Pensando a longo prazo – Classes reais e fictícias
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- Wladimir Pomar
- 28/03/2017
A Tolice da Inteligência Brasileira afirma que “o que importa para a teoria sociológica crítica é perceber como a dominação social é construída e legitimada”. Estas seriam “as duas questões mais importantes”, tal “importância central” tendo a ver com a “capacidade de explicitar conflitos sociais e lutas de classes que de outro modo seriam invisíveis”.
Para demonstrar essa capacidade de explicitação de conflitos sociais invisíveis, A Tolice... retorna aos “desclassificados” que, “em sociedades como a brasileira e a indiana”, seriam “incapazes de lutar no mercado competitivo” e teriam seu tempo roubado pelas “classes médias e altas”. Essa classe seria “reduzida por completo à energia muscular”, seu trabalho poupando “tempo... às classes de privilégio” e as ajudando “a reproduzir em escala ainda mais ampliada os próprios privilégios de nascimento”.
Como já frisamos anteriormente, A Tolice... comete o erro de incluir no que chama classe de “desclassificados” uma série de assalariados dos serviços, pertencentes à classe trabalhadora ativa. Além disso, parece desconhecer que uma grande massa dos trabalhadores assalariados de outros setores produtivos e da circulação das mercadorias também são reduzidos por completo “à energia muscular”. É difícil saber de onde tirou a idealização de que a classe operária seria toda ela composta de trabalhadores que usariam principalmente seu cérebro competitivo.
Para piorar, continua escamoteando o processo de exploração do sistema capitalista de produção e circulação. Substitui o tempo expropriado dos trabalhadores no processo produtivo, o verdadeiro mecanismo de reprodução e acumulação do capital, por um suposto “tempo roubado” pelas “classes médias e altas”, para “poupar” seu tempo de trabalho. Portanto, procura tornar invisível tanto o processo de exploração e reprodução realizado pelo capital quanto a distinção entre burguesia (classe alta) e pequena-burguesia (classe média), embrulhadas no mesmo saco de “classes privilegiadas por nascimento”.
Para A Tolice... o roubo do tempo dos desclassificados, “incapazes de lutar no mercado competitivo” constituiria “uma luta de classes extremamente importante e ao mesmo tempo invisível”. Tão invisível que até mesmo o marxismo não a veria, “de tão acostumado a inquirir acerca da mobilização e de setores sociais mobilizáveis para a luta através de sindicatos e de partidos”. Isso se deveria a que, embora os “interesses materiais” também sejam “fundamentais” “ao ditar a busca do lucro e da mais-valia como fundamentos da lógica econômica”, a “compreensão da lógica política” seria “muito mais difícil”, sua falta de desenvolvimento sendo tributária do “economicismo implícito no marxismo”.
Para A Tolice... o marxismo não teria desenvolvido “um aparato conceitual que possa dar conta – como fez Weber.. do trabalho de dominação social, que se transforma em convencimento, em dominação aceita e desejada pelo próprio oprimido. Daí essa mania um pouco ridícula dos marxistas de sempre procurarem consciência de classe e atores revolucionários, quando esses são sempre construções improváveis e que existem mais como exceção do que como regra”.
A Tolice... parece ignorar que “atores revolucionários” são construções históricas. Elas tiveram que ser conceituados como tais porque surgiram em todas as formações sociais, independentemente de algum “aparato conceitual”. No processo de transformação do feudalismo em capitalismo na Europa, a burguesia, o campesinato e o proletariado, classes que surgiram durante a evolução histórica do feudalismo, desempenharam esse papel.
Na evolução do capitalismo, parte do campesinato evoluiu para a condição burguesa, que se tornou conservadora, e parte evoluiu para a condição proletária. O proletariado foi a única classe que se manteve como ator revolucionário, ao impor à burguesia as reformas democráticas que ela se negava a cumprir. Se não fosse tal “ator revolucionário”, direitos humanos e democráticos como o tempo da jornada de trabalho, o voto universal e direto e inúmeros outros, provavelmente ainda estariam como “construções improváveis”.
De qualquer modo, A Tolice... explicita uma diferença fundamental entre marxismo e weberianismo. Enquanto Weber buscou “um aparato conceitual” que explicasse como a dominação social “se transforma em convencimento, em dominação aceita e desejada pelo próprio oprimido”, Marx foi além. Por um lado, buscou essa explicação na realidade da difusão e do convencimento ideológico. Por outro, buscou extrair da realidade da dominação econômica, social e política as evidências e as formas de luta que permitiam aos dominados descortinarem a crueza da dominação e romperem com ela, não mais a aceitando.
