Correio da Cidadania

A questão do socialismo

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Das catacumbas de Chicago, uma política de exclusão social - a história  cobrará seu preço - GGN
O socialismo volta, paulatinamente, a ser um tema prioritário de debate, à medida que os países capitalistas enfrentam problemas profundos no enfrentamento da pandemia, e em que alguns deles tendem a fazer intervenções estatais para recuperar a economia e os empregos. Não será surpresa se Biden for acusado de “socialista” por pretender taxar as grandes fortunas e investir em programas sociais que minorem as condições de pobreza dos trabalhadores excluídos do mercado de trabalho em virtude da crescente produtividade industrial norte-americana.

De qualquer modo, para início de conversa sobre o socialismo, não se pode considerá-lo uma invenção teórica, um sonho, ou uma utopia humanitária. Ela está intimamente associada à prática existencial do capitalismo. À medida que essa formação histórica eleva a produtividade de suas forças produtivas, podendo atender a todas as necessidades sociais, ela gera, ao mesmo tempo, uma contradição chave: um forte desemprego tecnológico, com uma queda brutal na efetivação da circulação das mercadorias que produz.

Com uma estupenda capacidade produtiva, o capitalismo torna-se incapaz de atender às necessidades sociais básicas, em virtude da manutenção da propriedade privada e da busca do lucro. O aumento da produtividade cria uma massa humana sem condições de vender sua força de trabalho e, em consequência, sem condições de consumir as mercadorias produzidas pelo capital. Em tais condições, Marx e Engels concluíram que a superação de tal contradição só pode ocorrer numa nova formação econômica, social e política que, extinguindo a propriedade privada dos meios de produção, agilize um crescente igualitarismo na administração das forças produtivas e na distribuição dos bens necessários à vida humana.

O socialismo, desse modo, consiste em realizar o processo intermediário para a superação humanitária daquela contradição do capitalismo desenvolvido. Por outro lado, um dos problemas desse processo, descoberto pelos dois pensadores alemães, consiste em que o desenvolvimento capitalista dos países tem sido historicamente muito desigual. Diante das nações muito desenvolvidas, a exemplo dos Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França e Japão, encontram-se inúmeras nações e povos atrasados em tal desenvolvimento, a exemplo do Brasil, Chile, Gana, Tailândia etc. etc.

Teoricamente, os povos economicamente mais desenvolvidos deveriam chegar ao ponto máximo daquela contradição antes dos mais atrasados. No entanto, do ponto de vista prático, para embaralhar tal processo, a história real apresentou situações de crises profundas, com tentativas de transição socialista, em países de pequeno desenvolvimento capitalista. Neles, as contradições básicas ainda estavam atadas à predominância de relações feudais, como foram os casos emblemáticos da Rússia e da China, ou da subordinação colonial, nos casos da China, Vietnã e Coréia, ou ainda a desenvolvimentos capitalistas mais lentos, como no leste europeu.

Na Rússia e na China, o feudalismo ainda estava fortemente presente na agricultura e na organização política, e a indústria capitalista era secundária. No caso chinês, havia o agravante de que áreas importantes do país se encontravam sob jurisdição de potências colonizadoras, além de sua indústria ser fraca e sob forte domínio estrangeiro. Nessas condições, as contradições básicas das sociedades russa e chinesa ainda não eram as contradições capitalistas, mas as contradições feudais e coloniais, embora os trabalhadores assalariados, mesmo minoritários, fossem uma das principais bases sociais e políticas para a luta pela superação do feudalismo e do domínio colonial.

Por outro lado, ambos os países foram assolados pelas guerras imperialistas fomentadas pelo capitalismo desenvolvido, seja pela repartição dos países coloniais, ou pela transformação de países independentes em colônias. Tanto na Rússia quanto na China foram as guerras desse tipo que criaram as condições para a eclosão de revoluções socialistas e democrático-populares.

Dizendo de outro modo, as forças revolucionárias desses países atropelaram a história, embora em momentos muito diferentes (Rússia, em 1917; China, em 1949), imediatamente após guerras imperialistas mundiais. Ou seja, a questão do socialismo eclodiu antes que as condições materiais para tal transição houvessem amadurecido. Em ambos os países, o modo de produção capitalista ainda não havia desenvolvido sua contradição de transformação.

Lênin teve a perspicácia de reconhecer isso imediatamente após a revolução russa de 1917, propondo a criação da NEP (Nova Política Econômica), que combinava o desenvolvimento do mercado com a orientação estatal. Experiência que findou em 1928, em grande parte em virtude da preparação de uma nova guerra mundial, tendo o imperialismo alemão como carro chefe. Embora parecesse voltada para destruir a experiência soviética, na verdade a nova guerra de expansão do nazismo pretendia, acima disso, uma nova divisão colonial do mundo.

