Notas sobre capitalismo e socialismo (6)
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- Wladimir Pomar
- 05/12/2017
Como vimos, embora Estados Unidos e Brasil sejam países capitalistas, o grau de desenvolvimento de cada um deles é consideravelmente desigual, suas crises estruturais também sendo significativamente diferentes. Isso ficou ainda mais evidente a partir da crise de 2008, na qual ambos ainda estão afundados.
Os Estados Unidos encontram-se confrontados por uma crise de alto desenvolvimento, no qual o setor financeiro desempenha papel decisivo. Por um lado, prioriza a propriedade de títulos, patentes, direitos de propriedade intelectual, letras financeiras, e investimentos especulativos de vários tipos. Isso lhe permitiu, segundo relatório recente da UNCTAD, um brutal aumento de lucros excedentes, de 4% dos lucros totais entre 1995 e 2000, para 23% entre 2009 e 2015. A participação das grandes corporações empresariais nesses lucros passou de 16% para 40%.
Essa brutal acumulação capitalista numa fração diminuta da sociedade norte-americana, por outro lado, confronta-se com o crescimento da massa de desempregados estruturais, pobres, miseráveis e desencantados que fragmenta 99% de sua população. Essa situação já perversa combina baixa demanda com grandes cortes de investimentos públicos nos serviços sociais e com crescente repressão aos salários dos trabalhadores que continuam empregados. A recente aprovação de reforma no sistema tributário, privilegiando o empresariado, agravará ainda mais essa situação.
Afinal, quanto mais cresceu a acumulação de capital, mais intensa foi e continua sendo sua necessidade de subsidiar as corporações empresariais através de financiamentos, elisão de impostos, privatizações de bens públicos (na verdade, transferência de bens e recursos públicos para proprietários privados) e exportação de capitais para outros países, seja na forma financeira, seja na forma de plantas industriais segmentadas ou completas.
Em síntese, quanto maior foi o desenvolvimento tecnológico dos Estados Unidos, incluindo as inovações com patentes que transformaram os métodos das finanças, do comércio e do marketing em sistemas eletrônicos para elevar os lucros excedentes, mais intensa foi a desindustrialização, mais grave seu declínio econômico e político, e mais perigosa sua perda do papel hegemônico mundial, embora seu poderio militar e nuclear continue o maior do mundo.
Tais contradições foram postas a nu na crise de estagnação e de recessão iniciada em 2008, a crise mais prolongada e de recuperação mais lenta da era moderna, tornando um verdadeiro imbróglio político as eleições presidenciais de 2017.
Como um relâmpago em noite estrelada, primeiro fizeram emergir abertamente uma corrente socialista, capaz de disputar a indicação presidencial dentro do Partido Democrata. Depois, deram ao mundo a oportunidade de apreciar de modo explícito o grau de mistificação da famosa “democracia americana”, na qual somente disputam dois partidos e a minoria se sobrepõe à maioria, permitindo a eleição de um candidato com 8 milhões de votos a menos do que a concorrente.
Finalmente, tornaram dirigente do país uma fração política da grande burguesia, de viés nacional-capitalista, que proclama sua intenção de recuperar a hegemonia imperialista unipolar, subordinar ainda mais intensamente os países dependentes e impor aos países capitalistas avançados relações econômicas privilegiadas (ver discurso de Trump no Japão). Tudo isso tende a agravar as relações internacionais de forma perigosa, fazendo com que o mundo passe a viver situação ainda mais volátil do que a que precedeu a Segunda Guerra Mundial.
Com tudo isso, pode-se afirmar que os Estados Unidos aproximam-se cada vez mais daquela situação apontada por Marx, quase cento e cinquenta anos atrás, segundo a qual o desenvolvimento das forças produtivas da sociedade capitalista tende a se elevar a um ponto em que a propriedade privada se torna um estorvo não só para sua própria sobrevivência, mas também para a sobrevivência do sistema capitalista e de sua população. O que deve, cada vez mais, colocar a questão do socialismo como opção para sair da crise, colocar os avanços tecnológicos a serviço da população, preservando-a dos horrores da miserabilidade e da guerra.
O Brasil, por sua vez, encontra-se confrontado com os efeitos da crise global sobre sua economia desequilibrada e oligopolizada, com insuficientes desenvolvimentos industrial, científico e tecnológico, e com infraestruturas de transportes e de comunicações disformes e caras, subordinadas à lógica dos oligopólios estrangeiros. Entre 2003 e 2016 ocorreram tentativas de superar tais problemas através de políticas conciliatórias e de fomento da demanda popular, mas elas não suportaram as ondas destrutivas da crise global, nem a ofensiva reacionária desencadeada pelas diferentes frações da burguesia.
Na ausência de reformas estruturais que levassem à recuperação do parque industrial desmontado pelo neoliberalismo nos anos 1990 e a uma fase consistente de desenvolvimento econômico e social, a crise global fez com que a economia brasileira descambasse em recessão e desemprego, pioradas pela adoção de um programa de ajuste fiscal que se mostrou suicida. A burguesia, ao aplicar com sucesso um golpe judicial-parlamentar de impedimento do governo comandado pelo PT, e ao esquecer o fracasso de sua política neoliberal nos anos 1990, lançou-se rápida e sofregamente num programa neoliberal ainda mais intenso e mais radical de desnacionalização, privatização, dependência e subordinação às grandes corporações transnacionais.