Portanto, a teoria sociológica de Marx não se limitou a “perceber como a dominação social é construída e legitimada”, mas também como tal dominação pode ser historicamente superada. Tomando o próprio processo histórico como elemento de análise, comprovou que todas as “dominações sociais construídas e legitimadas” foram superadas por outras dominações sociais através das lutas entre as classes resultantes da divisão social baseada na propriedade privada dos meios de produção. Portanto, no capitalismo as classes e suas lutas também precisavam ser achadas através da análise da divisão social da propriedade dos meios de produção e das formas concretas como se manifestam não só a dominação social capitalista “construída e legitimada”, mas também as resistências e negações das classes oprimidas, mesmo que inicialmente invisíveis ou visivelmente dispersas, tresloucadas e sem rumo.
Ao tomar tal análise erroneamente como “economicista”, A Tolice... é levada a uma classificação errada das classes nas sociedades capitalistas. Por exemplo, considera que as “classes médias e alta” de nossa sociedade “não possuem apenas o mesmo privilégio de consumo de seus pares europeus e norte-americanos”. Contariam ainda com “um verdadeiro exército de mão de obra barata, sob a forma de empregados domésticos, babás, faxineiras etc., que permite poupar tempo para atividades bem-remuneradas e reconhecidas, além de minorar, por exemplo, a luta de gênero nessas mesmas classes, transformada em luta de classes invisível”.
Em primeiro lugar, ao colocar no mesmo patamar as “classes médias e alta” por possuírem, além do “privilégio de consumo de seus pares europeus e norte-americanos”, “um verdadeiro exército de mão de obra barata... de empregados domésticos”, A Tolice... transforma em questão central as capacidades de consumo e de possuir empregados domésticos. Com isso, torna invisível a questão-chave da propriedade dos meios de produção e circulação. Quem tem essa propriedade, aqui como nos Estados Unidos e na Europa, é a “classe alta”, a classe capitalista, a burguesia.
Colocar a capacidade de consumo e de ter empregados domésticos da classe média (a pequena burguesia) no mesmo patamar da capacidade de consumo da burguesia é desconhecer totalmente a diferença abissal que existe entre essas classes, tanto entre os pares europeus e norte-americanos, quanto em relação ao próprio Brasil.
A pequena-burguesia europeia e norte-americana tem dificuldade em ter empregados domésticos porque lá o preço da força de trabalho é alto. Mas as burguesias daqueles países, além dos exércitos de trabalhadores empregados na produção, comércio e serviços, possuem batalhões para os trabalhos domésticos. No Brasil, em virtude do baixo preço da força de trabalho, a pequena burguesia ainda pode ter o luxo de contratar alguns empregados domésticos, mas nada comparável aos exércitos e batalhões de trabalhadores utilizados pela burguesia cabocla.
Portanto, no que é realmente fundamental na análise das classes das sociedades capitalistas, A Tolice... e seu weberianismo demonstram sua incapacidade ao colocarem em patamar idêntico a burguesia e a pequena-burguesia. O que, em termos políticos marxistas, significa confundir os inimigos principais, algo terrível para qualquer luta de classes. Assim, não por acaso, afirma que o “acesso ao capital cultural sob a forma de capital escolar e herança familiar” garante a formação da moderna classe média brasileira, enquanto classe de “trabalho intelectual”, tendo por oposição o “trabalho manual das classes sem acesso significativo ao mesmo tipo de capital”.
Desse modo, A Tolice... afunila a luta de classes no Brasil à oposição entre a classe média e as classes “sem acesso ao capital cultural”, em vez de demonstrar que é a burguesia que domina a sociedade brasileira. Formada pelas frações financeira, agrícola, industrial, comercial e de serviços, tanto nacionais quanto estrangeiras, essa burguesia reproduz e multiplica seu capital, tendo por base seu modo de produção, circulação e distribuição. E se esforça por legitimar seu domínio geral através de um constante processo de destilação ideológica e de mistificação e opressão política, realizado por seus instrumentos de difusão cultural, propaganda travestida de informação, e opressão legal do aparato estatal.
Essa burguesia, pela própria natureza de seu sistema de produção, não pode viver sem seu contrário, o trabalhador desprovido da propriedade de meios de produção e cuja sobrevivência depende da possibilidade de vender sua força de trabalho por um tempo determinado para os proprietários de meios de produção. Portanto, é no contexto dessa contradição principal do sistema capitalista que as demais classes existentes na sociedade devem ser analisadas e classificadas, e que se pode ter uma apreciação mais aproximada das oposições e convergências entre elas.
E, portanto, estudar como tais oposições e convergências ocorrem, seja de forma visível ou invisível, de modo a descobrir as formas reais que assumem as lutas de classes, inconscientes e/ou conscientes.
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Wladimir Pomar
Escritor e Analista Político