Correio da Cidadania

Notas sobre capitalismo e socialismo (3)

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Apesar de haver perdurado por um período tão longo quanto o escravismo, a agregação ainda hoje é simplesmente ignorada. Ou, na melhor das hipóteses, torna-se razão para batalhas teóricas sobre sua conceituação como semifeudal ou pré-capitalista. Seu papel, como freio ou o que quer que seja no desenvolvimento capitalista brasileiro não é considerado, embora tenha subordinado, por mais de meio século, cerca de 70% da população ativa brasileira.
 
Em outras palavras, a agregação, uma relação de produção não-capitalista, ou pré-capitalista, se tornou predominante desde o final da escravidão, represando a maior parte da força de trabalho nacional apenas para a produção de renda fundiária. Mesmo assim há quem acredite que seu esvaziamento, nos anos 1960 e 1970, ocorreu porque a burguesia queria criar um mercado de fabricação e importação de máquinas agrícolas para disputar o mercado mundial de commodities agrícolas. Todo o processo político e econômico ditatorial-militar de transformação ou modernização dos latifúndios em agroindústrias capitalistas teria se resumido a tal objetivo.
 
Quem pensa assim não entendeu, por um lado, o aprofundamento das mudanças estruturais nos capitalismos avançados estadunidense, europeu e japonês, que os levou a acelerar a exportação de capitais, ou seus investimentos no exterior. Suas empresas multinacionais intensificaram tais investimentos na construção e operação de plantas industriais em países como o Brasil. Porém, para efetivar tais investimentos era preciso contar com oferta abundante e barata de força de trabalho que, no Brasil, encontrava-se subordinada às relações de produção de agregação na agricultura. Os camponeses, parceiros ou rendeiros, estavam amarrados aos latifúndios, sem liberdade para vender sua força de trabalho no mercado.  
 
Em tais condições, as burguesias estrangeira e nacional-subordinada necessitavam de um Estado forte o suficiente para impor à classe latifundiária uma reforma que liberasse a força de trabalho agregada aos latifúndios, sem liquidar o monopólio da propriedade do solo. O golpe de 1964, que resultou na implantação da ditadura militar, vindo aparentemente para impedir a comunização do Brasil, mostrou imediatamente a que veio. Decretou o Estatuto da Terra e “obrigou” os latifundiários a uma modernização agrícola financiada pelo Estado.
 
Milhões de agregados rurais foram substituídos por máquinas e outros insumos agrícolas, criando uma das mais intensas migrações populacionais dos campos para as cidades que o Brasil conhece. Uma enorme força de trabalho barata inundou as cidades industriais ou em processo de industrialização. Com isso, inverteu totalmente a proporção entre as populações rural e urbana brasileiras num prazo inferior a 20 anos. E intensificou a urbanização caótica que hoje caracteriza as grandes e médias cidades do país, contendo cerca de 80% da população.
 
Ou seja, para promover o “milagre econômico” que procurava justificar sua ditadura e consolidar o desenvolvimento do modo capitalista de produção, subordinado, dependente e desnacionalizado, que havia sido intensificado desde os anos 1950, os governos militares “obrigaram” os latifundiários brasileiros a um processo de modernização agrícola diferente tanto do processo sulista estadunidense no século 19 quanto do processo inglês do século 14.
 
Os feudais ingleses transformaram-se em capitalistas pressionados pelas demandas de lã das manufaturas holandesas. O que os levou a expulsar milhões de camponeses das terras de cultivo feudais e comunais e criar a imensa massa desprovida da propriedade de meios de produção e de subsistência apta a vender sua força de trabalho por salário. Foi isso, aliado à intensificação mercantil global, que forneceu a principal base para a disseminação das relações de produção que caracterizaram o capitalismo em substituição às relações feudais. Já os estadunidenses escravistas sulistas foram transformados em agricultores capitalistas pela Guerra de Secessão que eliminou revolucionariamente as relações escravistas e impôs as relações assalariadas a todos os Estados da União norte-americana.
 
Os latifundiários brasileiros, porém, foram “forçados” a obter financiamentos do Banco do Brasil para expulsar os trabalhadores agregados e substituí-los por máquinas, fertilizantes químicos e trabalho assalariado. As áreas rurais foram, em geral, esvaziadas de trabalhadores agregados, libertados para se tornarem mão-de-obra barata para as indústrias estrangeiras e nacionais em processo de implantação. A maior parte dos latifundiários tornou-se uma fração agrícola da burguesia, embora mantendo, como os sulistas norte-americanos, a ideologia escravocrata e racista que acha a indústria um setor secundário da economia e a democracia, mesmo a liberal, um sistema subversivo.
 
Nessas condições, o desenvolvimento do capitalismo brasileiro diferencia-se brutalmente do desenvolvimento do capitalismo norte-americano. Primeiro porque este criou uma poderosa indústria nacional de bens de produção e de bens intermediários, construindo uma base segura para o desenvolvimento tecnológico e a produção competitiva dos bens de consumo em termos internacionais. Segundo, porque tal desenvolvimento nacional permitiu, já no final do século 19 e início do século 20, que o capitalismo norte-americano aproveitasse o anacronismo colonial espanhol para iniciar a prolongada disputa que viria a travar contra a hegemonia colonial e semicolonial britânica na América Latina.
 
