Ainda sobre Olavo de Carvalho. E basta
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- Chico Pires
- 21/03/2019
Olavo de Carvalho (OdeC) é filósofo? Ele diz que sim. De fato, é um ator que vende livros demais no Brasil e tem seguidores e espectadores demais na Internet, boa parte desses pagando por suas aulas — que ele diz serem de filosofia. Mas, como já disse Álvaro Bianchi, é perda de tempo tentar compreender sua leitura da história da filosofia, não porque ela seja bizarra, mas simplesmente porque tal coisa inexiste. Em seus vídeos e em seus escritos, OdeC dispara sua metralhadora contra famosos filósofos e cientistas e quem quer que lhe desagrade. No entanto, ele não consegue argumentar e rebater os argumentos, ao contrário, fica muito aquém disso, restringindo-se ao ataque meramente pessoal. Ele disfarça bem sua falta de preparo e seus delírios com uma inegável capacidade retórica e o uso de estratégias discursivas para esconder a própria ignorância.
Por isso, é perda de tempo tentar analisar as ideias de OdeC. O cerne de sua ideologia está na imposição de uma casta elitizada governante que retornaria o espírito do povo ao cristianismo original, antes deste ser pervertido pela modernidade. É como trocar a elite do “marxismo globalista” por outra, mais de acordo com o que ele acha correto. Como mostrou Martim Vasques da Cunha, é como trocar seis por meia dúzia. O problema é que ele não tem argumentos para sustentar essa proposta, tamanha sua obsessão delirante com inimigos imaginários.
No entanto, como ele e seu discurso são usados como cavalo de batalha para fazer passar outras agendas, e como ele tem aparecido ultimamente como pessoa bastante influente sobre o presidente e seu círculo mais íntimo de poder, é importante assentar alguns modos de seu discurso. E nada mais que isso. Considerá-lo digno de comentário elucidativo, na minha opinião, é naturalizá-lo e aceitá-lo como interlocutor. Isso é impossível, até mesmo porque OdeC recusa todo e qualquer debate, embora diga o contrário.
Uma das mais eficazes estratégias discursivas de OdeC é acusar seus oponentes de fazerem o que ele mesmo faz, de ser o que ele mesmo é. Acusando seus adversários de defender os absurdos que ele mesmo defende e de serem as mais autoritárias pessoas, OdeC tentar esconder o fato de que ele mesmo é autoritário, violento e defensor de absurdos. No sentido contrário, quando elogia alguém, é sempre no sentido do autoelogio, quer dizer, ele faz lisonjas aos outros como forma de ganhar a admiração deles e concentrar em si todas as loas.
Os únicos elogios que dirige aos outros não raro são na verdade ofensas, pois são autoelogios — a começar do título de um seu famoso livro. O uso de adjetivos superlativos, a quantidade exagerada de palavrões, o tom visceral e igualmente exagero com berros e mais berros, tudo isso mostra que o eixo sobre o qual se movimenta o discurso de OdeC não é o que ele diz explicitamente, mas o que ele não diz. Isso é um ponto básico: para construir um discurso, o enunciador tem necessariamente de considerar outros discursos em oposição dialógica. Todo discurso, portanto, é uma polifonia de discursos, um conjunto de muitas vozes que falam entre si, intertextualmente. Com isso, o enunciador consegue potencializar a capacidade do discurso de produzir efeitos na audiência (o que Roman Jakobson chamava de função conativa da linguagem).
Cito um exemplo. Um de seus alvos preferidos é Antonio Gramsci (1891-1937), filósofo, jornalista e um dos fundadores do Partido Comunista da Itália. Segundo OdeC, Gramsci é autor de “cretinices” que influenciaram decisivamente o “comunopetismo” dominante no Brasil (1). Segundo a Wikipedia em inglês (2), OdeC “crê na teoria conspiratória do Marxismo Cultural, a qual defende que esquerdistas sinistros infiltraram-se na mídia, nas universidades, na ciência e estão engajados num complô de décadas para solapar a cultura Ocidental”.
Mas não é o próprio OdeC quem vem há décadas infiltrando-se na mídia para impor seu próprio pensamento? Não é o próprio OdeC que dispõe de uma rede de zumbis intelectuais e robots para difundir suas ideias de Napoleão de hospício? Ele consegue, na verdade, muito sutilmente trazer para o próprio discurso o que ele parece estar condenando em discursos alheios, conduzindo, com isso, de forma velada, os destinatários de seu discurso aos efeitos por ele desejados. Sem perceber, seu exército de asseclas volta-se contra quem seu comandante mandar, de maneira totalmente acrítica e acéfala. Como a adesão ao discurso do mestre é sutilmente produzida, como se “inconsciente”, OdeC com isso disfarça seu autoritarismo.
