Grato: retomando o debate
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- Wladimir Pomar
- 30/03/2011
Parte da esquerda que se opôs ao governo Lula e ao PT, e continua se opondo ao governo Dilma, defende teses recorrentes de que o governo Lula teria consolidado o capitalismo e instrumentalizado o Estado no Brasil. Lula e o PT, ao invés de marcharem rumo ao socialismo, teriam mantido a hegemonia das relações sociais de existência do capitalismo e permitido o apoderamento da máquina pública por representantes de grandes grupos econômicos.
Além disso, teriam entregue parte substancial das riquezas naturais brasileiras a alguns grupos privados privilegiados, garantido as expectativas de grande retorno ao capital financeiro, através da política de juros, do aparelhamento das empresas públicas e do BNDES, e da internacionalização de grandes grupos privados, criando uma espécie de sub-imperialismo brasileiro. Paralelamente, ao invés de reforma agrária, teriam privatizado e internacionalizado a terra através do agronegócio.
Tudo isso teria sido uma traição ao projeto socialista anteriormente predominante no PT. O pressuposto de tal projeto seria, ao chegar ao poder, apropriar socialmente os excedentes econômicos provenientes das rendas e estabelecer o controle público sobre o petróleo, telecomunicações e potenciais hidráulicos. Isto é, sobre tudo que é patrimônio da nação, inclusive a terra, cujo resultado econômico seria apropriado para fins públicos. Não o fazendo, Lula e o PT teriam assumido o neoliberalismo da social-democracia do PSDB para aplicar fielmente a agenda da burguesia.
Essas teses, no entanto, parecem ter pouco a ver com a realidade brasileira e sua história. Por exemplo, as relações sociais capitalistas começaram a disputar a hegemonia sobre o conjunto das relações sociais presentes no Brasil a partir dos anos 1930. E conquistaram tal hegemonia a partir dos anos 1950-1960. Ao serem eleitos para o governo, não para o poder, Lula e o PT já encontraram essa hegemonia plenamente consolidada.
É possível transformar tais relações e quebrar aquela hegemonia sem uma revolução social? A eleição de um governo de esquerda, ou de um governo de coalizão dirigido por Lula, constituiu algum tipo de revolução social? Se a resposta à primeira pergunta for não, e à segunda for sim, será necessário fundamentar em que consistiu a revolução social da eleição de Lula. Se, ao contrário, a resposta à segunda pergunta for não, os socialistas precisam considerar que estão diante de uma contradição inesperada, para a qual precisam encontrar estratégias e táticas não previstas nos manuais do passado.
Outro exemplo: a máquina pública brasileira foi, desde sua constituição, primeiro apoderada pelo monopólio mercantil comercial da coroa portuguesa. Depois, durante a fuga da monarquia lusa ante as tropas de Napoleão, apoderada pelos latifundiários e traficantes de escravos. Posteriormente, os latifundiários do café-com-leite e coronéis do sertão colocaram aquela máquina a seu serviço. A partir de 1930, tal máquina tornou-se serviçal de coligação de latifundiários e representantes de grandes grupos econômicos financiados pelo Estado. Finalmente, a partir dos anos 1950-1960, os grandes grupos econômicos tornaram-se hegemônicos no apoderamento da máquina pública.
A rigor, uma avaliação crítica menos torta poderia concluir que o governo Lula não conseguiu romper com esse apoderamento. Na melhor das hipóteses, conseguiu fazer com que parte dessa máquina pública fosse colocada a serviço de alguns programas voltados para atender ao povo e ao país. Porém, falando francamente, alguém acha possível liquidar tal apoderamento sem realizar uma revolução? Ou, mais ainda, sem uma revolução será possível instrumentalizar o aparato militar, o judiciário, o congresso e outros órgãos permanentes do Estado burguês?
