Sobre imprensa e lutas
- Detalhes
- Wladimir Pomar
- 17/07/2019
A guerra intestina que parece grassar no neoliberalismo caboclo, apesar de sua unidade em torno da reforma da previdência, da privatização das estatais e de outras medidas desnacionalizantes, antidemocráticas e antipopulares, provavelmente tem sua origem na presença e na ação do núcleo duro fascista da equipe governamental, que pretende obediência irrestrita e subordinação total.
A grande mídia escrita, radiofônica e televisiva, por exemplo, tem discordâncias tópicas com aquele núcleo, mas é impressionante sua capacidade de ignorar a existência e a posição das bancadas parlamentares petista e de outros partidos democráticos e populares.
Isto, apesar dos representantes desses partidos constituírem, em conjunto, grande parcela do atual Congresso e continuarem participando ativamente dos debates e votações parlamentares.
Ou seja, embora não consiga esconder que estamos diante de um governo daninho, cheio de conflitos internos, e com perda de popularidade, não está na pauta dessa mídia ouvir a opinião dos representantes das correntes de esquerda. Em vários casos, ela até chega a fazer uma cobertura razoável. No entanto, esconde que as reformas neoliberais são daninhas para a maioria da população e, em geral, opera para construir uma unidade reacionária em torno delas.
Uma unidade que, por um lado, permita aprovar com pouca disputa o conjunto das medidas neoliberais e, por outro, construa um futuro que não dê chance aos partidos democráticos e populares de se cacifarem para a substituição eleitoral do neofascismo tupiniquim.
É verdade que, em grande parte, isso ocorre porque tanto o governo quanto suas dissidências internas ainda não estão enfrentando uma luta social mais incisiva. Que, aliás, só existirá quando as grandes massas pertencentes à classe trabalhadora, à classe excluída e à pequena-burguesia derem um salto em sua insatisfação e se apresentarem no cenário político como uma força em luta, a exemplo do que ocorreu no final dos anos 1970 e nos anos 1980.
Também é verdade que as manifestações populares contra os cortes na educação e a greve geral do 14 de junho tiveram uma amplitude não esperada pelo governo e seus aliados. E que tais manifestações foram muito superiores aos passeios bolsonaristas e moristas, colocando a nu o câncer que corrói a coligação que levou Bolsonaro e Moro ao governo. Apesar disso, embora não tenha podido esconder que as manifestações contrárias ao governo foram em número muito superior de cidades e participantes, a grande mídia se empenha em esconder as disparidades no número de participantes.
Temos agora o caso das revelações sobre a ação coordenada da equipe da Lava Jato, cuja função principal consistiu em se tornar o centro da estratégia para destruir Lula e o PT. Ou, pelo menos, de retirar Lula do pleito à presidência não só em 2018, mas por muitos anos. Como afirmamos em artigos anteriores, para ter sucesso, tal estratégia precisava não só realizar uma ação coordenada entre Polícia Federal, Promotoria Pública e Juiz, mas também atingir parte da burguesia e de seus representantes políticos (estruturalmente corruptos) de modo a demonstrar “isenção”.
“Isenção”, mesmo apenas formal, era e é uma questão estratégica que exigia não só coordenação entre juiz, promotores e policiais, mas também um comando centralizado e um acordo de que os delatores teriam vida recolhida, mas faustosa, de modo a não criar fraturas profundas com o conjunto dos endinheirados. Também já era evidente, mesmo antes das revelações da Intercept, que a operação Lava Jato contava com o apoio de órgãos de inteligência do governo dos Estados Unidos. Apoio que incluía a contrapartida da Lava Jato prejudicar a Petrobras e o complexo de empreiteiras de construção civil frente às empresas daquele país. E, também, a perspectiva de contar com alguns dos milhões ou bilhões de dólares recuperados para construir um organismo privado, sob comando de procuradores e juízes, para a luta ideológica e política no Brasil.
Os inúmeros sinais dessa coordenação e entendimentos políticos da Lava Jato, ao arrepio das leis brasileiras, agora vieram a público através do vazamento das conversas telefônicas entre os procuradores e entre eles e o juiz Moro, que alega ter sido hackeado. Embora não se canse de repetir tratar-se de uma ação criminosa, para ser coerente, Moro deveria decretar sua própria prisão. Afinal, ele cometeu uma ação criminosa ao hackear e tornar pública uma conversa telefônica entre a presidente Dilma e Lula sobre a nomeação deste para a Casa Civil.
A rigor, uma imprensa comprometida com a verdade teria condições de captar os evidentes sinais ilegais da ação da Lava Jato, investigá-los e publicar seus resultados. Bastaria um esforço consistente de pesquisa e acompanhamento das ações da Polícia Federal, Promotoria Pública e Justiça Federal para vislumbrar e trazer a público o que estava ocorrendo. No entanto, ao contrário do que supunha um ex-dirigente petista, que considerava a Globo o principal órgão de comunicação do PT, ela e a maior parte da grande mídia fazem parte da conspiração executada pela Lava Jato.