Sou da opinião de que é lícito conceder a OdeC o título de astrólogo (como recusar-lhe o único diploma que se esforçou por obter?) e no máximo o de polemista, jamais o de filósofo e sequer o de sofista, embora ele use sofismas à mancheia. Se Platão recusava à sofística e à oratória os títulos de genuínas técnicas, comparando-as à indumentária e à culinária e não à ginástica e à medicina, é preciso dizer então que OdeC está para os sofistas clássicos como a astrologia de jornal está para a astrologia dos antigos egípcios (não direi a astronomia contemporânea...). Jamais poderia OdeC ser equiparado a um Isócrates. No entanto, OdeC usa muito eficientemente vários ardis discursivos já conhecidos dos sofistas.
De fato, OdeC não tem um trabalho pessoal de elaboração sistemática de conceitos, passa longe de qualquer coerência e, no entanto, é um sucesso de público, tendo se tornado nos últimos anos de fato um guerrilheiro cultural. Sem incitar questionamentos legítimos, ele diz pertencer aos preconceitos do senso-comum o que é científico e genuíno, e diz ser científico e genuíno o que não passa de deslavada mentira, delírios de sua autoindulgência. Assim, ele passa a ser um guerreiro da mentira e da pós-verdade, ou da autoverdade (3), uma pessoa que tenta com seu discurso moldar as crenças de quem se dispõe a ouvi-lo e que só consegue ser comentador de si mesmo, tamanho seu ego.
Engenhoso, seu tom sempre beligerante, vulgar e odioso parece, aos seus seguidores de cabeça e formação psicológica fraca, um tom ousado e corajoso. É, na verdade, uma máscara para a covardia e a falência psíquica completas, o avesso verdadeiro de sua fachada de racionalidade. É justamente por isso, no entanto, que ele consegue produzir os efeitos desejados em sua audiência – os destinatários de seu discurso veem nele um modelo a ser seguido, alguém que consegue exprimir o que sentem, de uma maneira como jamais conseguiriam.
OdeC usa o discurso exclusivamente como instrumento de força e poder, dizendo que não o faz. Mestre em volteios retóricos e manipulações discursivas, OdeC usa deliberadamente todas as falácias da linguagem identificadas por Aristóteles, no seu Refutações dos Sofistas: falácia do equívoco, anfibologia, falácias da composição, da divisão e de ênfase. Particularmente esta última: seus berros descontrolados e seu vocabulário chulo são notórios. OdeC usa também exageradamente a falácia da falsa causa, invocando relações temporais para implicar relações de causa e efeito. É simples seu raciocínio: se A veio antes de B, então A é causa de B.
Conhecida, essa falácia é fácil de refutar: é ilícito raciocinar da anterioridade temporal à causalidade ontológica. Mal adaptada por muitos ignorantes atuais, é como dizer que o nazi-fascismo foi um movimento político de esquerda porque trazia a palavra socialismo no nome – Nationalsozialismus. Quando — raramente — não é falacioso, OdeC via de regra incorre em outra falácia, a da conclusão irrelevante. Ou seja, quando não é mal intencionado, é medíocre. OdeC tampouco preocupa-se em dizer a verdade, mas esforça-se por todas as maneiras para fazer passar por verdadeiro o falso.
Assim, tenta falar sobre o não-ser como se o que não existe existisse (segundo Platão, isso é impossível). É, por isso, um relativista, e como todo relativista, essencializador. Um exemplo, apenas, basta para mostrar sua completa ignorância e má-fé. OdeC acusa Galileo Galilei de não ter raciocinado com base em experimentos, apenas em hipóteses matemáticas “que depois ele legitimava com pseudo-experimentos puramente imaginários, jamais levados à prática, e usados sempre como meios de persuasão retórica, nunca de verificação. Os poucos experimentos efetivos que ele realizou foram todos errados”. (4)
Ora, é como se OdeC exigisse de G. Galilei que mostrasse o ente correspondente à lei da gravitação universal, ignorando talvez o fato de que uma lei geral não pode esgotar-se numa existência definida qualquer. Os medievais diriam: OdeC é um nominalista infeliz, e não um realista incauto. Para sustentar suas afirmações, OdeC se escusa de citar os textos de G. Galilei (ou quaisquer outros textos ou documentos). (5) Na verdade, seu interesse passa longe de discutir os métodos do pisano. Sua preocupação é refutar a ideia de que G. Galilei teria sido perseguido pela Inquisição e sofrido um martírio (sic) imposto pela Igreja Católica. Seu objetivo fica claro no último parágrafo: por no mesmo saco sujo que carrega “iluministas, evolucionistas, marxistas ou nazistas”, com o intuito de atacá-los em nome de uma Idade Média por ele mistificada — a Idade Média e a Igreja Católica medieval seriam, essas sim, as verdadeiras vítimas da “modernidade”. Ao defender isso, OdeC incorre numa essencialização de um passado que nunca existiu.
