Industrialização e desenvolvimento
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- Wladimir Pomar
- 25/07/2018
A linha de argumentação sobre a prioridade da industrialização no desenvolvimento vem sendo contestada recentemente no Brasil pelas campanhas televisivas que proclamam o agronegócio como a indústria riqueza principal do país. Elas afirmam que as grandes transformações registradas pela agricultura comercial, colocando à mostra um acelerado processo de capitalização e uso de novas tecnologias, teriam superado a antiga crítica ao latifúndio, à atividade primária e à proposta de utilizar os recursos imobilizados na agricultura para investimentos fabris.
Na prática, porém, a participação positiva do agronegócio em relação à industrialização brasileira só ocorreu em 1960-1970. Nesse período, a ditadura militar transformou a antiga agricultura latifundiária, que arrancava a renda da terra através da apropriação de parcela da produção dos lavradores agregados, em agricultura de latifúndios mecanizados com trabalho assalariado. Com isso, liberou a força de trabalho de meeiros, terceiros etc. para migrar para as cidades e trabalhar na indústria estrangeira que investia no país, medida essencial para o processo de industrialização e produção fabril.
Essa foi a única contribuição, forçada, da nascente burguesia agrária ao processo brasileiro de industrialização. Forçada porque para transformar os latifúndios atrasados em latifúndios capitalistas o Estado brasileiro de então, sob a tutela ditatorial militar, investiu muitos bilhões de dólares, através do Banco do Brasil.
De lá para cá, o Estado brasileiro tem financiado anualmente centenas de milhões de dólares para produzir soja, milho, café e demais produtos básicos do agronegócio destinados ao mercado internacional. A produção agrícola destinada ao consumo alimentar doméstico tornou-se uma tarefa exclusiva da agricultura familiar.
A remodelação da agricultura latifundiária resultou também numa concentração mais intensa das terras, na maior subordinação da produção agrícola aos ditames do mercado mundial de commodities primárias e de agrotóxicos, e num processo mais intenso de urbanização caótica e destruição do meio ambiente. Mas, ao contrário do desmonte do parque industrial neoliberal dos anos de 1990, a remodelação latifundiária de 1960-70 promoveu crescimento industrial e aumento significativo da classe operária industrial.
É verdade que tal desenvolvimento industrial foi desnacionalizante, obedecendo exclusivamente aos interesses das corporações transnacionais e deixando de lado um desenvolvimento soberano que articulasse os interesses nacionais às demandas sociais e às possibilidades da nova revolução científica e tecnológica.
O período neoliberal que se seguiu à crise dos anos 1980 e ainda perdura, apesar do interregno dos anos 2003-2010, apenas recolocou as demandas de desenvolvimento com as quais a sociedade brasileira se viu confrontada nos anos 1960.
Isto é, como desenvolver as forças produtivas de modo a superar o atraso, a subordinação, a dependência, a desnacionalização e as brutais desigualdades sociais. Alguns pensadores que se consideram social e politicamente radicais acreditam que a proposta de crescimento industrial como motor para o aumento do emprego e expansão do mercado interno e do consumo é ilusória porque, diferentemente do passado, generalizaram-se as tecnologias que reduzem a utilização da mão de obra.
Em outras palavras, esses pensadores aplainam o desenvolvimento capitalista, colocando países atrasados como o Brasil no mesmo nível dos avançados. Nestes, a criação de postos de trabalho já não acompanha o ritmo de investimento e seus investidores (bancos e corporações transnacionais) preferem investir em países e regiões de mão de obra mais barata para elevar sua taxa média de lucro.
Já os países atrasados possuem lacunas imensas em suas cadeias produtivas e podem combinar desenvolvimento industrial e geração de emprego em larga escala, desde que se livrem da combinação de subordinação e desnacionalização e reduzam sua intensa e extensa dependência externa. Algo que só será possível com uma profunda reforma democrática e popular do Estado.
Outros pensadores desenvolvimentistas, como os keynesianos, acreditam que a ação do Estado pode eliminar completamente as distorções do mercado. Esquecem que o mercado não é senão a arena de disputa entre os capitalistas pela divisão do lucro, e que, sob o modo de produção, circulação e distribuição capitalista, o Estado só tem alguma autonomia diante do mercado quando frações de classes ou classes não burguesas e/ou pequeno-burguesas alcançam predominância nos aparatos do Estado e criam instrumentos estatais de intervenção e disputa no mercado.
Só nessa situação o Estado pode abandonar o favorecimento aos grandes grupos capitalistas industriais e agrários, impor a eles a concorrência entre si e com empresas estatais, estabelecer políticas de desenvolvimento industrial que elevem o país à condição de desenvolvido científica e tecnologicamente, e realizar políticas macroeconômicas de câmbio, juros e inflação que mantenham o mercado sob controle e permitam uma redistribuição de renda que eleve o padrão de vida do povo.
