Correio da Cidadania

Um ano pandêmico

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Segundo turno frustra esquerda em três capitais | Notícias e análises sobre  os fatos mais relevantes do Brasil | DW | 29.11.2020
Desafortunadamente, 2020 transcorreu como um ano pandêmico, não só relacionado ao Covid19, mas também aos estragos econômicos, ao aprofundamento da miséria social, ao aumento da devastação amazônica e pantaneira, aos ataques à cultura, à continuidade sistêmica da corrupção, e às tentativas de mobilizar golpes militares ditatoriais e disseminar a ignorância fascista.

O governo bolsonarista, por incrível que pareça, orgulha-se de ter feito com que o Brasil seja o segundo colocado na devastação humanitária da pandemia que atingiu mais de seis milhões e matou cerca de duzentos mil brasileiros, somente sendo superado nesse ranking pela performance trumpista nos Estados Unidos.

Ele também continua trombeteando que a economia vai bem, apesar da conta financeira da pandemia virótica chegar perto de um trilhão de reais, e do déficit público ameaçar superar o valor do PIB. Além disso, as divergências entre os vários setores econômicos burgueses e governamentais quanto à cobrança de juros, à transferência de lucros, à desoneração das folhas de pagamento das empresas, às fontes de financiamento dos programas sociais, assim como às privatizações e reformas prometidas por Guedes, às leis de falência, e à extinção de programas sociais, também tornaram-se endêmicas.

O que levou a composição direitista a sofrer constantes divisões. O bolsonarismo propriamente dito também se dividiu, fracassando na tentativa de criação, organização e legalização de um partido “direitista puro sangue”, e passando a enfrentar crescentes dificuldades em espalhar “fake news” e torná-las confiáveis. Ou seja, durante 2020, as diversas facções direitistas não conseguiram manter a aliança forjada durante a campanha eleitoral de 2018, que tinha como objetivo principal não só derrotar o PT, mas liquidá-lo.

Tais facções têm fracassado na tentativa de manter uma composição que englobe não só os pró-fascistas governamentais, mas também as correntes de direita que se consideram “civilizadas” e, em geral, funcionam como um “centrão”. Essa direita, composta por uma gama de partidos e blocos de interesse econômico e político a serviço das burguesias nacional e estrangeira atuantes no Brasil tem como eixos centrais a efetivação das políticas econômicas neoliberais e a destruição parcial ou total do PT e de outras correntes de esquerda, mas não concorda com o retrocesso político ditatorial ou semiditatorial pretendido pela direita bolsonarista.

Embora tenha apoiado firmemente a eleição do “capitão”, ou “mito”, o centrão agora coloca-se contra uma pretendida ditadura bolsonarista, que monopolizaria todos os “negócios” políticos. E, em vista disso, age no sentido de enquadrar o bolsonarismo nos limites econômicos do neoliberalismo e nos limites políticos e jurídicos da Constituição de 1988.

No lado oposto, a esquerda política não só continuou dividida entre diferentes partidos e correntes, como teve acirradas suas divergências, tanto em virtude de questões ideológicas, quanto de interesses e linhas políticas, estratégicas e táticas. Por exemplo, vários dos partidos e correntes políticas da esquerda, inclusive autodenominados “socialistas”, ainda não conseguiram explicitar sua estratégia de luta e de reformas que tenham como núcleo um desenvolvimento econômico, social e político de caráter socialista ou mesmo socialdemocrata.

Algumas dessas correntes parecem acreditar na possibilidade de superar o capitalismo subordinado e dependente brasileiro, de viés semicolonial, sem superar o capitalismo como modo de produção ou, ao menos, subordinando-o a uma linha de orientação estatal. Outras parecem acreditar possível civilizar, enquadrar e ou estimular o capitalismo através de políticas de redistribuição de renda e de organização solidária do trabalho.

Ou seja, do ponto de vista estratégico, continua presente uma lacuna teórica considerável em grande parte da chamada “esquerda” política. Nessas condições, não é estranho que tenham continuado divisões diversas dentro de suas correntes em relação à questão chave do trabalho político no seio das camadas populares da sociedade brasileira, assim como do desenvolvimento econômico e social do país.

O PT, em especial, que durante os anos 1980 a 2000, construíra laços relativamente sólidos com tais setores sociais, desde então substituiu esse trabalho estrategicamente central pela atividade institucional em governos e parlamentos, esgarçando tais laços perigosamente, como ficou evidente nos resultados que obteve durante as eleições municipais de 2020.

Além disso, as correntes da esquerda política continuaram, em geral, dando uma atenção secundária às questões econômicas estruturais da sociedade brasileira. Exemplos disso são a ausência de crítica ao processo de desindustrialização e de subordinação aos oligopólios industriais e agrícolas, à agricultura dependente do mercado externo e sem quaisquer sinais de industrialização de insumos vegetais, à construção de uma infraestrutura distorcida que liquidou quase todo o sistema ferroviário, à corrupção endêmica etc. etc. etc.

Qualquer dúvida a respeito, bastaria perguntar a qualquer dirigente político da esquerda que linha deveria ser adotada para retomar a industrialização nacional como condição para elevar a geração da riqueza nacional, proporcionar mais empregos e reduzir a miséria de forma mais consistente.

Em geral, embora a esquerda tenha estado no governo central e em diversos governos estaduais e municipais, tal linha não existe. Por exemplo, é conveniente notar o interessante plano de articulação dos governos dos estados do Nordeste, no qual constam diversos planos setoriais de desenvolvimento econômico, mas não existem planos de desenvolvimento industrial, sequer em nível microempresarial.

Em vista de tudo isso, os resultados eleitorais das esquerdas em 2020, embora não tenham sido totalmente desastrosos, indicam uma tendência perigosa de distanciamento de suas bases sociais e de falta de uma estratégia clara de desenvolvimento econômico, social e político. Na experiência histórica brasileira, tal tendência já esteve presente em outros momentos e, ao não ser tratada adequadamente, conduziu correntes políticas de esquerda, antes em ascensão, a situações perigosas e a desaparecimentos.

Portanto, os acontecimentos de 2020 também indicam as lacunas profundas dos partidos e correntes de esquerda da sociedade brasileira. Ou seja, se tais partidos e correntes não mergulharem na pesquisa profunda, no debate, e na ação conjunta com a base popular dessa sociedade, de modo a dar solução aos problemas do desenvolvimento econômico, social e político do país, dificilmente conseguirão superar a superficialidade com que várias delas enxergam a sociedade brasileira, superação que é condição básica para constituir uma sólida frente conjunta.

Ou seja, os acontecimentos de 2020 não apontaram uma perspectiva promissora. Mas também trouxeram à tona, mais do que nos anos anteriores, desafios que podem servir de acicate poderoso para mudanças transformadoras. A questão reside em saber se as diversas ou algumas das correntes de esquerda presentes no Brasil serão capazes de superar suas debilidades e construir um novo caminho para o país. O que, para início de conversa, depende delas reconhecerem os próprios erros e delinearem os caminhos para sua superação.

Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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