Pensando a longo prazo – Classes sociais
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- Wladimir Pomar
- 03/03/2017
Ao afirmar sintética e categoricamente não haver “qualquer diferença essencial acerca do modo como se estruturam as classes sociais em luta, por exemplo, no Brasil e na Alemanha”, A Tolice da Inteligência Brasileira mostra como vê as coisas de modo superficial.
Em primeiro lugar porque a burguesia alemã não possui uma fração agrária latifundiária poderosa como a burguesia brasileira. Em segundo lugar porque na Alemanha não existe, a rigor, uma classe excluída, constituída por uma extensa população sem estudo e sem trabalho, como no Brasil. Em terceiro lugar, porque seu desemprego tem o duplo componente de ser conjuntural (resultante da crise) e estrutural (resultante da elevação da composição orgânica do capital, em que o trabalho morto substitui cada vez mais o trabalho vivo). No Brasil o desemprego é estrutural, no sentido de desenvolvimento incompleto do capitalismo, e conjuntural (resultante da crise global).
Em outras palavras, embora as leis de desenvolvimento capitalista sejam universalmente válidas, elas atuam desigualmente em cada nação ou região, impedindo que a estrutura de classes seja rigidamente igual em toda parte. A existência de uma forte fração burguesa latifundiária e de uma “classe excluída”, num país de desenvolvimento capitalista atrasado como o Brasil, estabelece uma “diferença essencial” com a Alemanha e demais países capitalistas avançados, nos quais a formação de uma “classe excluída” avança com base em ex-assalariados com estudo e qualificação.
Por outro lado, A Tolice... tem razão ao acentuar que o “conceito de classe econômica” é inteiramente absurdo, pois “pressupõe que as determinações econômicas são as únicas visíveis que importam para o conceito de classe”. O conceito de “classe econômica”, cunhado por Neri, para supostamente demonstrar que a classe de renda C havia ascendido ao patamar de classe média, por sua vez, reduziu o “econômico” à renda, algo que A Tolice... não se preocupou em esclarecer. O que a leva a supor a “noção de classe social como aprendizado, em grande medida inintencional, de disposições para crer e agir”. Ou seja, a noção de classe social seria subjetiva.
A divisão da sociedade em classes, porém, desde que surgiu na história da humanidade, teve por base a divisão da sociedade em torno da propriedade privada dos meios de produção. Primeiro, e por alguns milênios, principalmente em torno da propriedade do solo, dos animais de trabalho (incluindo os seres humanos escravizados ou em servidão), e dos animais de criação. Depois, com o surgimento da manufatura e principalmente da indústria, fundamentalmente em torno da propriedade do dinheiro, das máquinas e demais equipamentos de produção e circulação das mercadorias.
Dizendo de outro modo, a divisão da propriedade privada do solo, dos seres humanos escravizados e dos animais de criação fez emergir duas classes antagônicas: os escravistas, escravocratas, ou senhores de escravos, de um lado, e os escravos, de outro. Mas em todas as sociedades escravistas da antiguidade, como já vimos em comentários anteriores, também existiu um contingente de homens livres sem propriedade privada de meios de produção, ou com a propriedade de meios reduzidos de produção, constituindo uma ou mais de uma classe à parte.
Algo idêntico ocorreu com a superação histórica do escravismo pelo feudalismo. A divisão social da propriedade privada dos meios de produção continuou sendo a base da divisão da sociedade em novas classes sociais, tendo os senhores feudais e os camponeses servos como as principais classes antagônicas. Mas ao lado delas havia elementos livres, não proprietários, ou proprietários de outros meios de produção e circulação, como os agricultores comunitários, os comerciantes e os artesãos.
Já o capitalismo surgiu historicamente de um conjunto de modificações na sociedade feudal. A produção de excedentes agrícolas e minerais e a produção artesanal expandiram o comércio (mercantilismo), levaram à descoberta de novas terras e povos na África, Ásia e Américas, e promoveram grande acumulação de riquezas (ouro, prata, pedras preciosas, dinheiro). Isso, associado à expulsão dos camponeses das terras em que produziam, para dar lugar a novas formas de renda fundiária, levou à criação de grandes massas populacionais desprovidas de qualquer propriedade de meios de produção e de outras formas de sobrevivência que não fosse a mendicância, o roubo, e a venda da força de trabalho por salário.
Foram essas massas que constituíram paulatinamente uma nova classe social, que tinha como contraparte outra nova classe, proprietária de manufaturas. Em outras palavras, a nova relação econômica e social, denominada capital pelos economistas políticos ingleses, que continuava tendo por base a propriedade privada dos meios de produção, compreendia duas classes sociais opostas: os proprietários privados dos novos meios de produção e circulação (burgueses, capitalistas), e os proprietários privados de força de trabalho (trabalhadores assalariados, proletários, classe operária).
