República Farroupilha: a revolução dos latifundiários senhores de negros
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- Mário Maestri
- 21/09/2018
A Guerra Farroupilha [1835-45] foi um entre os diversos movimentos liberais provinciais contra o centralismo do governo despótico de Pedro I [1822-30] e, a seguir, as tímidas concessões da Regência [1831-40]. A crise política que abalava o Império do Brasil era alimentada pelas dificuldades da economia escravista, a seguir relançada pela produção cafeicultora escravista. Movimentos como a Balaiada, no Maranhão e Piauí, e a Cabanagem, no Pará, radicalizaram-se com a participação de homens livres pobres, nativos e escravizados, levando os liberais farroupilhas daquelas províncias a abandonar a luta e aceitar o jugo centralista do Rio de Janeiro.
O movimento farrapo interpretou as reivindicações dos criadores escravistas do meridião da província do Rio Grande do Sul. Eles também possuíam imensas propriedades no norte do Uruguai, exploradas igualmente com o suor do negro escravizado. A longevidade da revolta farrapa deveu-se também à capacidade dos seus chefes de manterem as classes então ditas infames na sujeição. Gaúchos, nativos, cativos, homens livres pobres morreram lutando contra os seus interesses, sob as ordens dos grandes proprietários.
A chamada Revolução Farroupilha jamais foi revolta de rio-grandenses e unitária quanto à sociedade e ao território. Ela sequer incendiou a população livre provincial como um todo. Os comerciantes, a população urbana, os colonos alemães etc. mantiveram-se neutros ou optaram pelo Império, pois o programa farroupilha opunha-se aos seus interesses. Charqueadores e comerciantes escravistas temiam que a separação comprometesse o tráfico negreiro internacional, combatido pelo governo inglês.
Essas defecções facilitaram a perda das grandes cidades e do litoral, mantido sempre nas mãos imperialistas, devido igualmente à supremacia total da marinha do Império. Sem porto, em 24 de julho de 1839, os farroupilhas invadiram Santa Catarina para conquistar Laguna como saída ao mar. A farsa da República Juliana não durou quatro meses. Estava longe do território farroupilha, no sul da província, e jamais contou com real sustentação entre a população catarinense.
O Rio Grande jamais foi terra de gaúcho
Porto Alegre sublevou-se, libertou-se e resistiu aos farroupilhas, que cercaram a vila e a bombardearam sem piedade por três vezes. Por trás de seus muros, os porto-alegrenses resistiram até o fim da guerra - por isso, a capital recebeu, desde 1841, o título de "Leal e valorosa", que mantém até hoje. Em 1835, os farroupilhas dominavam a província. Em 1845, mantinham-se apenas nas bordas da fronteira sul, obrigados amiúde a se refugiar nas suas estâncias no Uruguai.
Propõe-se caráter progressista ao movimento porque parte de suas tropas era formada por peões, nativos e sobretudo ex-cativos. Os gaúchos eram em geral descendentes de nativos que haviam perdido as terras comunitárias para os grandes criadores. Eles acompanhavam os caudilhos nos combates como o faziam nas lides campeiras. O gaúcho buscava na guerra churrasco, saque e soldo. A política era mantida como monopólio restrito dos proprietários. Mais comumente, os gaúchos-peões fugiram do Rio Grande do Sul para não serem incorporados às tropas do Império e da República.
Os chefes farroupilhas reforçavam as tropas com cativos comprados e, sobretudo, capturados dos estancieiros adictos ao Império. Na América espanhola e lusitana, os escravistas libertavam cativos para defenderem seus bens - defesa de Sacramento dos ataques espanhóis; quando da invasão holandesa de Pernambuco etc. Era antigo o direito do homem livre convocado de substituir-se por um cativo libertado. Senhores farroupilhas mandavam “substitutos” morrer pelos ideais farroupilhas. Em 1865-70, milhares de libertos marcharam para morrer no Paraguai defendendo a bandeira que os escravizava. Alguns preferiam a guerra à escravidão. Outros acreditavam na promessa da liberdade. Não poucos desertaram.
A República apoiava-se no latifúndio meridional e na escravatura. O Rio Grande do Sul teve seus gaúchos, sem ter sido jamais terra de gaúcho, como a Banda Oriental e as províncias de Buenos Aires, Santa Fé, Entre Ríos, Corrientes. Nessas regiões, os gaúchos foram sempre tendencialmente uma forte força político-social. No Rio Grande do Sul, jamais! Nas fazendas rio-grandenses do sul da província e do norte do Uruguai dominou sempre o “cativo campeiro”. Por isso a enorme quantidade relativa de cativos nas filas republicanas, sobretudo no final da guerra.
Branco manda em negro
Não houve democracia racial nas filas farroupilhas. Negros, nativos e brancos pobres marchavam, acampavam, lutavam e morreram em batalhões separados. A Farroupilha sequer repetiu o “Terço da Gente Negra”, tropa comandada pelo ex-cativo Henrique Dias, com oficiais todos negros, quando da “libertação” de Pernambuco, nos anos 1650. Eram sempre brancos os oficiais farroupilhas dos soldados negros. Em suas Memórias, Garibaldi assinalou: "[...] todos negros, exceto os oficiais [...]." Para a Constituição Republicana Rio-grandense eram cidadãos apenas os "homens livres”. Na República do Piratini, negro cativo continuava negro cativo.
