Notas sobre capitalismo e socialismo (12)
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- Wladimir Pomar
- 17/05/2018
Apesar da estreiteza e das limitações da democracia implantada no Brasil pela Constituição de 1988, não há dúvidas de que foi tal democracia que permitiu não só a existência e participação aberta de partidos socialistas e comunistas em sua vida política, mas também que alguns desses partidos, tendo à frente o PT, galgassem a direção de uma parcela do Estado nacional, o governo da República.
Esse fato inusitado da história brasileira levou pensadores progressistas a acreditarem na possibilidade do crescimento econômico capitalista ser orientado para a ampliação do bem-estar não só da burguesia, mas também da classe média (pequena-burguesia urbana e rural), da classe trabalhadora (fabril, rural, comercial e de serviços) e dos excluídos.
Para tanto, eles consideraram necessário enfrentar as inconsistências do regime macroeconômico e fiscal. E acreditaram possível recompor a capacidade de financiamento do Estado através da “contribuição” dos detentores da riqueza financeira, os principais beneficiários tanto do caráter regressivo do sistema tributário quanto das altas taxas de juros reais, das renúncias tributárias e da sonegação de impostos. Para tal “recomposição” seria possível e necessário ter um projeto econômico com vistas a um crescimento de longo prazo.
Tal projeto, por sua vez, exigiria a definição das frentes de expansão, da distribuição da renda e dos investimentos sociais. Funcionando como motores do desenvolvimento, os investimentos sociais seriam capazes de promover o crescimento econômico (aumento da produção de bens e serviços materiais e imateriais, inclusive para o consumo supérfluo) e induzir as mudanças estruturais (organização produtiva, mercado de trabalho, distribuição da renda e da riqueza e padrões sociais e ambientais) demandadas pelo país.
Portanto, os objetivos da política econômica deveriam ter como núcleo o desenvolvimento social, a distribuição da renda e da riqueza, a ampliação do acesso aos bens sociais, a preservação do meio ambiente, a melhoria das condições de trabalho, lazer, cultura e o acesso aos bens públicos. Os frutos da expansão seriam a ampliação do mercado interno e da infraestrutura e a forte demanda externa por riquezas naturais. Ou um capitalismo de bem-estar social.
Recapitulando: os principais motores do desenvolvimento seriam a distribuição de renda e os investimentos sociais, que alavancariam o crescimento econômico e a transformação social. A distribuição de renda fomentaria o mercado interno de consumo, induzindo os investimentos privados na ampliação da produção. Ou seja, a distribuição de renda e os investimentos sociais criariam um circulo virtuoso de investimentos privados na produção, gerando empregos e renda, que reverteriam em mais consumo, investimentos e renda.
Embora suscite controvérsias, é possível supor que tal estratégia foi a empregada pelo PT durante o governo Lula (2002-2010). Também é controversa a suposição de que ela tenha induzido um forte ciclo de crescimento. Mas há certa concordância de que ela se confrontou com o sistema tributário regressivo, com a concentração da riqueza e com uma política industrial voltada apenas para a promoção de setores, empresas e tecnologias real ou ficticiamente consideradas chaves para o desenvolvimento.
Ou seja, ela falhou na esperada recomposição da capacidade de financiamento do Estado através da “contribuição” dos detentores da riqueza financeira. O que levou seus autores a considerarem que, para ser eficaz, tal estratégia também precisaria dar solução aos problemas históricos da sociedade brasileira, a exemplo das “iniquidades” herdadas do regime escravista e das formas atrasadas, dependentes e patrimonialistas de inserção no sistema capitalista, todas resultantes da ausência de reformas democráticas estruturais, como a agrária, a tributária e a política, assim como da presença e atuação de um Estado que, em cinco séculos, teve regimes democráticos apenas por 50 anos.
Dizendo de outro modo, esses pensadores acreditam que uma estratégia capaz de gerar benefícios sociais através da constituição de um mercado de consumo de massa seja capaz de mobilizar apoios políticos consistentes para solucionar tais “problemas históricos” e realizar um ciclo virtuoso de desenvolvimento caso se comprometa a eliminar as formas atrasadas, dependentes e patrimonialistas do capitalismo nacional e de sua inserção no capitalismo global, realizando as reformas democráticas estruturais na economia, na sociedade e no Estado brasileiro, e eliminando o sistema tributário regressivo e a concentração da riqueza.
O que se deve perguntar é: será possível implementar tal estratégia e dar solução a tais problemas históricos com um Estado a serviço de um capitalismo atrasado, subordinado, dependente e desnacionalizado? Ou, havendo capacidade social e política para a solução desses problemas históricos, por que tal solução não pode levar ao socialismo? Afinal, quem tem força para resolver problemas dessa ordem também deve ter força para institucionalizar um sistema econômico-social que, mesmo mantendo formas capitalistas de exploração e produção, pode construir poderosas forças produtivas estatais e solidárias de caráter social.