Há um intenso esforço do sistema de propaganda da burguesia para demonstrar que o Brasil está saindo da crise e levando à recuperação do emprego por meio da compressão salarial, da privatização das empresas estatais e da abertura ainda maior, sem qualquer regulação, do mercado brasileiro aos capitais estrangeiros. Mas a experiência passada mostra que tal caminho é suicida. Tende a implantar um capitalismo ainda mais caótico, subordinado, dependente e desnacionalizado, cada vez mais oligopólico, com forças produtivas atrasadas em termos científicos e tecnológicos, e sem qualquer proporcionalidade entre a produção de bens de produção (em geral importados), bens intermediários e bens de consumo, industriais e agrícolas.
Os indicadores de 2015 já apontavam um quadro cavernoso. Mas ele tende a ser piorado de forma ainda mais veloz com as chamadas “reformas modernizantes” dos golpistas. Enquanto os 50% mais pobres da população brasileira apropriam-se de apenas 17,6% da renda gerada pelo trabalho, os 10% mais ricos apropriam-se de 60,7%. O coeficiente de Gini, cuja queda indica uma melhoria na inclusão social, voltou a um péssimo patamar, próximo ao de 1960.
Tudo isso indica, por um lado, que as políticas melhoristas de 2003 a 2015 não foram capazes de mudar radicalmente o profundo quadro de atraso econômico e de desigualdades sociais, políticas e culturais da sociedade brasileira. Por outro lado, que tal quadro deve ser ainda mais agravado com a repetição radical da política neoliberal dos anos 1990. A cifra de 60 mil mortes anuais por assassinato é apenas um dos indicadores mais evidentes da profundidade alcançada pelas contradições da sociedade brasileira, deixando para trás as mortes em vários países afundados em guerras civis.
Porém, diferentemente dos Estados Unidos, cujo capitalismo parece haver desenvolvido as forças produtivas até os limites de sua capacidade de reprodução ampliada, no Brasil as forças produtivas ainda estão longe de confrontar-se com tais limites. Enquanto lá é o próprio sistema que está colocando a burguesia contra a parede, aqui é a burguesia dos países capitalistas avançados e a burguesia brasileira alienada que funcionam como principais obstáculos ao desenvolvimento de seu próprio sistema.
Ao invés de esforçar-se para reconstruir um parque industrial integrado pelas conquistas científicas e tecnológicas modernas (microeletrônica, robótica etc.), a burguesia nativa lança mão de reformas trabalhistas e previdenciárias capazes de proporcionar superlucros a setores produtivos pouco dinâmicos, a exemplo de alimentos, artesanato e bens de consumo popular, nos quais os salários pesam mais nos preços e, em termos de concorrência internacional, representam o que os especialistas chamam de “competividade espúria”.
Algo menos radical foi realizado no período de vigência plena do neoliberalismo do governo FHC, entre 1995 e 2002. Naquela ocasião, a taxa de desemprego alcançou mais de 10% e a taxa de crescimento foi a menor dos últimos 60 anos do século 20. A balança comercial apresentou déficits constantes, e o endividamento externo e interno levou a uma crise que tornou o país ainda mais dependente e subordinado às potencias capitalistas.
Ao invés de reduzirem os custos da população e das empresas pequenas e médias, como prometido, as privatizações elevaram as tarifas de energia, transportes e outros serviços, enquanto a substituição dos empregos formais por modalidades precárias de trabalho reduziram a capacidade de compra dos trabalhadores. Pode-se deduzir daí que com a radicalização da política neoliberal deve aumentar a dependência, a subordinação e a desnacionalização.
Em tais condições, a variável mais provável para superar o caminho brasileiro aparentado ao sistema colonial pode residir numa participação mais ativa e direta de um Estado que tenha o povo como seu principal objetivo. O que alguns analistas estão chamando de “seguir o exemplo chinês”, cuja estratégia de desenvolvimento foi bem-sucedida, tendo por base não a compressão dos salários, mas políticas econômicas e sociais de desenvolvimento vigoroso e enriquecimento da população por ondas.
Ou seja, não pode ser um Estado keynesiano, cujo objetivo resida em salvar o capitalismo de seus próprios capitalistas, como fez Rooosevelt nos Estados Unidos, durante a crise dos anos 1930. Precisa ser um Estado que tenha como foco principal o duplo desenvolvimento das forças produtivas e da melhoria das condições de vida do próprio povo.
Em outras palavras, um Estado voltado não somente para regular os investimentos capitalistas, mas que tenha a propriedade dos instrumentos estratégicos de financiamento e de produção (bancos, empresas industriais e infraestrutura), capazes de concorrer no mercado com as empresas privadas. Isso pelo menos até que o desenvolvimento das forças produtivas esteja em condições de atender a todas as necessidades sociais e tenha reduzido consideravelmente a necessidade do trabalho vivo. O que nos leva a examinar o socialismo e as experiências socialistas, principalmente aquelas surgidas no século 20.
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Wladimir Pomar
Escritor e Analista Político