Correio da Cidadania

As questões brasileiras e o socialismo

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Parece haver se tornado senso comum em alguns setores sociais e políticos a ideia de que as trapalhadas do governo protofascista e a derrubada da reforma bolsonarista e guedista da Previdência podem ser decisivas não só para a reanimação dos movimentos sociais, mas também para o processo de desenvolvimento do Brasil. Sugere-se que as derrotas das propostas e das ações do governo no parlamento teriam o condão de garantir uma retomada das lutas populares e reforçar o processo democrático.

Essa conclusão parece ser derivada, em parte, das análises de conjuntura que costumam cingir-se aos efeitos da situação internacional, às ações deletérias do governo e suas brigas internas, à disputa parlamentar e à situação econômica geral. Mas são incapazes de reportar pesquisas que indiquem como se encontram os chãos das fábricas, assim como as favelas e os bairros pobres. Ou, perguntando: como está o pensamento, a organização e a luta dos moradores dos aglomerados populacionais pobres, sejam trabalhadores, desempregados ou excluídos, assim como dos setores médios da população?

Contentando-se com os resultados genéricos de pesquisas que só abordam a superestrutura política e social, várias organizações políticas de esquerda têm sido incapazes de levantar em detalhe o que os trabalhadores e os excluídos, assim como a classe média, estão pensando da situação atual em seus mais diferentes aspectos: salários, jornada de trabalho, custo de vida, emprego, desemprego, moradia, estudo, saúde, organização sindical e comunitária, políticas governamentais etc etc.

Em outras palavras, ignoram o que faz, pensa, se organiza e luta a esmagadora maioria da população brasileira, que é o fator decisivo não só para mudanças táticas de resistência ao protofascismo bolsonarista, mas também para a efetivação de qualquer mudança estrutural de caráter democrático e popular em nosso país.

Nessas condições, os debates sobre a situação do Brasil e sobre as perspectivas de seu desenvolvimento continuam dominados pelas visões de parcelas governamentais, parlamentares, universitárias e das mídias liberais e/ou neoliberais. O que leva até mesmo os socialistas a se aterem à perspectiva distributivista, cuja eficácia estratégica no enfrentamento da pobreza e da miséria já se mostrou de baixa incidência e sujeita a mudanças bruscas.

É verdade que pela primeira vez na história brasileira, nos 15 primeiros anos do século 21, representantes de partidos democrático-populares, socialistas e comunistas puderam, através de processos eleitorais, galgar não só governos municipais, mas também governos estaduais e o governo central. E que isso permitiu reduzir, em certa medida e por algum período, a miséria social, embora o capitalismo caboclo dominante tenha se mostrado incapaz de criar um ambiente econômico mais dinâmico e um ambiente social menos degradante e menos corrupto.

Por isso, bastou que desarranjos no capitalismo global afetassem a economia brasileira, e que tais desarranjos fossem enfrentados de forma capenga e nitidamente neoliberal pelo governo central, para que a burguesia comandasse o golpe do impeachment e que sua extrema-direita fascista aproveitasse a situação para articular a prisão da principal liderança popular do país, galgar o governo central e proclamar o socialismo como principal inimigo.

Talvez mais do que os próprios socialistas, a burguesia se deu conta de que avanços econômicos implementados por governos e empresas estatais, em concorrência e em cooperação com outros países e também com empresas privadas, podem induzir mudanças sociais e políticas de caráter nacional, democrático e popular e colocar o capitalismo numa situação política secundária. Talvez por isso o bolsonarismo considere socialismo qualquer avanço social, embora isso pareça exagero.

Convém lembrar que, nos anos recentes, o debate sobre as alternativas de desenvolvimento no Brasil não chegou ao ponto de colocar o socialismo como alternativa. Mesmo durante os governos petistas, o país foi orientado somente no sentido de incentivar a demanda, através da transferência de recursos públicos para a mitigação da miséria e da pobreza. Tudo na esperança de que tal demanda induzisse um investimento capitalista indutor de desenvolvimento. Ou, como dizem alguns economistas, que o desenvolvimento econômico fosse induzido através de políticas sociais ativas em termos distributivos.

A prática mostrou que isso não incentivou os capitalistas a investirem no desenvolvimento. Num mercado de juros elevados, os ganhos financeiros foram muito mais atraentes. Em tais condições, o investimento na produção industrial, maior gerador de oportunidades de trabalho e criador de sua própria demanda, numa espiral complexa que só se inverte quando o investimento em tecnologias produtivas (trabalho morto) leva ao descarte dos trabalhadores assalariados (trabalho vivo), não ocorreu.

Tal situação só foi mitigada, em parte, porque a descoberta do pré-sal brasileiro e as demandas de sua exploração levaram os governos petistas a tentar implantar, com forte participação estatal, os setores industriais necessários para o atendimento daquela exploração. Ou seja, sem se darem conta dos desdobramentos futuros que isso poderia trazer, tais governos ingressaram meio capengas em mudanças de paradigma, transformadoras dos processos produtivos, um verdadeiro perigo para a continuidade da dependência econômica externa praticada pela burguesia desde sempre.

Assim, não por acaso, tais mudanças foram rapidamente captadas como um perigo iminente pelo capitalismo hegemônico na América Latina e por seus apaniguados nativos. Temerosos de que tal desenvolvimento levasse à multiplicação e ao reforçamento das empresas estatais, à mudança na política de juros, à desvalorização do câmbio e ao aumento da proteção à indústria nacional, seus principais representantes deram partida ao plano de liquidar a experiência da esquerda política à frente do governo central.

Com certa razão, concluíram que os beneficiados pelas políticas sociais, através da melhoria dos níveis de consumo, poderiam ser politizados, ganhar consciência daquelas mudanças de paradigma e colocar em risco a continuidade do domínio capitalista dependente e desnacionalizante. Na mente ideológica da burguesia cabocla é uma aberração socialista que grande parte dos brasileiros estejam convencidos de que uma sociedade justa é aquela na qual o Estado orienta o desenvolvimento industrial e tem condições de oferecer o máximo de serviços e benefícios públicos à sua população.

Não por acaso, desde que o capitalismo fez presença nas terras brasileiras, os comentaristas econômicos dos meios de comunicação escritos, falados e televisados se empenham em tentar demonstrar que as leis trabalhistas e previdenciárias, com seus impostos supostamente elevados, apenas encarecem os custos. E que, para solucionar tal problema, o Estado deveria afastar-se da economia em todos os sentidos.

No entanto, a experiência que retirou alguns milhões de brasileiros da miséria durante os 15 primeiros anos do século 21 é um indicador de que o Estado precisa atuar de forma ainda mais radical na área econômica para forçar a burguesia a investir nos processos produtivos e na criação de empregos. Para tanto, essa burguesia precisa ser acicatada por uma clara política de desenvolvimento industrial do Estado e por empresas estatais concorrentes, que também concorram entre si, para criar um desenvolvimento material, científico e tecnológico que leve o Brasil a se ombrear com as nações desenvolvidas.

Para a burguesia brasileira (e norte-americana, é lógico), assim como para o bolsonarismo, tal sugestão é nitidamente socialista. Nada mal, então, que as várias matizes socialistas brasileiras, acicatadas por essas reações protofascistas, voltem a pensar no socialismo como uma alternativa para os problemas estruturais do país. 

Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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