a produção dos bens necessários à vida e à reprodução humana, assim como à reprodução ampliada do próprio capital. Ao contrário do que sugerem Weber e Jessé Souza, quem estabelece “relações privilegiadas” no mercado e na sociedade, e “pré-decide o acesso a todos os bens e recursos”, nem sempre “escassos”, é o conjunto dos proprietários privados de meios de produção, ou a classe burguesa ou capitalista.

 

Reiteramos: o capital é econômico e social. Como econômico ele trata das categorias dinheiro, salários, lucro, renda, juros. Como social ele trata do conjunto dos capitais, das classes, da sociedade civil, do Estado. Mas entendendo que, como relação, trata-se de unidade contraditória. Ela inclui cooperação e subordinação, cooperação e concorrência, cooperação e conflito, cooperação e luta. Assim, ao dar um conteúdo exagerado ao conceito de “capital econômico”, modificando o conteúdo do “capital social”, e criando um “capital cultural” como condição de “valorização”, A Tolice... dilui o papel da burguesia e da principal relação contraditória do capital.

 

Ela acredita que as classes sociais detentoras do “capital cultural valorizado” ocupam, “juntamente com as classes que monopolizam o capital econômico, todas as funções ‘superiores’ na sociedade”. Com isso, todos os indivíduos que estudaram, mesmo que sejam assalariados, desprovidos da propriedade de quaisquer meios de produção, são colocados numa classe específica, irmã siamesa da burguesia detentora da propriedade privada dos meios de produção.

 

Assim, para A Tolice..., “a questão principal para a crítica de qualquer sociedade moderna concreta (seria) o desvelamento dos mecanismos que eternizam o acesso privilegiado de alguns grupos e classes aos capitais impessoais, sejam eles econômicos ou culturais”. Se aceitarmos essa receita, deveríamos nos voltar contra os esforços para uma educação universal, o principal mecanismo de acesso ao tal “capital cultural”. E colocar Jessé Souza, detentor de um hipotético “capital cultural valorizado”, como aliado estrutural da burguesia.

 

Porém, deixemos de lado essa receita incongruente e continuemos concordando com Marx de que a questão principal para a crítica de qualquer sociedade moderna (capitalista), é o desvelamento do processo de exploração a que os proprietários privados de meios de produção, circulação e distribuição submetem os trabalhadores e também outras classes presentes nessa sociedade, inclusive algumas proprietárias de pequenos meios de produção.

 

Para realizar essa crítica na sociedade moderna brasileira é indispensável conhecer seu processo de evolução histórica. Mesmo porque há grandes discordâncias a respeito. A Tolice..., por exemplo, considera um erro crasso, “um absurdo científico”, dizer que “o Brasil é uma continuação de Portugal”. Para ela, aqui, “ao contrário de lá, a escravidão era a instituição total que comandava a vida de todos”. Além disso, o “tipo híbrido de escravidão que se instalou entre nós... foi tanto industrial, como a norte-americana, quanto sexual, a exemplo da... muçulmana”. O que teria ensejado “comportamentos que se mantiveram até o ambiente moderno e urbano”.

 

Quando a análise da história se perde nos “comportamentos”, dando pouca ou nenhuma atenção à base econômica e social que os gestou, a crítica das sociedades, tanto a anterior quanto a atual, pode gerar análises pouco consistentes. É verdade que aqui, ao contrário da sociedade portuguesa, “a escravidão era a instituição total que comandava a vida de todos”. E é evidente que Portugal já havia superado o escravismo antes do fim do Império Romano do Ocidente e do domínio árabe. E que seu sistema econômico-social durante a expansão mercantil colonial foi o feudalismo, com forte presença de uma burguesia comercial, como vimos anteriormente.

 

As leis, normas, costumes e cultura vigentes eram, portanto, aqueles típicos das sociedades feudais e medievais nas quais o Estado monárquico era centralizado. Ou seja, os feudos eram cedidos em usufruto a nobres, que tinham o direito de extrair a renda fundiária (parte da produção, ou parceria, e parte do trabalho, ou corveia) da produção obtida pelos camponeses servos. A nobreza se apropriava de parte do trabalho servil, mas os servos pertenciam não a eles, e sim às glebas, e eram proprietários de seus meios de produção.

 

No caso da exploração colonial no Brasil, Portugal não tinha como transportar seus servos para cá. E suas tentativas de utilizar o trabalho indígena por outras formas, que não o escambo, resultaram em conflitos mortais. A solução foi aquilo que Jessé Souza chamou de “tipo híbrido de escravidão”, implantado com o auxílio dos bucaneiros ingleses traficantes de escravos africanos, nas sesmarias cedidas pela Coroa portuguesa a nobres e/ou a burgueses comerciais.

 

De qualquer modo, não é possível apagar da história brasileira mais de três séculos de domínio colonial português, no qual muitas das leis, normas e costumes dos “senhores de terras e de escravos” eram típicos de Portugal, embora aclimatados às terras colonizadas. Isto, com o agravante de que, além dos três pês que os senhores dedicavam aos escravos, (pau, pano e pão), descritos por Antonil, a eles também cabia o direito de vida e morte sobre os cativos, e da cama, sobre as cativas, práticas que se prolongaram quase até o final do século 19, e que muitos ainda procuram repetir.

 

Além disso, é preciso considerar o sistema de agregação, implantado nas fazendas de gado do sertão, aparentado ao sistema servil português. Nesse sistema, os senhores de terra utilizavam vaqueiros e peões livres para cuidar do gado em currais distintos. Cabia a eles o trabalho de construção e manutenção dos currais e o manejo do gado, com direito à parte da produção de bezerros (em geral a quarta ou a quinta). Eles também tinham que se submeter à participação na defesa das terras do senhor toda vez que este os convocasse.

 

Este sistema, restrito à pecuária durante todo o período escravista, foi transferido para a agricultura, após a libertação dos escravos, no final do século 19, com as adaptações de praxe para disfarçar sua natureza subordinada. Meação, terceirização, cambão e outros tipos de relações entre os latifundiários brasileiros e seus agregados, nos quais se destacavam os pagamentos em produtos da terra, eram semelhantes às formas assumidas pelo feudalismo desde os primeiros passos do “clientelismo romano”. E permaneceram vigentes até meados do século 20, em pleno processo de “modernização” da sociedade brasileira. Como é possível desdenhar essas “formas” e “costumes” na análise do Brasil moderno?

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

 

 

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