Nas três primeiras décadas do século 20, o capitalismo norte-americano assistiu à hegemonia de sua fração industrial, com um intenso desenvolvimento de seu departamento de bens de produção (máquinas e tecnologias) e de destruição (armas pesadas), crescente fortalecimento de sua fração financeira e paulatino ingresso em sua fase de expansão imperialista, incluindo sua participação em todos os aspectos da Primeira Guerra Mundial. Não por acaso o capitalismo norte-americano se tornou o epicentro da crise mundial iniciada em 1929, que levou à Segunda Guerra Mundial e se prolongou até 1945, com imensa destruição de forças produtivas, incluindo mais de 50 milhões de vidas humanas.
 
O capitalismo brasileiro, porém, só conseguiu dar passos industriais concretos nos anos 1910, como decorrência não de forças internas inovadoras, mas dos cortes significativos que a Primeira Guerra Mundial impôs às importações de bens de consumo fabricados na Europa. O primeiro soluço industrializante resultou, assim, não da perspectiva da fabricação de bens de produção industriais como elemento essencial para a soberania nacional. Resultou da simples substituição de importações de bens de consumo. O único fator positivo desse soluço consistiu na emergência de uma pequena classe operária industrial em algumas cidades do país.
 
A esse ingresso torto na industrialização somou-se um segundo soluço industrializante nos anos 1930, comandado por frações latifundiárias que se opunham à hegemonia da cafeicultura paulista e a seu hábito de “socializar” os prejuízos causados pelas crises no mercado mundial de commodities agrícolas. A crise mundial capitalista, iniciada em 1929, agravou tal contradição ao ponto de levar a choques armados, materializados na vitoriosa “revolução liberal” e na fracassada e opositora “revolução constitucionalista paulista”.
 
As reformas “liberais” levaram o Estado assumir papel ativo na industrialização, seja criando empresas estatais, seja financiando empreendedores burgueses, e em não mais considerar as demandas econômicas e sociais da limitada força de trabalho assalariada como assunto policial (o que se materializou na formalização de leis trabalhistas). Mas a demanda de uma reforma agrária que liquidasse ou limitasse o domínio latifundiário e liberasse grandes contingentes da força de trabalho agregada jamais foi considerada.      
 
Apesar dessas limitações, o capitalismo “liberal” brasileiro sofreu constantes ataques do agrarismo latifundiário e dos países capitalistas desenvolvidos. Os primeiros continuavam considerando que o destino do Brasil era se tornar a lavoura do mundo, enquanto os segundos se opunham ao crescimento de concorrentes industriais. O desenvolvimento industrial dos anos 1930 e 1940 só contou com a transferência de tecnologias estrangeiras em virtude das contradições que levaram à Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, os debates entre agraristas e industrialistas retratam melhor do que quaisquer outros as bases das grandes desigualdades de desenvolvimento capitalista nos Estados Unidos e no Brasil.
 
A Segunda Guerra Mundial e o período posterior a ela permitiu ao capitalismo norte-americano dar saltos enormes na incorporação das mulheres à forca de trabalho ativa, na concentração do capital, na revolução tecnológica, na reestruturação de sua política de exportação de capitais, na centralização de capitais em empresas multinacionais e no aumento da exploração de países atrasados, colônias ou semicolônias.
 
Essa fase incluiu, ainda, o confronto de guerra fria com a União Soviética e países de democracia popular, assim como com os movimentos de descolonização, permitindo ao capitalismo norte-americano se elevar à condição de força hegemônica mundial capitalista. Nos anos 1970, porém, a centralização do capital em grandes corporações transnacionais e a tendência de queda da taxa média de lucro impuseram reformulações estruturais nas políticas de exportações de capital dos Estados Unidos e dos demais países capitalistas centrais, intensificando o processo de globalização do modo de produção capitalista.    
 
Na sociedade brasileira só começaram a ocorrer modificações significativas quando ela se confrontou com os crescentes investimentos promovidos pelas exportações de capitais do capitalismo desenvolvido, a partir dos anos 1950. De lá para cá, todas as reformas de sentido capitalista praticadas no Brasil, incluindo a modernização agrícola e a liberação da força de trabalho agregada dos latifúndios dos anos 1960-70, foram conservadoras. Mantiveram a economia brasileira subordinada, dependente e desnacionalizada, e totalmente à mercê das corporações transnacionais e de suas crises globais.
 
Em outras palavras, o capitalismo brasileiro só é nacional no sentido de que está implantado no seu território. No mais, as principais decisões sobre seu desenvolvimento estão localizadas em Washington, Berlim, Tóquio, Paris e Londres. Em tais condições, ao confrontar-se com as tendências reais do capitalismo, a exemplo da tendência de pauperização relativa e absoluta da força de trabalho, o capitalismo no Brasil não só manteve, mas agravou todas as desigualdades econômicas, sociais e políticas que herdou do escravismo e da agregação.

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Notas sobre capitalismo e socialismo (2)

Notas sobre capitalismo e socialismo (1)


Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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