A questão do socialismo – I
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- Wladimir Pomar
- 16/04/2019
A ofensiva fascista contra o caráter nacional e democrático (mesmo formal) da sociedade capitalista brasileira, procurando retrocedê-la à condição semicolonial e ditatorial, trouxe à tona, embora de forma enviesada, a questão do socialismo. Elevado à condição de um dos principais inimigos do bolsonarismo, é apresentado como algo abominável, a ser repelido, derrotado e expurgado. Tudo Isso, embora parte da esquerda o houvesse relegado ao esquecimento.
É evidente que o bolsonarismo e demais correntes da direita fazem uma figuração totalmente distorcida do socialismo e de suas variantes. Por outro lado, para ser sincero, essa também é uma categoria econômica, social e política sobre a qual são comuns caricaturas diversas propaladas por correntes de esquerda, inclusive socialistas e comunistas.
Por exemplo, há quem acredite que o socialismo é capaz de ser criado por si mesmo. Bastaria aguardar o avanço das políticas sociais de melhoria do poder de compra e dos níveis de consumo da maior parte das classes sociais para que se ele concretize na sociedade, principalmente se tiver um forte caráter democrático. Setores da burguesia também acreditam nisso, o que os leva a combater as políticas sociais e pender para o bolsonarismo.
Outros, conhecedores da existência da contradição entre as relações de produção assalariadas e a propriedade privada das forças produtivas, acreditam que tal contradição levará naturalmente à conquista do apoio da maioria do povo e à implantação do caminho socialista. O que propiciaria a crescente incorporação social da economia solidária, seja dos setores artesanais das cooperativas de catadores de lixo e de outros tipos até as empresas estatais. A propriedade privada seria extinta por seus próprios defeitos.
Ou seja, há gente que mistura alhos com bugalhos, tanto para turvar a análise do desenvolvimento capitalista que tem por base a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção assalariadas, quanto para gerar ilusões. Ou, em sentido contrário, para desqualificar as políticas sociais que possíveis governos populares adotem para ampliar o emprego e melhorar o poder de consumo e as condições de vida dos explorados.
Na prática, a contradição entre as forças produtivas (força de trabalho, equipamentos, máquinas, tecnologias, ciências) e as relações de produção (assalariamento dos trabalhadores) não é a única a impulsionar o desenvolvimento do capitalismo. Tal contradição, em geral, é influenciada por outras contradições e também as influencia. Exemplos disso são a luta entre capitalistas e trabalhadores por aumento de salário e por outras reivindicações correlatas, a concorrência entre os próprios capitalistas (que os empurra para a inovação e o desenvolvimento tecnológico), e as diversas disputas com outras classes sociais presentes na sociedade, agravando-as e sendo agravadas por elas.
De qualquer modo, a contradição que opõe o desenvolvimento das forças produtivas a essa estreiteza das relações entre proprietários privados e trabalhadores assalariados é a principal. É ela que define as tendências reais do capitalismo como formação histórica. Portanto, à medida que se desenvolve, o capitalismo possui como positiva a elevação da produtividade das forças produtivas. No entanto, negativamente, a propriedade privada que lhe permite apropriar-se de taxas elevadas de mais-valia concentra e centraliza a riqueza em parcelas cada vez menores da própria classe capitalista ou burguesa.
No desenvolvimento dessa contradição, os países capitalistas mais avançados deram um salto estrutural a partir dos anos 1970. Por um lado, reestruturaram suas empresas como corporações transnacionais de altas tecnologias e intensificaram o desemprego estrutural. Ou seja, aumentaram a capacidade de produção ao mesmo tempo em que o desemprego afetava crescentemente não só os trabalhadores sem qualificação técnica, mas também os qualificados.
Ou seja, ao mesmo tempo em que criaram condições técnicas para o crescente atendimento das demandas sociais, reduziram brutalmente a capacidade desse atendimento ao criar massas de desempregados e tornar mais evidente o significado negativo da contradição entre as forças produtivas em constante desenvolvimento e a emergência de massas humanas excluídas do trabalho, do estudo e das condições básicas de vida.
