Quem Derrotou Flores da Cunha?
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- Mário Maestri
- 06/11/2007
O velho caudilho rio-grandense alegrar-se-ia com o elogio que lhe traçou Lauro Schirmer, na biografia Flores da Cunha de corpo inteiro, lançada com ampla divulgação pela RBS Publicações [239 pp, 30 reais]. Autor de outros estudos de cunho histórico, o conhecido jornalista rio-grandense aborda em forma elogiosa até mesmo aspectos pessoais discutíveis do ex-líder republicano, como a sua descontrolada paixão por “mulheres ligeiras”, pelo carteado, pelas corridas de cavalo.
Gaúcho de choro frouxo, Flores da Cunha chegaria às lágrimas com o ataque sem peias de Schirmer ao seu arquiinimigo Getúlio Vargas, antigo correligionário, companheiro de revoluções e, finalmente, responsável por sua deposição do governo do RS, em 1937, por seu exílio no Uruguai, por sua prisão na ilha Grande, no Rio de Janeiro. Sem dó, Schirmer desanca Vargas como ditador frio, mesquinho e sórdido, capaz de todas as infâmias.
Com enorme pertinência, o biógrafo destaca a minoração do papel histórico do caudilho sulino, nos anos 1930, quanto ao Rio Grande do Sul, como interventor-governador do estado, por sete anos, e, no que diz respeito ao Brasil, como o grande responsável pela derrota da Revolução Constitucionalista, em 1932, e, sobretudo, como derradeira barreira ao golpe getulista do Estado Novo, de novembro de 1937.
A beatificação de Flores da Cunha como político liberal-democrático infesto a qualquer ditadura atrapalha a compreensão de seu enorme papel histórico. Flores foi lídimo filho do republicanismo positivista que, para defenestrar os segmentos liberal-pastoris dominantes, dominou o Rio Grande por quase quarenta anos sem pruridos democráticos. Flores da Cunha nasceu e alimentou-se nesse caldo autoritário e reinou sobre o Rio Grande, em 1930-35, sem perder o sono com a origem discricionário de seu poder.
O confronto entre Flores da Cunha e Getúlio Vargas não foi choque entre o bem e o mal, entre a integridade e a perfídia, entre a democracia e a ditadura. Para além das idiossincrasias pessoais, os dois políticos republicanos e positivistas sulinos eram um a cara do outro, farinhas do mesmo saco. No frigir dos ovos, desempenharam, de certo modo, o mesmo papel, um no Rio Grande, o outro no coração do Brasil. O choque de fins de 1937 deveu-se ao fato já sabido de que dois bicudos jamais se beijam.
Se Flores da Cunha fosse inimigo visceral da ditadura, não teria traído a palavra empenhada e reprimido correligionários e aliados rio-grandenses, condenando ao isolamento e à derrota a Revolução Constitucionalista, e, assim, assegurando que Vargas continuasse no poder. Em 1932, mesmo temendo Getúlio, o caudilho rio-grandense temia ainda mais o retorno da ordem liberal-oligárquica da República Velha, que fulminaria seu projeto de inserção privilegiada do Rio Grande na nova ordem nacional em construção.
O ambicioso programa florista de relançamento da economia agrária, pastoril e industrial sulina, de 1930-37, foi continuidade e superação das iniciativas de Vargas, quando governador do estado, em 1928-30. Getúlio rompeu apenas com seus laços sulinos porque, no governo da nação, expressando o industrialismo carioca e paulista dominante, implementou nacionalmente o mesmo projeto sonhado por Flores para o Sul. E, se não o fizesse, teria sido possivelmente afastado do governo e se reduzido a uma nota de pé-de-página da história do Brasil contemporâneo.
O duro tratamento dado por Vargas ao oponente derrotado não se deveu à maldade pessoal, mas à importância e perigo político que ele representava, mesmo no exílio. Flores da Cunha prosseguiu conspirando desde o exílio uruguaio, não vacilando sequer em envolver-se na fracassada tentativa de assassinato do ditador-presidente, na madrugada de 11 de maio de 1938, quando do assalto ao palácio Guanabara, capitaneado pelos integralistas, que passaram para a história como os quase únicos responsáveis pelo ato de sangue. Certo da liquidação de presidente-ditador, Flores da Cunha distribuiu a jornalista de Montevidéu versão sobre a vitória do ataque.
A minoração do papel histórico de Flores no Rio Grande registrada por Lauro Schirmer certamente se deve ao combate incessante à sua imagem pelo Estado Novo, que lhe cassou o título de general do Exército, conquistado por hábeis, reiteradas e destemidas intervenções nos campos de batalha; retirou seus bustos e seu nome de praças, ruas e educandários e, finalmente, o julgou, condenou e encarcerou, por longos nove meses.
Na quase amnésia histórica rio-grandense, certamente desempenhou papel significativo o retorno de Flores da Cunha à política, após 1945, em oposição visceral ao seu desafeto já despida de sentido político e social, nas filas da conservadora UDN, que jamais gozou de prestígio, sobretudo popular, no Sul, onde reinou forte o PTB de Getúlio, Jango, Brizola. No crepúsculo de sua vida, em 1955, o velho caudilho redimir-se-ia de sua opção conservadora, ao apoiar, como presidente interino da Câmara, a liquidação pelo general Lott das articulações golpistas do seu partido, a UDN, para impedir que Juscelino Kubitschek e João Goulart, eleitos presidente e vice-presidente, assumissem os cargos.
Flores da Cunha arregimentou contra o projeto ditatorial de Vargas, que sabia ser estruturalmente antagônico com a autonomia e desenvolvimento industrial do Rio Grande, a então poderosa Brigada Militar, forças irregulares, equipadas com modernas armas iugoslavas, e oficiais e tropas anti-golpistas do exército sediados no Rio Grande. Seu poderoso esquema militar foi vergado sem resistência devido a deserções internas. Essas defecções registraram que importantes facções sulinas negaram apoio ao projeto autonômico de Flores da Cunha, satisfeitas com a posição subordinada de “Celeiro do Brasil” destinada ao estado na nova reorganização nacional do trabalho em construção.
A moderna historiografia sulina registrou a adesão maciça dos intelectuais sulinos ao Estado Novo, despreocupados com a subordinação do estado ao industrialismo do Centro-Sul. Foi como se o florismo não tivesse deixado herdeiros mesmo intelectuais no Rio Grande. Em 1945, com o fim da ditadura, o grande acontecimento cultural foi a celebração das raízes pastoril-regionalistas, na literatura e no tradicionalismo, e não a retomada dos ideais floristas. Apenas em 1958, o jovem governador Leonel Brizola, o derradeiro caudilho sulino, voltaria a questionar a minoração nacional do RS. Responsável pela restituição do nome de Flores da Cunha ao Instituto de Educação, retirado durante o Estado Novo, Brizola seguiria muito logo também para o exílio uruguaio, devido a golpe militar que, apoiado pela imensa maioria dos proprietários sulinos, consolidaria sem dó a subordinação nacional e internacional da economia sulina.
Mário Maestri é historiador e professor do PPGH da UPF. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
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