Correio da Cidadania

Mafalda: uma grande menina

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Incrível, querida Mafalda, que você já esteja com meio século de existência. Parece que foi ontem que travei conhecimento com você e sua turma de crianças diferenciadas. E desde o primeiro momento, confesso que me apaixonei por você, tão idealista, com seu jeito politizado e, ao mesmo tempo, terno.

 

Você, querida Mafalda, na verdade é uma apaixonada pelas pessoas e pelo mundo. Você ama os outros e as coisas que existem ao seu redor. Por isso mesmo é muito exigente com elas. Os primeiros a sentir o peso de sua exigência são seus pais. Como você deve tê-los enchido de ansiedade, menina de cabelos pretos e olhar perscrutante. Suas perguntas os deixam de olhos abertos a noite toda, sem conciliar o sono, indagando-se o que você quer dizer e aonde quer chegar.

 

Mas ao mesmo tempo, com toda a sua crítica a tudo e todos em sua casa – a começar pela sopa tão odiada “que é para a infância o que é o comunismo para a democracia” –, você ama seus pais e os olha com uma ternura que perdoa suas limitações e acolhe suas imperfeições na difícil arte de te amar. Seu irmãozinho Guille é objeto igualmente de sua ternura e desde pequeno já começa a assimilar sua visão crítica do mundo e da realidade. Vai longe esse menino!

 

Com sua turma de amigos já brinquei muitas vezes e entrei na roda do teimoso e pão-duro Manolito, da alienada Susanita, do terno Felipe... junto com você. Sempre foi uma delícia ver como você interage com eles, amiga, companheira, mas também verdadeira, sabendo levantar a voz e ser crítica quando é necessário. Às vezes, a insensibilidade de Susanita ou as “viagens” de Felipe impacientam você, que vai então refugiar-se no seu quarto e pensar, pensar e mais pensar. Porém, muitas vezes você se diverte com eles como criança da sua idade e eu, avó que já sou, morro de rir dessas brincadeiras que me fazem lembrar meus netos.

 

Sua relação de maior afeto, no entanto, Mafalda, é com o mundo. Só nele eu já vi você enternecida e cheia de compaixão. Seu coração sensível e sua mente brilhante e perspicaz têm profunda pena deste mundo tão louco, tão injusto, mas também tão sofrido, tão combalido por guerras, lutas fratricidas, injustiças de toda sorte. Sua cabecinha não para de se perguntar uma e outra vez o porquê de tudo que acontece e deforma este mundo que poderia ser pacífico. Talvez de todas as suas tirinhas a que mais me enterneceu tenha sido aquela onde você aparece em atitude protetora ao lado do globo terráqueo, colando um band-aid sobre sua superfície.

 

Isso diz muito sobre sua personalidade. Enraivecida, rebelde, não se conformando com o mundo tal qual é. Mas também carinhosa, compassiva, compreensiva com as limitações de todos e também deste mundo, que é a nossa, a sua casa e que sofre bastante com os desvarios e loucuras dos seres humanos. Tal como seu criador, Quino, você é uma pessoa pacífica, mas que não suporta injustiças. E por isso se enraivece quando elas acontecem.

 

Neste seu aniversário de meio século, comemorado em 29 de setembro, quero agradecer a você a grande inspiração que tem sido para mim. São cinquenta anos que você nos encanta, nos faz rir, pensar, refletir, chorar e ter mais força para enfrentar o cotidiano às vezes bem duro que é o nosso.

 

Sobretudo nós, mulheres, devemos muito a você. Quando nos desesperamos com a idade que nos faz engordar, você nos ensina que na verdade não acumulamos gordura saturada e, sim, inteligência, saber, conhecimento. E como tanta sabedoria não cabe em nossa cabeça, mas se esparrama por nosso corpo, nossas formas se avolumam e se arredondam. Mas isso não significa que somos gordas, e sim cultas, muito cultas.

 

Por ser inteligente, politizada e culta, querida Mafalda, você chega à chamada “meia idade” sem achar que a academia de ginástica é o lugar mais importante do mundo, nem que tem que ter aos 50 o mesmo corpo que tinha aos 18. Você sabe que o mais importante se leva na cabeça e no coração, e não na cintura, nos quadris ou nos seios.

 

Há muitos séculos um homem muito inteligente e culto dizia às comunidades que fundara e que amava ternamente: “Não vos conformeis com este mundo”. Feliz você que não se conforma com ele e o quer melhor. Por isso critica os que o fazem injusto. Mas ao mesmo tempo sabe pousar carinhosamente o band-aid sobre suas feridas.

 

Do fundo do coração, parabéns! E que venham os outros cinquenta!

 

 

PS: Maria Clara Bingemer convida para o lançamento de mais um livro seu – FINITUDE E MISTÉRIO – MÍSTICA E LITERATURA MODERNA – este em coautoria (Editoras Mauad e PUC-Rio). Será no próximo dia 9 de outubro, a partir de 19 horas, na Blooks Livraria (Praia de Botafogo, 316) Rio de Janeiro.

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.


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