Talvez por não se preocuparem em responder a tais perguntas alguns desses pensadores acreditam possível instaurar a “igualdade” na sociedade brasileira através da política de conformação de um mercado de massas. Não levam em conta, mais modestamente, que a esquerda está em defensiva estratégica, embora seja possível recuperar suas forças em algum momento, tendo como arma uma estratégia de desenvolvimento que seja fator de mobilização social e de transformação do Estado, de servidor dos detentores da riqueza financeira em servidor democrático do povo.
Para tanto também é preciso levar em conta que o atual caos urbano e a grande massa de excluídos pesam negativamente sobre qualquer estratégia de desenvolvimento. Ambos foram herdados da “reforma” agrícola conservadora que, nos anos 1960 e 1970, “libertou” os terceiros, rendeiros, foreiros etc. etc. dos latifúndios para atender à demanda de mão de obra dos investimentos externos industriais e dos projetos de infraestrutura para servir a tais investimentos. O predomínio econômico, social e politico do latifúndio exportador, primeiro escravista, depois parceirante ou agregante e, agora, agronegociante, só foi parcialmente superado quando o capitalismo avançado inverteu, após a segunda guerra mundial, sua política de exportação de capitais, investindo na industrialização do Brasil.
O Plano de Metas de JK fez parte dessa onda de mudanças estruturais do capital. O “milagre econômico” da ditadura militar fez parte de uma segunda onda. Em ambas, a economia brasileira sofreu um processo conjugado de industrialização e de desnacionalização. E, na segunda, os latifundiários foram modernizados e transformados em fração agrária da burguesia, enquanto os agregados dos latifúndios foram enxotados para as cidades e transformados em assalariados efetivos ou em força de trabalho excluída.
Com isso, uma série de novos problemas foram agregados aos antigos. À dependência das exportações primárias foi acrescentada a dependência da indústria implantada no território nacional aos produtos tecnologicamente avançados produzidos nas matrizes. E a dependência aos investimentos e aos empréstimos externos se transformou em forte subordinação. Todos os programas nacionais de construção infraestrutural subordinaram-se ainda mais aos interesses das empresas estrangeiras. Em especial após a crise da dívida externa do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, à dependência financeira foi acentuada a subordinação aos interesses de algumas potências capitalistas e de suas corporações transnacionais.
Foi essa combinação de dependência, desnacionalização e subordinação que impôs ao Brasil, nos anos 1990, aceitar passivamente as diretrizes macroeconômicas neoliberais do Consenso de Washington, decorrentes das novas reformas estruturais do capitalismo desenvolvido. Os programas de privatização e de transferência de plantas industriais levaram à desindustrialização e ao retorno do país à condição de atrasado.
Portanto, se quisermos caracterizar os problemas atuais do Brasil, o atraso, a dependência, a subordinação e a desnacionalização são itens importantes. Tais problemas também decorrem do fato de que o Poder de Estado, mesmo após a redemocratização de 1988, continuou a ser um condomínio fechado das frações nacionais e estrangeiras da burguesia, que sequer aceitam qualquer programa de constituição de um mercado de consumo de massa.
A elas interessa apenas um mercado para produtos de alta lucratividade e o fornecimento externo de matérias primas minerais e agrícolas. Portanto, evitam qualquer marco regulatório que defina políticas concorrenciais, de compras, de transferências de tecnologias, de planos de reinvestimentos, de transferências de lucros e dividendos, e de preços. Só lhes interessa políticas de salários baixos, exército industrial de reserva inchado, juros reais altos, câmbio valorizado e desonerações tributárias seletivas, que permitam lucros crescentes e tornem baratas as empresas nacionais que tentam navegar no mar de grandes corporações transnacionais.
Diante disso, qualquer estratégia que procure, a partir do aparato estatal, fomentar um ciclo de crescimento econômico a partir de inclusão social, emprego, renda, direitos humanos, ampliação do mercado interno e dos investimentos em infraestrutura pode não ter força social e política suficiente para ter sucesso. Portanto, a primeira questão a considerar quanto ao desenvolvimento no Brasil, mesmo simplesmente capitalista, é de como encarar e conduzir a luta de classes que ocorre na base da sociedade, de como democratizar o Estado e de como torná-lo um investidor efetivo no processo produtivo de geração de riqueza.
Ou seja, a estratégia de desenvolvimento deve ter como pressuposto a conquista efetiva da participação ativa dos excluídos, dos trabalhadores, das classes médias e de parte da burguesia no Estado. O que obriga tal estratégia a procurar fazer com que o desenvolvimento (crescimento e transformação) das forças produtivas nacionais se torne o motor capaz de superar o atraso, a subordinação, a dependência, a desnacionalização e as desigualdades que caracterizam a atual sociedade brasileira.
Somente um desenvolvimento desse tipo será capaz, neste momento, de aumentar exponencialmente a força numérica e qualitativa da classe operária, conquistar o apoio de parcelas significativas da pequena-burguesia e criar cisões consistentes no seio da burguesia, criando as condições sociais e políticas para efetivar reformas democráticas e populares no Estado e na sociedade.
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Wladimir Pomar
Escritor e Analista Político
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