Nesse sentido, é incompreensível que a direção do PT tenha sido incapaz de fazer uma análise consistente do que estava ocorrendo. Num sinal de incompetência, mesmo com vários de seus dirigentes envolvidos nas denúncias de corrupção, foi incapaz de investigá-los e julgá-los pelos Estatutos partidários, talvez na crença de que a Lava Jato estava acima dos interesses privados que há muito dominam o poder de Estado no Brasil.
Não se compreende como a direção petista custou a se dar conta da estratégia da Lava Jato, apesar de haver sofrido a ofensiva do “mensalão” em 2005. Também é incompreensível que essa direção não tenha elaborado uma estratégia clara de combate à corrupção (interna e externa), apesar das evidências de sua ocorrência generalizada e das denúncias de que alguns de seus dirigentes estarem envolvidos em operações que iam muito além do caixa dois.
Além disso, como tal combate se tornara uma das principais preocupações de grande parte da população, é incompreensível que até hoje essa direção tenha sido incapaz de realizar uma investigação efetiva sobre os dirigentes petistas acusados de corrupção (caso explícito de Palocci), de fazer uma autocrítica e de elaborar uma estratégia a respeito.
Por outro lado, todas essas questões poderiam ter sido discutidas se, no campo do direito à liberdade de imprensa e de informação, os partidos democráticos e populares houvessem reavaliado sua política de informação, propaganda e agitação, e realizado uma reforma que lhes permitisse romper o mutismo da imprensa burguesa através de uma imprensa própria e de massa.
Talvez tivesse sido possível pressionar as investigações internas e externas para esclarecer as denúncias de corrupção, assim como evidenciar os inúmeros conflitos presentes no interior da coalizão que forjou a Lava Jato, o impedimento de Dilma, o golpe de Temer e a ascensão de Bolsonaro ao governo central. E, mais do que tudo, desmascarar com afinco as ações desnacionalizantes, fascistas e antipopulares da estratégia que catapultou Bolsonaro.
A grande imprensa jamais entrará no cerne dos problemas que corroem a coligação que elegeu Bolsonaro, incluindo os partidos que conformam o chamado centrão parlamentar, a equipe militar, que ocupa grande parte do governo, e a esmagadora maioria do empresariado, tonta com a morosidade e os desarranjos reformistas do governo. Isso pode até levá-los a se livrarem de Bolsonaro e substituí-lo pelo vice. Mas seria um engano supor que isso mudará a política desnacionalizante, entreguista e antipopular e mudará as tendências protofascistas da direita dentro e fora do governo.
Somente uma imprensa democrática e popular pode suscitar as experiências históricas (Jânio, Costa e Silva e Collor, por exemplo), em que a grande burguesia chegou ao ponto de se desfazer de seu representante momentâneo à frente do governo, mas jamais jogou seus interesses e objetivos no lixo da história. Colocou em seu lugar alguém que não só não representava um rompimento com o rito constitucional (democrático formal ou ditatorial), como manteve os objetivos básicos da coligação anterior.
Em vista disso, supor que uma eventual corrosão ou queda do governo Bolsonaro, em virtude de suas trapalhadas, possa por si só desfazer a coligação que lhe dá suporte, é uma ilusão. Os conflitos no bolsão bolsonarista só serão estimulados de modo consistente se as bases da sociedade brasileira (trabalhadores assalariados, excluídos do exército industrial de reserva e pequenos proprietários) forjarem uma grande unidade de luta. O que provavelmente só ocorrerá se houver uma revisão séria das estratégias que orientaram a esquerda política dos anos 1990 para cá.
Dizendo de outro modo, é fundamental compreender que a derrota nas eleições de 2018 não foi simplesmente eleitoral, mas das estratégias políticas da esquerda, em especial da representada pelo PT. Tal derrota englobou não só a perda do mandato presidencial através de um processo de impedimento, mas também as condenações de Lula e de outros dirigentes petistas através de processos supostamente anticorrupção. E trouxe à tona um esgarçamento das relações tanto entre as direções petistas e os militantes partidários quanto entre tais direções e militantes e os grandes contingentes da base da sociedade brasileira.
Portanto, para enfrentar a ofensiva protofascista, apesar das trapalhadas que a caracterizam e de suas possíveis dissenções, é preciso reiterar que não basta contar com tais desarranjos. Isto principalmente porque aquela ofensiva contém um poder destrutivo considerável contra o que denominam “marxismo cultural”, “comunismo” e “socialismo”.
Seus seguidores podem até ser alertados de que Hitler teve que se suicidar num bunker, mas isso talvez não faça efeito algum se não for acompanhado de uma poderosa ofensiva das lutas sociais.
Ofensiva social e política democrático-popular que só ocorrerá se houver uma profunda guinada no trabalho de base das organizações políticas de esquerda, multiplicando em muito a capacidade de mobilização demonstrada no 15 de maio e no 14 de junho.
Guinada que, além de englobar as lutas pelos direitos econômicos, sociais e políticos do povo pobre e intermediário, que incluem empregos, salários, moradia, saneamento, assistência médica e preços condizentes, assim como direitos democráticos de organização e de participação popular na vida política, precisará incorporar as bandeiras da independência, da soberania nacional e do desenvolvimento econômico soberano.
Wladimir Pomar
Escritor e Analista Político