Correio da Cidadania

Governo e Poder

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A grande imprensa tem divulgado algumas reações à atual ofensiva da direita fascista que merecem análise detida. Incluindo as de próceres tucanos, todas contribuem ativa ou passivamente para o avanço do fascismo em nosso país. No momento, porém, nos deteremos apenas na análise da postura simétrica de quem defende que a luta eleitoral por um governo democrático e popular deve ser substituída pela luta que leve à tomada do poder de Estado.

Tal posição nos remete a um retrospecto histórico da esquerda brasileira.
Retrospecto que se depara, inevitavelmente, com uma série de personagens classificáveis como “pendulares”. Por alguma razão que a própria razão parece desconhecer, tais personagens transitaram, durante sua vivência política de esquerda, do “esquerdismo infantil” ao “direitismo senil”, ou vice-versa, com tranquilidade e total ausência de senso crítico. Desse modo, tornaram-se incapazes não só de avaliar adequadamente seus erros do extremismo anterior, mas também de não enxergarem que mergulharam no extremismo que abominavam anteriormente, numa espiral contínua.

É verdade que muitas dessas personalidades “pendulares”, ao transitarem do “direitismo senil” ao “esquerdismo infantil”, mantiveram fidelidade ao povo e pagaram com a própria vida tal fidelidade. Por outro lado, o trânsito do “esquerdismo infantil” ao “direitismo senil” permitiu a alguns outros “transformistas” vidas de relativo sucesso político e econômico. Assim, para ter um quadro mais amplo desse fenômeno “pendular” talvez seja necessária uma releitura crítica da vida de vários personagens históricos brasileiros.

No momento apenas constatamos que a passagem de um extremo a outro do pensamento ideológico e político quase sempre teve como fulcro a dicotomia, ou a contradição, entre a luta pela ascensão ao governo e a luta pelo poder. Desde a consolidação do sistema capitalista o debate ou a luta sobre tal contradição sempre esteve presente na discussão de cada polo da relação capital/trabalho a respeito da participação ou não dos partidos trabalhistas, populares, comunistas e/ou socialistas na vida política dos povos.

Em países nos quais a burguesia e outras classes dominantes sequer admitiam a existência legal de partidos comunistas ou socialistas, quanto mais sua participação nos parlamentos e/ou nos governos, como no Brasil até 1945, tal discussão era obscurecida pela realidade da existência clandestina. No Brasil, os comunistas só passaram a ter vida legal, mesmo assim curta, entre 1945 e 1947 e, depois, somente após o final da ditadura militar. No mais, tiveram vida semilegal (entre os governos JK e Jango), ou de extrema clandestinidade. Sua participação parlamentar se dava, em geral, através de filiados atuando em partidos democráticos legais.

Em tais condições, a questão da conquista do poder através de processos revolucionários era considerada sem mediações. A participação ativa nos parlamentos e governos e a introdução de mudanças profundas no sistema econômico, social e político do país só pareciam passíveis de concretizar-se através da conquista do poder. A suposição de que a um partido com pretensões revolucionárias fosse permitido disputar eleitoralmente o governo central estava fora de cogitação em virtude de este partido estar legalmente impedido de participar de tal disputa.

É verdade que, particularmente após a Segunda Guerra Mundial, a participação comunista e socialista nos parlamentos e governos europeus começou a apontar para situações intermediárias. Mas isso não era levado em conta em países como o Brasil. Por um lado, porque tais partidos pareciam propensos a adaptar-se aos ditames dos Estados de Bem-Estar Social e a abandonar a luta por mudanças de qualidade na formação econômico-social. Por outro, porque as revoluções nacionais e socialistas do pós-guerra pareciam apontar em outra direção. Portanto, a conquista do poder através de processos revolucionários continuava a diretriz única, sem mediações.

É interessante que, no Brasil, isso era “verdade” até mesmo para os que consideravam revolucionário o “caminho pacífico” e tinham a burguesia nacional como aliada natural e indispensável. “Verdade” que foi acentuada pelo golpe militar de 1964, levando inúmeros defensores do “caminho pacífico” a se transformarem rapidamente em defensores do “caminho armado”. Isto, independentemente dos “de baixo” se disporem ou não a participar de tal caminho.

Com isso, a “tomada do poder” passou a ser considerada como resultado da decisão e atuação exclusiva dos revolucionários armados. Radicalizou-se a ideia de que a “conquista do poder” não possuía intermediações. A verdade prática de que revoluções transformadoras do poder existente só ocorrem quando os de baixo não suportam mais viver como até então e nada mais têm a perder e os de cima não conseguem mais dominar como até então foi jogada no lixo, substituída pelo jargão musical de que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Talvez não seja necessário relembrar que a ditadura se aproveitou desse erro de percepção para justificar as matanças e torturas que realizou e que esse período se tornou um dos mais ricos e trágicos em exemplos “pendulares”. Apesar disso, a vida real fez com que a retomada democrática seguisse por outros caminhos, com a participação ativa da nova geração operária e sindical de então, abrindo caminho para a participação popular, socialista e comunista não só nos parlamentos, mas também em governos municipais, estaduais e mesmo no governo central.

Essa “surpresa” no processo da luta política fez com que o pêndulo voltasse a agir e fizesse com que muita gente antes impregnada pelo “infantilismo esquerdista” da luta armada sem participação de grandes massas do povo migrasse incontinente para a “senilidade direitista”. Ou seja, passasse a praticar políticas de conciliação de classes, de aceitar contribuições empresariais de caixa dois com o argumento de que “se todos os outros fazem, nós também podemos”, de negociar cargos governamentais em troca de favores, e de gelatinizar a estrutura orgânica partidária e dar prioridade total ao trabalho institucional, abandonando o trabalho na base da sociedade.

Pior, apesar do choque de realidade de 2005, a nova “senilidade direitista” continuou crendo que aquela miscelânea política, articulada a políticas sadias de elevar o padrão de vida dos pobres, poderia perpetuar-se sem necessidade de reformas profundas no modo capitalista de produção e na organização do poder de Estado. Ela só se considerou destroçada quando a Operação Lava Jato, o golpe judicial-parlamentar de 2016 e a possibilidade de eleição de um fascista para a presidência da República se concretizaram, apesar do desarranjo que tais ações da direita fascista também estão causando nas hostes representativas da burguesia e da pequena-burguesia.

Nessas novas condições, o pêndulo de altos próceres da “senilidade direitista” da esquerda movimentou-se rapidamente para a “doença infantil do esquerdismo”, passando a proclamar a necessidade de que todos se transformem, outra vez e imediatamente, em “assaltantes” do poder de Estado.

Com isso, jogam no lixo a percepção da necessidade de disputar eleitoralmente o governo, mais não seja pelo fato inescapável de que os de baixo estão profundamente divididos e não demonstram estar convencidos de que nada mais têm a perder, e de que os de cima, apesar das dificuldades para governar, ainda conservarem instrumentos poderosos para continuar no poder.

Em vista disso, se os partidos de esquerda no Brasil quiserem sobreviver ao tsunami da direita fascista, mesmo que o candidato dessa direita seja derrotado, terão que agir estrategicamente. Por um lado para conservar suas forças atuais e retomar suas bases sociais naturais, os trabalhadores e os excluídos. Por outro, para defender arduamente as conquistas democráticas inseridas na Constituição de 1988, ampliando seus laços com a classe média e esforçando-se para criar cisões na burguesia.

Em outras palavras, o lema de “conquista do poder”, nas atuais condições políticas, não passa de bravata irresponsável. Portanto, todos os que possuem um mínimo de visão da realidade política precisam combatê-lo sem vacilação.

Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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