Os chefes farroupilhas jamais prometeram terras aos gaúchos e liberdade aos cativos, como o fez e cumpriu José Artigas, o “general de Homens Libres”, derrotado em 1820 pela união dos exércitos e dos latifundiários orientais, argentinos e rio-grandenses. Os farroupilhas dependiam dos “cativos campeiros” para explorar seus imensos latifúndios. Queriam-nos e os tinham a “cabestro curto”. Ao morrer, Bento Gonçalves, empobrecido pela derrota, era ainda proprietário de muitos negros escravizados, herdados por seus felizes descendentes.
Hoje tão festejado na literatura, no cinema e nos CTGs, o general Neto era um escravista inveterado e brutal. Após o fim da revolta farroupilha, seguiu sendo proprietários de imensos latifúndios e grandes quantidades de cativos no norte do Uruguai. Em 1864, exigiu que o Império invadisse aquele país, iniciando a guerra de extermínio contra a República do Paraguai. Tudo para não perder o direito de explorar seus cativos na República Oriental do Uruguai, onde a escravidão havia sido abolida, havia anos.
Não foi por democratismo que alguns generais farroupilhas exigiram, no final da revolta, que o Império respeitasse a liberdade dos soldados negros. Eles - assim como Caxias - receavam que se formasse guerrilha negra e, sobretudo, que os ex-cativos aramados se homiziassem no Estado Oriental. Naquele momento, o Império preparava intervenção no Uruguai e na Argentina, realizada em 1851-52, com o apoio ativo dos antigos chefes farroupilhas, reconvertidos a monarquistas. O Império não aceitava que negros gozassem da liberdade por combaterem a monarquia.
Negros armados são um perigo
A solução encontrada foi o massacre do cerro de Porongos, quando o general David Canabarro, latifundiário e chefe militar republicano, em conluio com o barão de Caxias, também grande senhor de cativos, entregou os soldados negros aos inimigos, desarmados, em um dos mais vis fatos de armas da história militar do Brasil. Carta do barão elucidou as razões da falsa “surpresa militar”. Caxias ordenou ao coronel Francisco de Abreu, seu subordinado, que não temesse surpreender os rebeldes, ao atacá-los. A infantaria farrapa estaria desarmada, devido à "ordem de um ministro e do General-em-Chefe". Ele esperava que o "negócio secreto" levasse em "poucos dias ao fim da revolta”, ao solucionar o entrave dos soldados negros. O que não ocorreu.
Caxias ordenava: "[...] poupe o sangue brasileiro quando puder, particularmente de gente branca da província ou índios, [...] esta pobre gente ainda nos pode ser útil no futuro." Preparava-se já, como proposto, a intervenção do Império no Prata, de 1851-52, na qual os ex-farrapos marcharam, disciplinados, sob a bandeira do Império, contra Oribe e Rosas, em defesa das suas fazendas escravistas no norte do Uruguai. Em verdade, lutavam pelo direito de manter a escravidão em terra que já abolira a instituição.
Na madrugada de 14 de novembro de 1844, as tropas imperiais caíram sobre os 1.200 soldados farroupilhas. Cem combatentes foram mortos e 333 presos. Os mortos e presos eram sobretudo negros. A infâmia abriu as portas, mais tarde, à rendição acertada na farsa de Ponche Verde, “tratado” jamais assinado pelo Império. No frigir dos ovos, os farroupilhas simplesmente se submeteram às condições anteriores de rendição, propostas pelo governo imperial. O Império pagaria as contas republicanas e manteria os postos dos oficiais que quisessem permanecer nas tropas. Os rebeldes aceitariam a anistia e entregariam os soldados negros restantes.
Deus é grande, o mato é maior!
Em novembro de 1844, 220 lanceiros, aprisionados em Porongos e no Arroio Grande, foram remetidos ao Rio de Janeiro. Em início de 1845, 120 soldados negros farroupilhas foram entregues aos imperiais. Na Corte, em 1848, eles trabalhavam como cativos no Arsenal e na fazenda de Santa Cruz, como assinala Moacyr Flores em Negros na Revolução Farroupilha [Porto Alegre: EST, 2004] Por confiar nos escravistas, os sobreviventes jamais haviam gozado, por um dia sequer, de verdadeira liberdade.
Um trabalhador da cidade e do campo, um afrodescendente, um homem e mulher de bem, nada tem a festejar na celebração do latifúndio escravista e do despotismo, promovida anualmente quando da Semana Farroupilha.
Neste 20 de setembro de 2018, merecia celebração sobretudo a vontade libertária dos milhares de cativos sulinos que aproveitaram o confronto entre escravistas farroupilhas e escravistas imperiais, “tudo farinha do mesmo saco”, para aquilombar-se ou fugir sobretudo para o Uruguai, mas também para Entre Ríos, Corrientes etc. Eles seguiram a sábia lembrança de que, se "deus é grande, o mato é maior!”
Mário Maestri é historiador rio-grandense, é autor de Breve história do Rio Grande do Sul: da pré-historia aos dias aturais. 461 p. www.academia.edu/11940000/Breve_história_do_Rio_Grande_do_Sul_da_Pré-História_aos_dias_atuais