Traição a quem?
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- Wladimir Pomar
- 19/09/2017
Vários petistas estão estarrecidos e indignados com o que chamam de “traição” do indivíduo Antônio Palocci ao delatar Lula no depoimento ao juiz Moro. Parecem não se dar conta de que o termo “traição” relaciona-se à entrega, ao inimigo, de uma situação verdadeira. Não há “traição” quando a informação dada ao inimigo é inverídica, ou quando alguém sustenta uma acusação inverídica contra alguém. Neste caso, há calúnia, injúria, difamação etc. etc.
O termo “traição” pode levar, portanto, à errônea suposição de que os fatos relatados por Palocci seriam verídicos. Assim, embora a verdade pouco importe para os promotores e juízes da Lava Jato, a eles valendo acima de tudo a convicção torta, a cunha de traidor pode levar confusão às forças que defendem Lula e o PT contra as acusações dos promotores e, agora, também do delator Palocci, que mostra sua verdadeira face de caluniador e difamador, além de cínico e outras qualidades pouco recomendáveis.
Por outro lado, é preciso buscar a verdadeira traição de Palocci em suas atuações passadas, enquanto dirigente do PT e membro dos governos Lula e Dilma. Ela poderia haver sido claramente detectada se as transgressões de Palocci, que vieram à luz e levaram à sua demissão daqueles governos, houvessem sido criteriosamente investigadas pela comissão de ética e pelo conjunto partidário. No entanto, como tais transgressões estavam relacionadas com a própria política de conciliação e de convivência com a burguesia levada a cabo pelos setores majoritários do PT, o que incluía fechar os olhos aos métodos corruptos da burguesia, Palocci era considerado “petista” e continuou tendo trânsito livre em vários círculos partidários e governamentais.
Portanto, agora pouco adianta indignar-se com as aleivosias que Palocci perpetrou contra Lula, ou com o cinismo e a desfaçatez com que as fez durante sua abjeta tentativa de realizar um acordo de delação premiada. Pouco vale frisar que tal delação adiantada seguiu o padrão das delações exigidas pelos policiais, procuradores e juízes. Ou que o objetivo do depoimento consistiu, unicamente, em obter o benefício ou o privilégio de curtir a pena de prisão por corrupção em seu nababesco apartamento de seis milhões de reais.
Também pouco vale dizer que Palocci não tem como provar as acusações contra Lula. Como pouco adianta reconhecer que os governos petistas cometeram erros, da mesma forma que vários outros governos de esquerda pelo mundo, e que tais erros poderiam ser compensados pelos imensos e extraordinários acertos do PT. Ou, ainda, acordar para a realidade de uma possível transformação do sistema judicial brasileiro em instrumento político-partidário capaz de condenar sem provas. Tudo isso pouco vale porque o erro consiste justamente em ter a ilusão de que os acertos compensam os erros, e que teria ocorrido realmente uma transformação do sistema judicial.
Tal ilusão é idêntica àquela que supunha que Henrique Meirelles estaria capacitado, no Banco Central ou no ministério governamental, a realizar um programa que correspondesse não tanto aos interesses dos trabalhadores, mas pelo menos aos interesses da média burguesia industrial, quando é sabido que ele é um funcionário graduado da grande burguesia financeira e agrícola. Ou à ilusão dos que acreditavam piamente que, se todos os representantes políticos da burguesia praticavam livremente o caixa 2 e outras ações não ortodoxas na captação de recursos financeiros empresariais para as campanhas eleitorais, os petistas também poderiam realizar ações idênticas sem quaisquer dores de consciência.
É verdade que a maior parte dos petistas não entrou em tais práticas. No entanto, não se opôs a elas como devia, ou não foi capaz de reverter tal prática, mesmo após comprovar, em 2005, que o sistema judicial, como parte do aparato do Estado burguês, sempre esteve pronto a condenar, mesmo sem provas, de acordo com os interesses das classes dominantes. Ainda mais quando tais classes dominantes são formadas tanto pela burguesia nativa quanto por setores das burguesias de potências estrangeiras, como é o caso do Brasil. Tal sistema judicial sempre esteve pronto para condenar sem provas, de acordo com os interesses daquelas classes dominantes.
A experiência da Lava Jato mostra que tal sistema é até mesmo capaz de cortar na carne da burguesia nativa, se isso for necessário para defender os interesses maiores das frações dominantes da burguesia contra os perigos representados por um partido socialista de massa, como o PT, e por uma liderança popular do porte de Lula. Em tais condições, ter nutrido a esperança de que Antônio Palocci demonstrasse até mesmo um mínimo de caráter após haver recebido uma pena de 12 anos de prisão é mais uma das ilusões que algumas lideranças petistas nutriam em relação a uma pretensa luta de classes civilizada em nosso país.
Pior será se não tirarem as conclusões adequadas e, no furacão que assola a vida política, social e econômica brasileira, continuarem repetindo o carma de que fazer autocrítica é o mesmo que dar armas aos inimigos. Na verdade, quanto mais lento e difícil for o caminho para esse acerto de contas construtivo com os aspectos negativos da atividade petista dos últimos 20 anos, mais pesaroso e destrutivo será explicar e fazer a crítica tanto da presença atuante de fenômenos tipo Palocci quanto da aplicação de políticas de ajuste exigidas pelo sistema financeiro e por empresas monopolistas.
Na história dos movimentos populares e de trabalhadores não há qualquer exemplo de partidos ou outras organizações que tenham sobrevivido sem passar pela autocrítica vigorosa dos próprios erros. Em sentido contrário, a história está cheia de exemplos de organizações que sucumbiram ao peso justamente dos próprios erros, apesar de suas tentativas de compensar tais erros com seus “acertos extraordinários”.
Basta repassar, mesmo superficialmente, a história da socialdemocracia e dos socialistas europeus, ou dos comunistas soviéticos e do leste europeu, e dos comunistas brasileiros. Todos eles, apesar de seus “acertos extraordinários”, foram levados à extinção, ou a uma participação insignificante na vida social e política, em virtude justamente de uma somatória de erros, em geral considerados secundários e insignificantes.
Assim, talvez tenha realmente chegado a hora de o PT acertar as contas não com seus acertos, mas com seus erros, na perspectiva de cumprir não a Carta aos Brasileiros, de 2002, mas as diretivas estratégicas de sua fundação, no início dos anos 1980.
Afinal, como diz o ditado popular, há males que vêm pra bem. Assim, a não totalmente conhecida falta de caráter de Palocci, tornada reluzente por sua ânsia de um acordo de delação premiada com a Lava Jato, pode representar o choque necessário para o PT retomar o caminho que se propôs ao ser fundado. É isso que suponho pensarem e desejarem milhares de militantes, não só petistas, mas também de outros correntes e partidos de esquerda.
Wladimir Pomar
Escritor e Analista Político