Pensando a longo prazo – Conhecimento e consciência
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- Wladimir Pomar
- 10/02/2017
Pesquisando os países capitalistas mais avançados, não são apenas os “despossuídos” daquilo que A Tolice da Inteligência Brasileira chama de “capitais culturais” que estão sendo atingidos pela incessante revolução técnica das forças produtivas e consequente elevação da produtividade e do desemprego. É crescente o número de profissionais possuidores de “capitais culturais”, ou de técnicas tornadas obsoletas, que se vêm jogados do “trabalho de classe média” para o desemprego estrutural.
As corporações capitalistas transnacionais também não se lançaram na globalização, exportando capitais na forma financeira e na forma de transferência de plantas industriais, pela simples vontade de explorar outros povos. A elevação da produtividade (irmã siamesa da alta taxa de mais-valia relativa) é fatal para a taxa média de lucro, que despencou e impôs ao capital desenvolvido a busca de regiões de baixo salário e altas taxas de mais valia absoluta, algo que Trump parece não entender e vai dar um nó no capital estadunidense.
Quando Marx previu isso, há cerca de 150 anos, muitos economistas e sociólogos o acharam um lunático. Agora, pelo menos esses “acertos” poderiam servir de alerta para os que querem entender as contradições do capitalismo. Precisam reler com mais atenção os textos originais que deram origem ao que se convencionou chamar de “marxismo” (embora Marx não gostasse desse conceito e dito que não era “marxista”).
Mas esse alerta sobre a atualidade do marxismo não serve para A Tolice... Não tem efeito algum porque seu autor está convencido de que Marx, “um homem do século 19”, “pensava o processo de aprendizado como o de um ‘sujeito já pronto’”. Frisando que esta concepção do sujeito é “cartesiana”, A Tolice... não diz de qual trabalho de Marx retirou esse disparate. O que, convenhamos, em termos de honestidade teórica, deixa a desejar, principalmente porque os pensadores alemães criadores do marxismo defendiam justamente o contrário do que A Tolice... credita a eles.
Em A Ideologia Alemã, por exemplo, um dos primeiros textos de acerto de contas teórico com a filosofia clássica alemã, e principalmente com o materialismo vulgar de Feuerbach, eles afirmam que a “produção das ideias, das representações e da consciência, aparece, no princípio, diretamente entrelaçada com a atividade material e o trato material dos homens, como a linguagem da vida real”. As “ideias que os indivíduos formam são aquelas relacionadas com a natureza, com as relações entre si, e acerca do que são elas mesmas”. Ditas “ideias são uma expressão consciente – efetiva ou ilusória – de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção, de seus contatos, de sua organização social e política”.
Portanto, “a formação das ideias, o pensamento, o trato espiritual dos homens se apresenta... como emanação direta de seu comportamento material”, de sua atividade, de sua prática. O “mesmo ocorre com a produção espiritual, tal e como se manifesta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo”. Os homens “são os produtores de suas representações, de suas ideias”, mas são “homens reais e ativos” e, como tal, “condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo trato que a eles corresponde...”.
Em Anti-Duhring, Engels coloca o “problema da relação entre o pensar e o ser” como aquele que, entre outras coisas, encerra “a relação que nossos pensamentos guardam acerca do mundo que nos rodeia como esse mesmo mundo”. E pergunta: “é nosso pensamento capaz de conhecer o mundo real”? Podemos, com “nossas ideias e conceitos... formar uma imagem reflexa exata da realidade?”
A tal pergunta, conhecida na linguagem filosófica como “problema da identidade entre o pensar e o ser”, Engels responde que, “desde Descartes até Hegel, e desde Hobbes até Feuerbach”, os filósofos não haviam avançado, como pensavam, “pela força do pensamento puro”, mas, ao contrário, precisamente pelos “progressos formidáveis e cada vez mais evidentes das ciências naturais e da indústria” que lhes permitia “conhecer o mundo”.
Como muitos filósofos, sociólogos, economistas e outros pensadores do passado e do presente, o autor de A Tolice... pode discordar desses preceitos materialistas sobre o processo de apreensão do conhecimento e de formação da consciência. No entanto, fazer caricatura deles, tentando transformá-los num jogo desmoralizante de palavras, não condiz com um debate teórico sério. Mesmo porque, embora Marx e Engels tenham sido homens do século 19, o que impressiona é a atualidade deles em pleno século 21.
Nesse sentido, eles seguem a trilha de outros pensadores do passado, cujas teorias só foram demonstradas como corretas séculos depois. Quantos séculos as especulações de Tales sobre a curvatura da Terra e a de Demócrito sobre a existência dos átomos levaram para serem demonstradas? E quanto tempo foi preciso para que a teoria de Copérnico sobre os movimentos de rotação e translação da Terra fosse provada? Como se sabe, alguns séculos.
