Pensando a longo prazo – ainda a singularidade do Brasil
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- Wladimir Pomar
- 16/11/2016
Não é possível retirar do “núcleo da concepção do Brasil como uma sociedade moderna”, ou ignorar, a presença pesada, como a dos mortos sobre os vivos, do sistema latifundiário. Isto, mesmo à medida que o Estado, primeiro, e a exportação de capitais dos países capitalistas avançados, depois, promoveram a industrialização brasileira e acelerou a monetarização do país.
Por outro lado, não passa de exagero afirmar que o “tipo híbrido de escravidão que se instalou entre nós... foi tanto industrial, como a norte-americana, quanto sexual, a exemplo da escravidão muçulmana”, ensejando “comportamentos que se mantiveram até o ambiente moderno e urbano”. No Brasil, a escravidão “industrial” limitou-se aos serviços mais pesados dos “engenhos de açúcar”, enquanto nos Estados Unidos a indústria de máquinas se desenvolveu no Norte não escravista, para atender aos farmers, ou pequenos e médios agricultores independentes.
Quando os Estados Unidos fizeram sua guerra de independência, no século 18, os estados do Norte tinham um sistema econômico e social completamente diferente do que predominava no Sul. Tal diferença só foi superada, quase um século depois, pela sangrenta e destrutiva Guerra de Secessão, que transformou os escravos sulistas em força de trabalho livre para expandir a indústria, embora o racismo sulista ainda hoje faça estragos. Assim, mesmo tendo “tamanho territorial e populacional similares aos do Brasil”, nos Estados Unidos a “história pós-colonial foi repartida em duas: a “agrícola-farmer e industrial”, no norte, e a “agrária latifundiária-escravista”, no sul.
No Brasil, a independência foi proclamada por uma fração da Coroa portuguesa, a um preço não totalmente esclarecido. A escravidão, por sua vez, vergonhosamente, só definhou pela pressão inglesa contra o tráfico, sendo substituída por um híbrido aparentado ao feudalismo. Assim, por bem ou por mal, como a esmagadora maioria dos países existentes no planeta Terra, o Brasil é singular em seu desenvolvimento histórico. Portanto, mesmo que esteja incorporado ao desenvolvimento do modo de produção capitalista, precisa ser tratado em sua singularidade para encontrar seu caminho futuro.
Tem que levar em conta tanto as influências escravistas e híbridas do passado, quanto os novos desafios do desenvolvimento e da globalização capitalistas contemporâneas. Não pode ignorar que o sistema latifundiário de agregação só começou a “modernizar-se” através de parcerias e arrendamentos pagos em dinheiro, e da paulatina substituição do cambão (trabalho grátis do camponês nos serviços do latifundiário) por trabalho assalariado, por volta dos anos 1950, quanto a legislação trabalhista foi estendida às áreas rurais.
Mesmo assim, na prática, o camponês apenas substituiu a forma de pagamento da renda fundiária (antes em produto), ao mesmo tempo em que sua subordinação ao latifúndio se intensificou através do endividamento monetário. Este era contraído tanto em virtude dos “fornecimentos” financiados pelo latifundiário (ferramentas, alimentos etc.) quanto pelos pagamentos incompletos da renda anual. Desse modo, o sistema de raiz (o monopólio da propriedade do solo) continuou intocado, permitindo à classe latifundiária manter sob seu domínio e exploração o principal contingente da população economicamente ativa brasileira.
Nesse sentido, as aporias de Jessé Souza só ajudam na medida em que servem para a crítica. Basta lembrar, como vimos em comentário anterior, que a “libertação” da mão-de-obra dos latifúndios para servir como força de trabalhado assalariado para a industrialização só ocorreu nos anos 1960 e 1970, através da “modernização dos latifúndios”. Num ressurgimento moderno do patrimonialismo, corporificado na ditadura militar, montanhas de dinheiro público foram descarregadas nas mãos dos latifundiários para mecanizarem seus plantios e descartarem seus “agregados”.
A migração desordenada de milhões de camponeses liberados da agricultura e atraídos pelos empregos industriais dos investimentos estrangeiros foi acompanhada de uma urbanização caótica. Essa foi a fórmula encontrada pelas burguesias estrangeiras e brasileiras para realizar, através do poder militar, o que alguns autores denominaram “modernização conservadora”. Isto só teve algo a ver com o “êmulo” norte-americano porque grande parte dos capitais investidos no “milagre econômico ditatorial” veio dos Estados Unidos.