De qualquer modo, no caso soviético, o Estado se viu compelido a assumir plenamente a preparação industrial para tal enfrentamento, levando-o a estatizar todo o processo econômico. Estatização que, com o sucesso bélico contra o nazismo, continuou no pós-guerra, na suposição de que o planejamento econômico centralizado seria capaz de resolver todos os problemas da transição socialista.

A experiência histórica mostrou que tal suposição era errônea. A União Soviética e os países democrático-populares do leste europeu naufragaram, como países de transição socialista, muito mais por sua incapacidade de atender às demandas comuns da vida de seus habitantes do que por outros motivos.

No caso chinês, houve inicialmente a perspicácia de sugerir um caminho “democrático popular”, pré-socialista, levando em conta que parte da burguesia nacional chinesa apoiava tanto a guerra de libertação contra o imperialismo japonês quanto a guerra civil revolucionária contra o domínio feudal na agricultura. Porém, embora a reforma agrária tenha sido a principal marca da primeira fase da República Popular da China, logo depois a burguesia nacional chinesa tentou impor seu próprio caminho, levando a uma disputa acirrada em torno da industrialização, do controle dos preços e de diversos outros itens do processo econômico e social.

Nessa disputa, os socialistas chineses foram levados a adotar várias das experiências soviéticas, tanto na agricultura – fazendas coletivas, comunas populares – quanto na indústria. Para elevar a produção de bens industriais e reduzir o desemprego, intensificaram a estatização industrial e criaram o sistema 3:1 (um trabalho / 3 empregos), e se empenharam em realizar grandes movimentos sociais. Mas esbarraram sempre em seu próprio atraso tecnológico e científico, fazendo com que tais experiências se esgotassem com o fracasso da Revolução Cultural, por volta de 1976.

Nos dois anos de avaliação dessas experiências, tentadas entre os anos 1949-1976 (27 anos), os chineses chegaram à mesma conclusão de Lênin. Ou seja, num país industrialmente atrasado não era possível abolir o mercado por decreto. Seria necessário combinar a ação primária do mercado com a orientação científica, econômica, social e política do Estado, de modo a desenvolver as ciências, as tecnologias e as indústrias como carros chefes do processo geral de desenvolvimento econômico e social.

Ou seja, a orientação do Estado deveria não só fazer com que a indústria e a agricultura fossem marcadas pelo desenvolvimento científico e tecnológico, elevando constantemente sua produtividade, mas também tivessem como alvo o atendimento das necessidades sociais e a constante elevação do padrão de vida e do nível educacional da população trabalhadora. Por outro lado, tal orientação estatal não deveria ser apenas genérica. Deveria ser moldada por planos (anuais, quinquenais e de mais longo prazo), e pela participação prática e concorrencial das empresas estatais.

As estatais, por sua vez, não deveriam ser monopolistas. Cada setor econômico deveria ter três ou mais empresas estatais, concorrendo entre si e com as empresas privadas, de modo a evitar a burocratização, elevar o padrão tecnológico e rebaixar os preços. O mesmo deveria ocorrer com as empresas privadas, evitando os monopólios e a estagnação tecnológica.

Por outro lado, para dar o salto industrial e tecnológico necessário, foi possível aproveitar-se da tendência de mundialização das grandes empresas capitalistas multinacionais, acelerada a partir dos anos 1970. Seus investimentos foram admitidos em zonas econômicas especiais, desde que estabelecessem joint ventures com empresas chinesas, e transferissem a elas novas e/ou altas tecnologias.

Além disso, muitos trabalhadores e técnicos do sistema industrial 3:1 foram incentivados a elaborar projetos de investimento a serem financiados pelos bancos estatais, de modo a diversificar a produção industrial e suprir as crescentes necessidades sociais. Ou seja, ao mesmo tempo em que admitia a presença do capital estrangeiro em áreas delimitadas de seu território, o Estado chinês financiou o ressurgimento de uma burguesia nacional capaz de concorrer não só com esse capital externo, mas também com o capital estatal, embora subordinada aos programas ou planos de desenvolvimento orientados pelo Estado e pelas ciências e tecnologias.

O que explica, por um lado, e em grande medida, o crescente papel do ensino científico e tecnológico na ampliação do sistema educacional chinês e, por outro, a presença crescente do conhecimento científico e tecnológico nos planos estatais de orientação das empresas estatais e do mercado.

É desse modo que o socialismo chinês está se aproximando do nível científico, tecnológico e econômico das grandes potências, e dando condições de seu povo ter um crescente padrão de vida. Numa escala menor, mas com características próprias, é também o que o socialismo vietnamita está fazendo.

Wladimir Pomar

Escritor e Analista Político

Wladmir Pomar
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