Correio da Cidadania

O Festival Thiaroye 44, no Senegal: reconstruções da memória

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Algo pouco abordado na história das grandes guerras mundiais foi a participação de africanos nos conflitos mundiais, com destaque para os combatentes recrutados na antiga África Ocidental Francesa (AOF) (1). Diante desse “esquecimento”, atualmente ainda é reivindicado o reconhecimento da contribuição dos chamados Tirailleurs Sénégalais, os Fuzileiros Senegalenses, genericamente associados a esse país, por serem agrupados nesse local, apesar de serem oriundos de diversos países. Esses soldados atuaram entre 1857 e 1960 nos conflitos que envolviam a França. Com recrutamentos que não eram necessariamente voluntários, somente entre 1914 e 1918, o grupo era composto de 161.250 combatentes negros, segundo o Ministério da Defesa francês. Já na Segunda Guerra, até 1º de abril de 1940 foram recrutados mais de 179.000 soldados africanos pela França.

 

Contando com apoio intelectual, as narrativas oficiais sobre esses conflitos mundiais foram cristalizadas ao longo do tempo e tendem a ignorar participações das populações colonizadas, sem problematizar a forma como foi conduzido o processo pelos Aliados. Das grandes guerras, ficou uma narrativa idealizada, em que os Aliados foram as vítimas, os bons, os heróis, versus o Eixo do Mal, os vilões. Nessa imagem, não há espaço para o incidente conhecido como Thiaroye 44.

 

Thiaroye é onde se localiza um campo militar, no Senegal, pra onde foram enviados cerca de 1300 soldados africanos em 1944, após terem lutado na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados. Esses soldados se negaram a retornar a seus países sem antes receber seus prometidos soldos e prêmios de guerra. Como não tiveram suas demandas atendidas, acabaram se insurgindo e fazendo um oficial francês de refém, libertado em seguida na negociação, com a promessa de pagamento dos soldados. Mas, no lugar do pagamento, os soldados, provavelmente desarmados, receberam da França o fuzilamento, agressões e a condenação dos sobreviventes à prisão. O número oficial de mortos seria de 35, mas as testemunhas que sobreviveram ao episódio argumentam que foram mais, enterrados em valas comuns. Além disso, o Exército francês inicialmente fez fortes difamações dos Fuzileiros, com argumentos já refutados por historiadores contemporâneos.

 

Com um olhar crítico, o Festival Thiaroye 44 procura trazer esse episódio para o debate. O evento é organizado por um grupo composto por intelectuais, professores e outras pessoas que acompanharam o final da Segunda Guerra, todos moradores do bairro popular de Thiaroye e das proximidades, no Senegal, que sentem até hoje a força da injustiça de ter negada parte de sua história. E aí se encontra uma das potências do Festival: é possível dar voz àqueles que viveram ou ouviram outra história que não a oficial.

 

Em sua terceira edição, o Festival traz o debate sobre a necessidade de reparação histórica e a disponibilização dos arquivos militares franceses sobre o caso. Os presidentes franceses, quando questionados sobre o assunto, reagem de maneira muito questionável, como Nicolas Sarkozy, que disse que “o problema com a Africa é que ela vive na nostalgia de um paraíso perdido na infância”. Outros, com mais diplomacia, como François Hollande, prometem liberar os arquivos, mas até o momento nada foi feito. O fato é que o número de mortos é incerto e a reparação histórica, uma urgência.

 

Segue abaixo o documento escrito pelos organizadores do Festival, que ocorrerá nos dias 30 de novembro e 1º de dezembro de 2014, em Thiaroye e outras localidades de Dakar, com a sua visão sobre a sua história. O intuito, com isso, é mostrar a atualidade de uma perspectiva crítica sobre a história oficial e a importância de grupos locais assumirem o protagonismo sobre as suas trajetórias.

 

Thiaroye 44, 70 anos depois – Termo de referência


Na Segunda Guerra Mundial, os soldados africanos foram novamente recrutados pela França, a metrópole, na luta contra a Alemanha nazista. Esses são os "Fuzileiros Senegaleses", o nome genérico, que, desde 1857, é usado para designar os combatentes oriundos das colônias francesas na África (da AOF, ou seja, do Daomé - atual Benin -, Togo, Costa do Marfim , Alta Volta - atual Burkina Faso -, Senegal, Sudão Francês, Guiné Conakry, da AEF, ou seja, do Chade, Oubangui Chari - atual República Centroafricana -, Congo, Gabão).