Nessas condições, a industrialização pode superar a dependência ao agronegócio exportador, a subordinação aos investimentos estrangeiros sem regras e impositivos à importação de componentes tecnológicos fabricados nas matrizes.
As empresas estatais e privadas nacionais podem passar a impulsionadoras da
produção, da geração de empregos, assim como do desenvolvimento científico e tecnológico, reduzindo a brecha que separa as economias atrasadas das desenvolvidas.
A regulamentação dos investimentos estrangeiros deve impor a transferência de altas e novas tecnologias para as empresas nacionais, estatais e privadas. Sem tal imposição, as corporações transnacionais que investirem no país continuarão sendo apenas linhas de montagem de produtos finais, enquanto manterão em seus países de origem a produção dos componentes tecnológicos projetados por seus centros de pesquisa.
Há quem discorde dessa possibilidade. O Brasil e a América Latina teriam ficado atrasados em relação a países do Sudeste Asiático porque, na suposta estrutura hierarquizada do capital global, aqueles países teriam se adaptado aos esquemas de disciplina, profissionalização e custo da força de trabalho que permitiram a superexploração de sua força de trabalho necessária ao milagre exportador de manufaturas dos países daquela região.
Ou seja, parecem esquecer que a América Latina e o Brasil também possuíam e possuem uma força de trabalho barata (que os capitalistas se esforçam por tornar ainda mais barata) e permitem uma superexploração desses trabalhadores. Nem por isso conseguiram qualquer milagre exportador de manufaturados. Ou seja, embora reunindo condições de alta extração da mais valia, como os preços administrados monopolistas praticados pelas corporações transnacionais instaladas nos primórdios da globalização, nos anos 1970, os países da América Latina não contaram com Estados nem burguesias independentes e com disposição de lutar por interesses nacionais.
Assim, argumentar que o desenvolvimento capitalista e sua constante mundialização tem favorecido alguns países e penalizado outros é o mesmo que dizer tudo e nada dizer. A exportação de capitais para países atrasados, seja na forma exclusivamente financeira (até os anos 1940), depois na forma financeira e de investimentos industriais e, a partir dos anos 1970, na forma financeira seguida da transferência de plantas industriais completas ou segmentadas, conduziu a diferentes opções das classes dominantes locais, às vezes favorecidas pelas políticas erráticas dos capitalismos avançados.
Nos anos 1950-70, o Japão, os Tigres Asiáticos e o Brasil foram favorecidos pela política norte-americana de cerco à China e de guerra contra a Coréia do Norte.
Desde o final dos anos 1970, a China e diversos outros países asiáticos aproveitaram as políticas norte-americanas de confronto com a União Soviética e de intensificação das exportações de capitais na forma de relocalização de plantas industriais. O Brasil e outros países latino-americanos, ao contrário, ao invés de se aproveitarem dessas políticas para seu desenvolvimento, capitularam ao neoliberalismo do Consenso de Washington e afundaram na desindustrialização pela ação conjunta de suas burguesias e de seus Estados.
Uma das dificuldades em compreender esse processo consiste na suposição de que o desenvolvimento do capitalismo é desigual, mas combinado. A aproximação dos concorrentes atrasados à primazia dos países capitalistas avançados seria impedida por estes. Porém, se fosse assim, os Estados Unidos não teriam suplantado a Inglaterra, nem a China teria chegado aonde chegou. Na verdade, a história tem demonstrado que o desenvolvimento mundial capitalista é não só desigual, mas também descombinado.
Estados Unidos e Japão, por exemplo, já alcançaram uma capacidade produtiva e uma produtividade que pode atender às demandas do conjunto de suas sociedades. No entanto, quanto mais avançam no desenvolvimento científico e tecnológico que lhes propicia tal capacidade, mais reduzem a necessidade de contratar trabalhadores. Assim, aumenta a massa da força de trabalho sem emprego e pauperizada, gerando uma crise civilizatória que só pode ser solucionada com a socialização da propriedade.
Já os países atrasados, dependentes, desnacionalizados e socialmente desiguais como o Brasil só conseguirão elevar suas forças produtivas ao patamar em que possam atender às demandas do conjunto de suas sociedades se contarem com Estados que possuam empresas próprias cooperando e concorrendo com as empresas privadas nacionais e estrangeiras. Esta é uma via não só desigual, mas completamente descombinada em relação aos países capitalistas desenvolvidos.
Se as classes trabalhadoras e médias tiverem participação ativa na direção desses Estados e conquistarem a hegemonia sobre eles é até possível que consigam não só administrar melhor as contradições inerentes ao modo de produção capitalista, mas possam evitar aquela crise civilizatória através de uma transição socialista.
Wladimir Pomar
Escritor e Analista Político