OdeC fala com ares de autoridade absoluta sobre assuntos dos quais não entende patavina e nunca entenderá, simplesmente porque não tem a mínima competência. Ao mesmo tempo, afirma peremptoriamente a existência de uma essência divina do mundo, mas apenas como subterfúgio para fazer seus ouvintes adotarem um individualismo ferrenho, próprio aos mitos de heróis e semideuses superiores aos humanos — Prometeu, em suma. Com isso, mostra-se desprovido de toda e qualquer humildade para aprender.
Aliás, ingenuidade a minha, esse sujeito nunca esteve disposto a aprender, tamanha sua arrogância. Não admira sua paúra de debates e diálogos. Escolhendo dos mitos o que mais lhe serve a propósitos específicos, distorce-os completamente, discordando desses mitos quando lhe convém e só defendendo o que convém a si mesmo. Por isso, também evita dar conteúdo positivo a termos como "democracia", "liberdade", "política" etc. (Nem falemos “filosofia”). E quando raramente os dá, é igualmente distorcendo-os de seu significado legítimo. OdeC nunca se preocupa em resguardar coerência lógica ou evitar contradições, pois encontra justificativas pseudo-racionais para as mais absurdas incoerências (aqui, reencontramos um distorcido Wittgenstein — outro acusado por OdeC de ter trazido “dano incalculável” à “inteligência mundial” — e sua tese de que a linguagem resguarda autonomia relativamente à realidade, podendo mesmo prescindir dela).
OdeC fala de tudo e qualquer coisa. Falastrão, durante anos escreveu em jornais e apareceu em programas de televisão para falar groselhas, como dizem hoje em dia. A quem tem um mínimo de inteligência, é surpreendente. OdeC defende a ideia de educação como serviço privado e individualizado. Em consonância, o conhecimento para ele é algo estático, finalizado, coisificado, um produto pronto para ser vendido aos imbecis que quiserem comprar. Despreza a tradição em nome de um vazio “pensar por si mesmo”, ao mesmo tempo em que dá aulas para iluminar os mal aconselhados. OdeC esquiva-se da responsabilidade sobre tudo o que dizem e cometem seus seguidores, repetindo, com isso, a famosa justificativa de Górgias a Sócrates: não é possível estabelecer vínculos entre meios e fins — se o mestre ensina os meios, não podem ser responsabilizados pelos fins em nome dos quais os aprendizes utilizam o que aprenderam.
Mas não deveria o mestre preocupar-se em discutir os fins antes de ensinar os meios? Essa não parece ser uma preocupação de OdeC: ele toma seus fins como verdades absolutas, sejam eles quais forem. Quando refutado, OdeC retira seus textos da Internet e passa a acusar seus críticos de falar as mentiras que ele mesmo fala — as quais, com sua retórica, consegue mascarar e fazer passar para uma audiência (sem dúvida, grande) com ainda menos critérios racionais que ele próprio. Seu discurso pseudo-objetivista traveste uma subjetividade falida.
Justiça seja feita com os sofistas, pois num ponto crucial diferem de OdeC: a tradição sofística educou um Tucídides, formou um Cícero, legou-nos um Luciano de Samósata. OdeC não conseguiu e nunca conseguirá nada semelhante. Sua fala é estúpida e sua escrita é reles, ambas absolutamente desprovidas de poesia.
Notas:
1) Ver http://www.olavodecarvalho.org/cretinices-gramscianas-i . Data de publicação: 01/06/2015. Data de acesso: 06/12/2018.
2) https://en.wikipedia.org/wiki/Olavo_de_Carvalho Data de acesso: 12/12/2018.
3) Eliane Brum. Bolsonaro e a autoverdade. In: http://elianebrum.com/desacontecimentos/bolsonaro-e-a-autoverdade-2/. Data de publicação: 16/07/2018. Data de acesso: 09/12/2018.
4) OdeC. Um mártir da ciência. Em: http://www.olavodecarvalho.org/um-martir-da-ciencia . Data de publicação: 13/04/2011. Data de acesso: 09/12/2018.
5) Basta citar os absurdos ditos a respeito da física newtoniana ou da “falsa lógica” (sic) do infinito de Georg Cantor. Acerca do primeiro ponto, ver a refutação feita pelo prof. Adonai Sant’Anna: http://adonaisantanna.blogspot.com/2015/02/olavo-de-carvalho.html.
Data de publicação: 09/02/2015. Data de acesso: 08/12/2018. Sobre o segundo ponto, OdeC alega que a teoria do infinito de Cantor, baseando-se apenas no infinito atual, cairia por terra se fosse considerado o infinito “potencial”. Ora, seu desconhecimento é completo, visto que Cantor trabalha com conjuntos recursivos (nos quais a função bijetora pode ser definida recursivamente).
Chico Pires é professor e filósofo de ocasião.