A política antivalor da vida
- Detalhes
- Roberto Antonio Deitos
- 29/08/2019
“Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde,
no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.
Sofremos alguma decomposição lírica até o mato
Sair da voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.”
(MANOEL DE BARROS)
“[...] Se a crise na Amazônia continuar, o mundo inteiro vai sofrer. Estamos chegando a um ponto em que os danos ambientais são irreversíveis. Se passar disso, será o fim da vida humana organizada no planeta.”
(NOAM CHOMSKY,
folha.uol.com.br/mundo, 28/08/2019 )
Poema mãe terra
Queria passear
Pelos teus campos
Sem ver a mata
Chorando as queimadas,
Derrubadas repentinamente.
Queria tomar banho
Nos teus rios,
Beber água das tuas fontes
Sem pensar nos agrotóxicos
Que poluem impiedosamente
Tuas correntezas.
Queria tomar sol como se
A luz não fosse turvada
Pela fumaça da poluição
Que produzimos insistentemente.
Queria respirar o ar puro
Em companhia do vento
Com a brisa trazendo
O perfume das flores e das floradas
Sem sentir o gosto amargo
Gaseificado de produtos poluentes.
Queria sentir sob meus pés o teu
Frescor terra mãe lembrando-nos
Que somos tão iguais, tão necessários,
Unidos eternamente pelos átomos
De fios invisíveis de luz do sol,
Das minúsculas partículas de água,
Dos átomos do ar que respiramos,
Dos pequenos grãos de terra,
Eternamente frutos de uma mesma
Composição, como se estivéssemos
Voltando para o teu ventre mãe terra!
A mata chora queimada
Não tendo para onde ir
Envolta nas entranhas da terra
Ardendo em chamas
Morre como um choro
Sem lágrimas.
A fumaça é como
Almas que voam
Ardendo nos olhos
Da floresta em cinzas
E da fumaça sobre
Nossas cabeças,
Implorando algumas
Gotas de razão
Na consciência
Humana!
Fugir
Queria fugir de
Mim mesmo
E não acreditar
Em algumas
Coisas que vejo.
Fosse eu um pássaro,
Há momentos
Que gostaria
De voar bem
Longe daqui;
Mas, provavelmente,
Foi por isso que Deus
Não nos criou com asas;
Se houvesse nos criado
Com asas,
Não teríamos
Tanta paciência histórica
Para suportar
Certas circunstâncias
Que a vida apresenta.
Viveríamos fugindo
De tantas coisas,
Tantas vezes,
Inacreditavelmente,
Insanas!
O coração dos financistas
Quanto custa a saliva
Do que não conta
O dinheiro molhando
Os dedos?...
Quanto custa um cuspe
Se o banqueiro
Não paga nem um
Copo de água
Que bebe?...
Quanto vale um dinheiro
Que não tem valor
Nem nunca produziu
Nenhum centavo de mais-valor
Nem quis saber da criança
Que chorava o leite
Que não havia no
Peito da mãe,
Porque a fome
Lhe abatia as últimas
Fontes de energia vital?...
O banqueiro olhava
Pela janela,
Parava um pouco,
Fazia um cálculo
E depois sorria
Dizendo:
Nem toda a miséria
É nossa rival,
Nem todo ouro
Pode ser distribuído,
Nem toda a fortuna
Será permanente,
Mas hoje estou
Muito ocupado
Para sentimentos
Sociais; meu tempo
É curto e precioso,
Preciso terminar
De contar o dinheiro
Para ver quanto sobrou
De juros. Juro a vocês
Que amanhã tiro
Um tempinho para
Me consternar com vocês.
Mas primeiro preciso saber
Quanto lucro sobrou hoje.
O infortúnio dos sem futuro
Dos infortúnios que vinham
Como nuvens que escureciam
O céu e logo o vento enfurecido
Lançava furacões entre gotas
De chuva que caiam no meio
Da poeira do redemoinho,
O dinheiro só passava de mão
Para voltar para os banqueiros,
É claro, com acréscimo e mais dinheiro.
Lances infortúnios sufocavam
As expectativas e num lance
A aposta estava perdida.
Quantos fracassos a depressão
Não escondeu nos labirintos
Infames da amargura impiedosa
Que massacra tão juvenis
Almas inquietas e infelizes
Porque já não lhes
Permitem que o sol
Lhes aqueça os ombros,
Nem a lua ilumine seus sonhos,
Nem os dias floresçam
Em seus pés, mesmo que
Descalços e esfarrapados
À procura de um lugar ao sol
E de um mísero trabalho assalariado
Que a cada dia mais, menos surgirão
E o tempo disponível se tornará cada vez maior
E o tempo do trabalho vivo menor,
Sem no entanto deixar de ser o motor da história!
Alguma flor deverá brotar dessas mãos deixadas vazias
No tempo e no espaço!...
O lamento dos sem futuro
Meu lamento embaraça
Minha alma e as lágrimas
Lavam minha face,
Fui na fila do desemprego
Embalar meu destino,
Me vi perdido no vão da rua,
Procurei minhas habilidades,
Fucei na minha alma,
Me vi em busca da sobrevivência;
Quanto vale meu valor sem preço?...
Somos milhões disponíveis,
Para um mundo que nos despreza,
Por servimos para aumentar seus lucros,
E na vida não sabemos qual horizonte
Levará a algum lugar,
Nem quando a esperança
Será um gesto descartável
De nossas vidas,
Como num lamento
Sem fim,
Como se não existisse começo,
Só o futuro que não será,
Ou será apenas
O lamento dos sem futuro!
Minha alma rastejava
Na fila da vida,
E um amargor descia
Na garganta como se
Fosse sangue que
Saia das veias,
Numa caminhada sem fim
Como se o tempo
Já estivesse extinto
E não houvesse
Mais para onde ir
Nem mesmo
Onde ficar.
Roberto Antonio Deitos é poeta e professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste.