A mesma ausência de análise histórica está presente quando se responsabiliza Lula e o PT pelo fato de parte substancial das riquezas naturais brasileiras estar sob o domínio de grupos privados privilegiados. Faz tempo que tais riquezas estão sob o domínio de capitais privados. Assim como faz tempo que o capital financeiro hegemoniza não apenas a política de juros e câmbio, mas a própria vida econômica do país.
Bem antes de Lula e do PT chegarem ao governo, vários grupos privados já haviam iniciado seu processo de internacionalização. E não devemos esquecer a forma como eles utilizaram o BNDES, com o beneplácito dos governos Collor, Itamar e FHC, para privatizarem as empresas públicas numa ação destrutiva e corrupta. Alguém pode achar possível reverter totalmente esse processo sem uma profunda revolução econômica, social e política?
Nesse sentido, supor que seja possível realizar, sem revolução, um projeto que aproprie socialmente os excedentes econômicos provenientes das rendas, com controle público sobre o petróleo, telecomunicações, potenciais hidráulicos e terra, não passa de ilusão de classe. Não existe qualquer experiência histórica de controle público do patrimônio nacional e apropriação dos excedentes econômicos para fins públicos que tenha sido efetivada sem uma revolução. A social-democracia européia, que realizou uma parte ínfima de um programa desse tipo, só o fez, por um lado, pressionada pelo impacto da revolução soviética e, por outro, facilitada pela expropriação das riquezas produzidas pelos povos dos países coloniais e semi-coloniais. Condições que, ao se esfumarem, afundaram a social-democracia em profunda crise existencial.
Assim, bem vistas as coisas, uma parte da esquerda brasileira cobrou do governo Lula e, agora, cobra do governo Dilma, a execução de medidas e ações típicas de governos e Estados resultantes de revoluções. É provável que alguns participantes dessa parte da esquerda acreditem que a eleição de um governo de esquerda, mesmo de coalizão, seja capaz de transformar uma vitória eleitoral numa revolução pacífica. Se acreditavam nisso, ficaram frustrados e, agora, encaram os resultados do governo como uma traição.
De qualquer modo, a crítica dessas teses pode ser um bom ponto de partida para uma discussão de fundo sobre a situação brasileira. Por um lado, o país continua precisando de uma verdadeira revolução para realizar as transformações reclamadas pela sociedade. Por outro lado, a burguesia brasileira vive uma crise política que a dividiu e permitiu que socialistas chegassem ao governo (não ao poder). E, embora o socialismo continue internacionalmente em crise, o mesmo ocorre com o capitalismo e com as potências hegemônicas.
Essa, como dissemos, é uma situação ou contradição inusitada, em especial no Brasil e na América Latina, cuja descrição não faz parte de qualquer manual teórico. Embora, mesmo sendo governo, os socialistas ainda não tenham condições de romper com a hegemonia das relações capitalistas, o capital também se encontra enredado em suas próprias contradições e sem condições de restabelecer seu antigo domínio (o que é diferente de hegemonia).
Diante desse quadro, se os socialistas não forem capazes de fazer a análise concreta da situação concreta, dificilmente serão capazes de estabelecer a estratégia e as táticas correspondentes, como mostram as teses que vimos acima. Elas, ao invés de contribuírem positivamente para a busca de novos caminhos e avanços, distorcem a história e querem impor tarefas para as quais as grandes massas do povo brasileiro ainda não acordaram. Por outro lado, como tudo tem pelo menos dois lados, contribuem negativamente para intensificar o debate.
Grato!
Wladimir Pomar é escritor e analista político.
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Comentários
No curso da primeira guerra mundial, Lenin e os bolcheviques contestaram tais alianças e lideraram a revolução russa.
No curso da Segunda Guerra Mundial, Mao Tse Tung e o PCCH contrariaram as orientações da Internacional,fizeram a Grande Marcha, primeiro lutando contra os invasores japoneses e se aliando a Chiang Kai Shek, e depois se voltando contra o Kuomintang, quando finalmente tomaram o poder, em 1949.