Para piorar, os países capitalistas avançados, em especial o norte-americano, reestruturaram radicalmente sua exportação de capitais. Intensificaram não só a exportação de produtos financeiros especulativos, mas também de plantas industriais, segmentadas ou completas, para países de mão-de-obra mais barata. Com isso, intensificaram não só a transferência de dividendos para suas matrizes, mas também o desemprego em seus territórios.
Dizendo de outro modo: por um lado o uso de tecnologias (trabalho morto) ofereceu crescentes condições para atender a todas as necessidades humanas. Por outro, a apropriação privada desse trabalho morto elevou a concentração e a centralização do capital (vide a emergência das corporações transnacionais), intensificou a queda da taxa média de lucro, levou o capitalismo a procurar na multiplicação fictícia do dinheiro a fonte de elevação de sua lucratividade, ampliou a possibilidade de crises financeiras e estruturais, reduziu intensamente a necessidade de contratar força de trabalho humano (trabalho vivo) e ampliou as massas humanas desprovidas de condições de trabalho e de vida.
Basta reparar na atual situação do capitalismo norte-americano, com sua intensa substituição do trabalho vivo por trabalho morto, enorme acumulação da riqueza, grande parte fictícia, aumento brutal da miserabilidade da classe trabalhadora, liquidação crescente do mercado consumidor e geração de crises cíclicas destrutivas, como as que vêm abalando o mundo desde 2007-08. Deixado a si próprio, o capitalismo tende a gerar crises crescentes em seu modo de produção e pode levar a um colapso geral. E como se torna cada vez mais um modo de produção planetário ou global, também tende a levar o mundo e a espécie humana ao colapso.
Por outro lado, essas tendências capitalistas aguçam as contradições que opõem a classe dos trabalhadores assalariados e outros setores sociais à classe proprietária capitalista. Partindo da luta pela redução do grau de exploração e da dominação da burguesia, essa contradição pode culminar na negação da propriedade privada e sua substituição pela propriedade social, transformando o capitalismo numa formação econômico-social superada.
Em sociedades capitalistas avançadas, essa luta das classes exploradas pode transformar o modo de produção capitalista num modo que tenha por base o trabalho de máquinas tecnologicamente avançadas. A circulação de seus produtos pode atender a todas as necessidades sociais e sua distribuição pode atender às necessidades individuais de todos e de cada um dos membros da sociedade. Com isso, a espécie humana pode ser liberada para administrar o atendimento das necessidades sociais e individuais e aprofundar o trabalho científico, tecnológico e cultural.
Os socialistas científicos acreditavam que, historicamente, essa transformação deveria ocorrer primeiro nos países capitalistas avançados, o socialismo não passando de um breve interregno de transição do capitalismo para o comunismo. Mas isso não ocorreu assim. O socialismo se apresentou principalmente como sociedade de transição de países atrasados do ponto de vista capitalista, com variações muito mais complexas e variadas do que se supunha.
Aliás, o processo histórico de evolução e transformação da humanidade nunca foi linear. A passagem dos estágios primitivos da caça e pesca, da revolução agrícola e pecuária escravista para o intermezzo da servidão e da revolução industrial capitalista, resultou numa miríade de povos em estágios diferentes de desenvolvimento econômico, social e político, nem sempre os mais avançados saindo na frente.
Atualmente, a grande maioria dos povos já vive sob o guante do modo de produção, circulação e distribuição capitalista, mas suas formas e seus níveis de desenvolvimento são desiguais e descombinados. Algumas poucas nações capitalistas são muito desenvolvidas, permitindo que ajam de forma imperialista em relação às demais. A maioria ainda é atrasada, ou medianamente desenvolvida, e apresenta características de dependência, subordinação e/ou desnacionalização.
Mesmo assim, foi justamente a perspectiva de independência e desenvolvimento nacional, econômico, social e político que empurrou várias delas a adotar algum tipo de caminho socialista, que nada tem a ver com o marxismo cultural ou outros brincos ideológicos do bolsonarismo.
Wladimir Pomar
Escritor e Analista Político