Essa nova relação econômica e social tomou impulso e se expandiu com a revolução técnica que deu surgimento à indústria, no século 19. No entanto, tanto em termos nacionais, quanto mundiais, o desenvolvimento dessa nova relação foi bastante desigual. Nesse sentido, não tem sentido a afirmação de A Tolice... quanto a uma suposta “pergunta central nunca respondida”. Isto é, como “explicar a permanência da condição subproletária no tempo”.
Primeiro, porque o desenvolvimento do modo de produção capitalista não foi um big bang. Ou seja, sua expansão tem ocorrido num tempo relativamente prolongado, mesmo nos países em que se implantou de forma mais avançada, a exemplo da Inglaterra, Estados Unidos, França, Alemanha e Japão. Nesses países, sempre ocorreu uma defasagem entre a população ativa total disponível a vender sua força de trabalho e a demanda capitalista por força de trabalho. É essa defasagem entre a população proletária total e a população proletária empregada que explica a existência de uma população subproletária.
Esta constitui tanto aquilo que Marx chamou de exército industrial de reserva quanto aquilo que se conhece como lumpenproletariado. Em outras palavras, o “pleno emprego” da força de trabalho proletária só ocorreu em casos históricos excepcionais, como na Alemanha e no Japão, durante a corrida armamentista dos anos 1930, e nos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e Japão, durante a segunda guerra mundial, nos anos 1940. Em países de desenvolvimento capitalista atrasado, como é o caso do Brasil, o “pleno emprego” jamais foi alcançado, seja porque seus “soluços” de crescimento foram de pequena duração, seja porque foram menos intensos do que o crescimento populacional.
Modernamente, a revolução científica e tecnológica das forças produtivas, e a consequente substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, tende a expandir a presença da população subproletária, ou de uma “classe dos excluídos”, que inclui como frações o “exército industrial de reserva” de qualificados para o trabalho útil, o “lumpenproletariado”, e uma enorme massa indistinta que migra entre essas frações. Os Estados Unidos talvez sejam hoje o exemplo mais significativo dessa nova situação de desestruturação da classe proletária nos países capitalistas avançados.
Apesar disso, A Tolice... procura, a todo transe, fazer crer que a “classe perdedora da universalização do capital por todo o globo –... não é a classe trabalhadora como pensava Marx...” mas a classe dos desclassificados, a ralé, os excluídos, obedecendo a uma lógica semelhante nos países centrais e nos periféricos. O problema, no caso, consiste em que não é possível encontrar nos escritos de Marx qualquer referência à classe trabalhadora como “perdedora”. Ao contrário, ao reconhecer que a “relação capital” é intrinsicamente formada por capitalistas e trabalhadores assalariados, Marx extraiu conclusões opostas às que A Tolice... sugere.
Os trabalhadores assalariados não vivem sem a existência dos capitalistas. E estes não conseguem manter-se sem aqueles, não tanto por serem necessários como produtores diretos, mas por constituírem o mercado de consumo das mercadorias produzidas pelo sistema. A crise do American Way of Life apresenta a brutal contradição de um altíssimo nível de desenvolvimento científico e tecnológico cavando um imenso fosso de trabalhadores qualificados sem emprego, aumentando a massa de pobreza e miséria que a população norte-americana desconhecia até poucos anos atrás.
Algo idêntico ocorre na Europa desenvolvida, desmentindo a suposição de A Tolice... segundo a qual os “países centrais e periféricos” obedecem a uma lógica semelhante, sendo a “ascensão social... uma prática em constante reafirmação, um jogo social”. Na verdade, tanto nos países centrais quanto na maior parte dos periféricos, a “lógica semelhante” vem sendo o “descenso social”, através do qual a classe trabalhadora vai se transformando em “classe desclassificada”, em “ralé”, em “excluída”. E colocando o sistema capitalista diante do absurdo civilizatório de possuir uma imensa capacidade produtiva e uma descomunal concentração de capitais, ao mesmo tempo em que dissemina a pobreza e a miséria por massas imensas de proprietários de força de trabalho.
Para colocar a “percepção da vida social das sociedades modernas verdadeiramente em outro patamar de refinamento teórico e empírico”, como pretende A Tolice..., é indispensável evitar creditar a Marx ideias e pensamentos que ele jamais exprimiu, retomar com vigor as verdadeiras categorias firmadas por ele, e analisar como elas estão evoluindo após o século e meio em que foram escritas.
As contradições que envolvem o capital, à medida que seu desenvolvimento parece chegar ao ápice, podem fazer com que a classe trabalhadora, mesmo transformada em classe que apenas possui força de trabalho, mas não tem emprego, negue dialeticamente a si própria. E, ao contrário do que pensa A Tolice..., liberte não só a si mesma como classe oprimida e explorada, mas a todas as demais classes, ao demonstrar que a abolição da propriedade privada é a condição necessária para superar a contradição limite do capital.
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Wladimir Pomar
Escritor e Analista Político