Ora, o capitalismo, como bem diz Wladimir Pomar, está em crise no mundo, e no Brasil as grandes burguesias brasileira e internacional encontram dificuldades para restabelecer o seu antigo domínio.
É verdade que as propostas socialistas foram derrotadas no mundo, inclusive na República Popular da China. E, portanto, precisam ser pensadas com mais profundidade e principalmente atualizadas.
De qualquer forma vemos o capitalismo tentando, sem sucesso até agora, sair de mais uma grande crise mundial e evitar a quebradeira geral.
O que nos leva a refetir com a possibilidade da semelhança do presente com o passado não ser mera coincidência.
Também aprendi, e isso já no campo da linguística, sobre a percepção da mensagem através do Plano Estruturalista e não sob a reacionária e idealista falácia que a construção sintática do que falamos ou escrevemos é produto de “algo interior”, sem relação de causa e efeito com o que queremos induzir em nosso discurso, isto é, sem ter nada a ver com a nossa ideologia real (consciente ou inconsciente). Seria enfadonho citar MacLuhan, Freud, Lacan, W. Reich, Levi Strauss, Saussure, para ficar só neles, além da sabedoria popular quando exclama “Pescar em Águas Turvas”. Eu continuo fã destes geniais autores e também da percepção popular das coisas.
Sobre o primeiro parágrafo, posso afirmar, sem medo de errar, que WP neste artigo, mesmo sem dar a impressão (afinal...) refere-se aos seus companheiros de conservadorismo político, no que tange também as propostas de Organização Político-Social dos Povos. Creio que o recado que ele manda é apropriado para aqueles que, alojados minoritariamente no PT e presentes em partidos como PSOL, PSTU, PCO, entre outros (O PC do B está longe disso, direitizou de vez) que, adotam as estruturas institucionais burguesas como centro de suas ações (tudo desemboca nas eleições e suas alianças eleitorais), com a velha prática de “aparelhamento” dos Movimentos Sociais, os querendo não como protagonistas das ações políticas, mas apenas como manancial farto para votos e “novas lideranças partidárias”, mediocrizando e viciando em “negócios eleitoreiros e partidários” toda a política. E para isso não se furtam a agir como qualquer direitista a cooptarem suas presas. Mas, como contrapartida a esta irresponsabilidade, têm um discurso radical, “revolucionário”, mas com uma prática tão conaservadora como a de WP ou da direita brasileira, clientelista como ela só.
Portanto, não visto a carapuça desta diatribe que WP generaliza, pois não sou desta tribo de irresponsáveis políticos. Nunca exigi de Lulla ou DiLLma ações “revolucionárias”, mas tão somente a preparação do Povo para que as Reformas Profundas pelas quais ele foi eleito, fossem colocadas em andamento. E isso só se faz com Povo Organizado e Mobilizado, e não em casa esperando o Bolsa Família tão somente, sob forte propaganda enganosa, enquanto NENHUM serviço básico para a maior parte da população é melhorado, ao contrário, continuam uma tragédia.
Minha perspectiva, hoje, é tão somente tentar fortalecer as Lutas Sociais, colocando como protagonistas os próprios atingidos, e não estes verdadeiroas vampiros políticos, que querem nos fazer crer que esta estrutura partidária abjeta e negocista é que tem de capitanear a politica no Brasil. Na na ni na NÃO!
Assim, citando a relatividade enunciada por Einstein, vejo que WP está tão reduzido em seus horizontes ideológicos, que simples Reformas Profundas (que foram consensuadas para a eleição de Lulla em 2002) parecem “reivindicações revolucionárias”. Ou então tenta confundir conscientemente seus leitores, misturando na mesma latrina aqueles que são tão conservadores e institucionalistas como ele, mas que tentam disfarçar com um discurso de formato radical, com aqueles que já superaram esta relação doentia que subjuga tudo e todos para a conquista do Poder Institucional, que ainda persiste em grande escala, na (por isso mesmo) combalida esquerda brasileira.