Algo idêntico tem ocorrido com as teorias de Marx e Engels sobre o materialismo dialético, assim como sobre a história e o capitalismo. Quanto mais avançamos na história, mais as lutas de classe e as crises do capital teimam em demonstrar praticamente que eles têm razão. Mesmo porque, ao contrário de pensarem o aprendizado como o de um “sujeito já pronto”, como sugere A Tolice..., os fundadores do marxismo o enxergam como um processo complexo de interação do pensamento humano com a realidade exterior, em todos os seus aspectos materiais e culturais, incluindo a produção do próprio pensamento.
Essa interação não pode ser a tolice de adicionar “certo tipo de conhecimento à sua bagagem, como alguém enche um cesto vazio quando vai à feira”. A apreensão da realidade precisa ser realizada criticamente, de um lado para evitar que o pensamento apreenda aspectos que não correspondem ao realmente existente e, de outro, para descobrir os aspectos até então desconhecidos e incorporá-los como conhecimentos científicos.
Portanto, não passa de uma visão grosseira afirmar que na concepção marxista “o conhecimento se aloja na cabeça do sujeito e seu corpo é um mero meio para fazê-lo caminhar e segurar a cabeça que envolve o seu espírito”. Na verdade, ao falar isso, A Tolice..., procura tornar aceitável a ideia de que a “faceta mais importante do ‘capital cultural’ é o fato de ser uma ‘incorporação’, literalmente, ‘tornar-se corpo’ de toda uma forma de se comportar e agir no mundo”. O “avanço científico” aqui seria a “suposição de superação da oposição entre corpo e espírito, em que o corpo é pensado como uma ‘matéria sem vida’ e ‘sem espirito’, em favor de uma concepção em que o corpo é compreendido como um ‘emissor de sinais’ e prenhe de significados sociais”.
Quem leu acima o resumo do pensamento marxista comprova facilmente que a invenção sobre um corpo humano como “matéria sem vida” e “sem espírito” não passa do velho truque de atribuir ao contendor uma ignorância que justifique a própria ignorância a respeito. O problema não consiste em considerar o corpo humano sem vida ou sem espirito. Consiste em considerar que tal corpo com vida e espírito faz parte de um entorno material, natural e ou construído, tanto inorgânico quanto orgânico (vivo), com o qual se relaciona o tempo todo e do qual depende para viver e sobreviver como ser humano.
O espírito desse corpo vivo precisa, permanentemente, apreender como funciona esse entorno, natural e também social, em que vive. Sua sobrevivência e seu desenvolvimento dependem da relação simbiótica que estabelece com a natureza e com a sociedade. Em outras palavras, o corpo vivo não é apenas “emissor de sinais”, mas também “captador de sinais”, naturais e sociais, trabalhados pelo espírito, que os organiza como conhecimentos e pensamentos, e capacita o corpo a emitir os sinais (ou significados sociais) que lhe permitem relacionar-se tanto com a natureza quanto com os demais seres sociais. Ou, em outras palavras, corpo e espírito precisam relacionar-se intimamente, mesmo contraditoriamente, para relacionar-se com as contradições materiais e espirituais do mundo.
Mas A Tolice... considera que basta o que chama de ‘capital cultural’ para realizar uma “incorporação” literal “do corpo” e possibilitar que este “se comporte e aja no mundo”. Já vimos que esse conceito de “capital cultural” supostamente funciona como um “abre-te sésamo”. O problema é que, na realidade do mundo capitalista, ele só funciona enquanto o capital se sentir obrigado a contratar força humana de trabalho assalariado.
Como a história recente dos Estados Unidos e em parte da Europa está mostrando, quanto mais o suposto “capital cultural” (força de trabalho culturalmente qualificada) contribui para desenvolver técnica e cientificamente os meios de produção, e elevar a produtividade, mais é descartado como força de trabalho. Novidade? Não! Marx, em O Capital, já havia previsto que essa era uma das tendências do capital (econômica e social) em seu desenvolvimento. Sendo assim, o desvio da atenção das relações de produção capitalistas para o suposto “capital cultural”, como base para o comportamento e ação no mundo dominado pelo capital, é ótimo para esconder a verdadeira natureza do “capital”, e desviar a análise da luta de classes de suas questões fundamentais.
É verdade que A Tolice... procura se resguardar dessa acusação ao dizer que o “capital econômico jamais está sozinho, como ‘a cegueira economicista’ imagina”. O ponto de partida da classe envolveria “basicamente três capitais: o econômico, o cultural e o social”. Os dois primeiros seriam, “na sociedade moderna, os mais importantes”.
Como a classe média só poderia “assegurar a reprodução de seus privilégios se possuísse algum capital econômico para ‘comprar’ o tempo livre dos filhos”, a posse do “capital cultural” garantiria a reprodução da classe como “classe privilegiada em dois sentidos”. Primeiro, “vencedores na escola”, depois, no mercado de trabalho, ocupando “espaços que as classes populares – classe trabalhadora e ralé – não poderão alcançar”. A conferir!
Wladimir Pomar
Escritor e Analista Político