 

Esses soldados, mobilizados desde 1938, destacaram-se em diferentes cenários de guerra, primeiro em maio-junho 1940, diante dos tanques alemães antes da grande derrota francesa, em seguida nas batalhas do deserto na África, no interior das Forças Francesas Livres, do general Leclerc, que liberaram completamente a África do Norte. Finalmente, nas vitórias dos Aliados, eles contribuíram significativamente na ocupação da Itália, nos grandes desembarques da Normandia, em 06 de junho de 1944, e de Provence, em 15 de agosto do mesmo ano. Alguns, menos afortunados, foram baleados ou capturados nos Frontstalags (2), onde permaneceram até o final do conflito.

 

A maioria desses soldados, especialmente os sobreviventes dos campos de concentração nazistas, foram enviados para a sede da AOF, em Dakar (Senegal), não sem exigir duas vezes seguidas, em Paris e em Casablanca, receber seu pecúlio de guerra. Em novembro de 1944, 1.280 deles foram reunidos em um campo de trânsito a cerca de 15 quilômetros de Dakar. Recusando-se a embarcar em um trem para Bamako, eles se rebelaram e tomaram como refém o general Dagnan, que foi liberado diante de uma promessa de pagamento dos seus soldos.

 

Da intervenção enérgica do exército francês e a sangrenta batalha que se seguiu, foram contadas 35 mortes e feridos graves; outros soldados foram julgados e presos.

 

São esses combatentes africanos, traídos e posteriormente esquecidos, que um Comitê de personalidades senegalesas, da localidade de Thiaroye e arredores, deseja homenagear através de um Festival anual.  Essa 3ª edição do Festival se justifica amplamente pelo fato de que esse episódio doloroso da história colonial ainda não é de amplo conhecimento dos senegaleses, dos africanos da diáspora e dos homens e mulheres apreciadores da paz e da justiça.

 

Em acréscimo, desde o fim desse conflito, na metrópole e nas capitais das antigas colônias da África Francesa, é celebrada a memória de alguns acontecimentos relevantes: as assinaturas do armistício de Rethondes, de 11 de novembro de 1918, e do armistício de 08 de maio de 1945, e igualmente os desembarques na Normandia e em Provence, destacando-se não somente o sangue derramado de soldados de diferentes nacionalidades (canadenses, franceses, americanos, ingleses, russos etc.), mas, sobretudo, a comunhão das pessoas que ajudaram a acabar com os abusos do nacional-socialismo de Hitler.

 

Cada vez mais, pesquisadores e historiadores franceses efetuam detalhadas investigações sobre o cotidiano e a história dos Fuzileiros, para permitir reconstruir mais claramente a trama desses eventos. Pesquisadores como Armelle Mabon e Julien Fargettas (3) lembraram recentemente ao presidente francês, François Hollande, sua promessa feita em sua última visita ao Senegal, de disponibilizar todos os arquivos relativos a esse trágico acontecimento; eles propuseram a criação de um Comitê de Historiadores franco-africanos para trabalhar nesse tema. Em 1998, nossos compatriotas Ousmane Sembene e Thierno Faty Sow, através de uma realização magnífica, Camp de Thiaroye, realizaram uma vibrante homenagem, antes ainda do filme de Rachid Bouchareb, L'ami y'a bon (2005).

 

As manifestações que o Comitê de Organização procurou organizar no quadro desse Festival terão sobretudo uma marca popular, mas serão também momentos de reflexão sobre o sentido desses episódios, para dizer não à injustiça e abrir novas perspectivas para construir um mundo de paz e de conciliação.

 

Notas:

(1) O texto tem duas partes: a primeira é uma introdução ao tema e a segunda é o termo de referência do Festival, elaborado pela sua Comissão de Organização, composta por: Alpha Yaya Diallo, Abou Sow, Babacar  Diop, Bakary Dabo, Salimata Soumare, Moussa Diouf e M. Bassel. Tradução do Termo de referência: Patrícia dos Santos Pinheiro.

(2) Eram campos de prisioneiros do Exército alemão situados principalmente na França, na zona ocupada na segunda Gerra Mundial, usados por medo de doenças tropicais ou de afetar à “pureza do sangue ariano”.

(3) Armelle Mabon é professora pesquisadora da Universidade da Bretanha do Sul, membro do Centro de pesquisas históricas do Ocidente (Cerhio, UMR CNRS 6258). É autora do documentário Esquecidos e Traídos: os prisioneiros de guerra coloniais e norte-africanos (Grenade Produções, 2003). Julien Fargettas é doutor em História, dedicou sua tese aos Fuzileiros Senegaleses da Segunda Guerra Mundial (Instituto de Estudos Políticos de Aix-en-Provence /Universidade de Provence).

 

Sérgio Botton Barcellos é pesquisador e Doutor pelo CPDA/UFRRJ.

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