Sobre o segundo parágrafo, creio que ele é autoexplicável. Apenas acrescentando que colocar no futuro do pretérito algo que acontece “a rodo” no presente, e de forma real e por ação conceitual e muito bem pensada pelos governos que ele apóia, é de lascar.
"Parte da esquerda que se opôs ao governo Lula e ao PT, e continua se opondo ao governo Dilma, concluiu que o governo Lula contribuiu muito para a consolidação do capitalismo e instrumentalização do Estado no Brasil. Lula e o PT, ao invés de marcharem rumo ao socialismo, mantiveram a hegemonia das relações sociais de existência do capitalismo e permitiram a continuação do apoderamento da máquina pública por representantes de grandes grupos econômicos.
Além disso, entregaram parte substancial das riquezas naturais brasileiras a alguns grupos privados privilegiados, garantindo as expectativas de grande retorno ao capital financeiro, através da política de juros, do aparelhamento das empresas públicas e do BNDES, e da internacionalização de grandes grupos privados, criando uma espécie de sub-imperialismo brasileiro. Paralelamente, ao invés de reforma agrária, privatizaram e internacionalizaram a terra através do agronegócio."
Tá aí, sr. Pomar. Não precisa recorrer a falácias de argumentação para dizer o que quer. Lhe entendemos muito bem - como podes constatar pelos comentários anteriores - apesar do incansável trabalho de floreamento que o senhor faz desse governo.
Chamar o governo Lula-Dilma e os seus seguidores de \"socialistas\" é uma grande piada. Há palavras mais apropriadas: \"oportunistas\" e \"pelegos\", respectivamente. Também não são apresentados argumentos contra as análises do governo Lula como uma continuidade da \"modernização conservadora\". O governo de Lula, além de não mexer nas contrarreformas privatizantes de Collor e FHC, pôs o orçamento da União e as empresas públicas à serviço do latifúndio e das empresas multinacionais, agraciados com empréstimos, incentivos fiscais e parcerias lucrativas, enquanto concedia algumas migalhas deste farto banquete aos mais pobres: bolsa-família, microcrédito rural, uma melhora de 50% do salário mínimo em 8 anos, e alguns outros \"programas sociais\". E provocou deformações enormes na cultura política, desmobilizando movimentos sociais outrora combativos, e criando a ilusão de que acordos, negociações e pactos podem eliminar os conflitos sociais, desigualdades e violências institucionalizadas contra os trabalhadores pobres. Enquanto distribui desigualdade os recursos públicos entre os riquíssimos e os pobríssimos, a coalização oportunista-conservadora no poder sabota, nas camadas populares, a consciência, a organização e o objetivo autônomos e a capacidade de luta pelo poder. É esse quadro de hegemonia liberal-conservadora que o autor quer defender das críticas pela esquerda? Involuntariamente, ele acaba afirmando que a única crítica legítima é a que vêm pela direita...
Esse comentário merece resposta, ele foi bem duro...incisivo... frio.
Que resposta você irá dar???... Heim Wladimir Pomar???...
Acontece que as massas ainda estão sonolentas justamente porque o PT se acomodou ao poder. Abandonou suas bandeiras a medida que aumentava sua "coalizão". Quanto maior a "governabilidade", menor a efetividade, maior a sonolência imposta aos que lutaram muito pra que o PT chegasse ao poder. O PT, depois de mais de 8 anos de governo, ainda não comprou sequer uma grande briga com o sistema burguês! Sequer uma! Deveria ter chamado o povo à luta e às reformas em 2002, quando o ânimo de mudança era enorme. Agora, o governo desgastou-se, a oposição de direita conseguiu 44% dos votos em segundo turno -é bom que se lembre-, e a tarefa de acordar as massas ficou bem mais difícil. Espero que pelo menos a reforma política prospere, e seja progressista! -a plataforma dos movimentos sociais é o farol-, para que nós possamos sonhar de novo com ventos de mudança e não tenhamos que ver experientes líderes partidários chorarem por não ter feito o que lhes cabia: acordar as massas.
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