Afora isso, outro dos resultados da singularidade capitalista brasileira foi a derrocada do “milagre econômico” ditatorial dos anos 1970, deixando sem oportunidade de emprego grandes parcelas migrantes da antiga agregação dos latifúndios. Isso transformou aquilo que se poderia chamar de “exército industrial de reserva” numa verdadeira quarta classe social, virtualmente excluída das possibilidades de vender sua força de trabalho para a reprodução do capital.
Nesse sentido, A Tolice... acerta em parte quando diz que a “procura de um modelo para a sociedade brasileira” tem que realizar uma “análise correta dos padrões culturais que se tornaram dominantes na sociedade brasileira, certamente com consequências até nossos dias”. Mas erra certamente quando afirma que tal análise “teria que se concentrar na escravidão, naquilo que ela tem de singular e de comum com outras sociedades escravocratas”.
Errado em parte porque, primeiro, a sociedade brasileira não teve um modelo único, nem se manteve estática ou imutável nas poucas centenas de anos de sua existência. É verdade que algumas das categorias econômicas, sociais e culturais, que permearam a história escravista brasileira, continuam presentes até nossos dias. Outras, porém, esmaeceram. E há as que desapareceram.
Por exemplo, a escravidão perdurou por cerca de 350 anos. Já as sesmarias, ou latifúndios, assim como a classe social que os detinha, perduram por mais de 500 anos. Mas a ditadura militar, entre meados dos anos 1960 e 1980, supostamente realizada para acabar com a intervenção do Estado na economia, empregou o dinheiro público para modernizar os latifúndios e os transformar em grandes agriculturas comerciais capitalistas e, com isso, também transformar a velha classe latifundiária em fração agrária e agrícola da burguesia.
Já o racismo social, como subproduto e complemento do racismo étnico, também continua perdurando por mais de 500 anos. O fingimento das atitudes “politicamente corretas” mal consegue esconder, por toda parte, tanto a discriminação contra negros, índios, mulheres e a aversão às políticas de cotas, quanto o repúdio aos pobres, que conseguiram renda para viajar de avião, e às populações atendidas pelos programas “Bolsa Família” e “Mais Médicos”.
Por outro lado, a exploração capitalista ganhou força após a instalação da indústria de substituição das importações, durante a Primeira Guerra Mundial. Depois, desenvolveu-se em três grandes ondas de industrialização, como soluços, e com o predomínio de capitais estrangeiros. E hoje é majoritariamente dominante em todos os aspectos da sociedade brasileira, inclusive na ideologia da “oportunidade igual para todos”, da “concorrência meritocrática”, da “competitividade como impulsora do progresso” etc. etc. Portanto, concentrar-se na escravidão, mesmo que apenas para analisar os padrões culturais, pode resultar numa pintura borrada da realidade brasileira.
Em outras palavras, para analisar uma sociedade, tanto em seus aspectos econômicos e sociais, quanto em seus aspectos ideológicos, políticos e culturais, incluindo as heranças que permaneceram vivas, e aquelas que pereceram, é preciso ter como base a análise das relações de produção existentes, tanto as dominantes quanto as secundárias, e verificar suas mudanças no espaço e no tempo. São estas relações econômicas e sociais que produzem as expressões, ou as relações, ideológicas, políticas e culturais, e evitam que se caia em reducionismos, sejam os de Jessé Souza a respeito da escravidão, sejam os de Raymundo Faoro sobre os estamentos.
Para Faoro, “na sociedade capitalista, os estamentos permanecem, residualmente, em virtude de certa distinção mundial, sobretudo nas nações não integralmente assimiladas ao processo de vanguarda”. Alguns estamentos se transformariam em classes, e algumas classes evolveriam para o estamento, “sem negar seu conteúdo diverso”. Isto, numa situação em que os “estamentos governam” e “as classes negociam”.
Tal análise induz a erros, principalmente ao supor que os partidos políticos no governo, assim como seu funcionalismo público, seriam estamentos. E que as classes não lutariam. O que não corresponde à realidade histórica.
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Wladimir Pomar é escritor e analista político.